terça-feira, 12 de fevereiro de 2008

Caminhos da Ficção da África Portuguesa (Rita Chaves e Tânia Macedo)

Nomes como Mia Couto, José Luandino Vieira e Pepetela despontam na literatura dos países colonizados pelos portugueses. No uso da língua, os escritores reafirmam a diversidade. Nas tramas dos livros, combinam história recente e mitos do passado mais antigo. Em muitos casos, prevalece o olhar irônico por Rita Chaves e Tânia Macedo

Que lugar pode ocupar a literatura num continente devastado pela miséria, pelo analfabetismo, pelos conflitos armados, pela precariedade da vida? Se nos deixamos levar pela lógica das estatísticas, temos de assinalar que, de fato, a atividade literária na África não supera a marca do traço. Porém, segundo Mia Couto, um de seus mais prestigiados escritores, essa duríssima realidade não pode ser vista como um impedimento para o lugar do sonho que a literatura também pode abrigar. Aos escritores, cabe, portanto, encarar como um desafio o ato de escrever num quadro atravessado por tão duras contradições.

Em se tratando dos países colonizados por Portugal, a situação é verdadeiramente complicada. A inconsistência do projeto de colonização, o próprio atraso da metrópole e o prolongamento da empresa colonial estão na origem das difíceis condições de vida em Angola, Cabo Verde, Guiné Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe. Nos anos 70, quando o colonialismo lusitano foi interrompido pela vitória das lutas de libertação, encontravam-se as populações africanas mais distantes dos padrões ocidentais no que refere ao domínio da ciência e da tecnologia do que quando ele ali se instalou. As elevadíssimas taxas de analfabetismo eram apenas um dos reflexos do completo fiasco da “missão civilizadora”. Com exceção de Cabo Verde, que apresentava um quadro educacional menos constrangedor, os territórios ocupados caracterizavam-se por baixíssimos índices de escolaridade. A pluralidade lingüística, que poderia ser vista como sintoma da riqueza cultural, tornava mais complexa a situação dos países.

Moçambique, por exemplo, contava mais de duas dezenas de línguas. Reconhecendo a incomunicabilidade entre os vários segmentos que passaram a ser parte de um território comum como um dos mais cruéis legados do sistema colonial, os escritores enxergaram no exercício literário a possibilidade de reforçar um patrimônio comum que a história, mesmo à revelia, havia criado. O reforço dessa convergência seria uma estratégia importante para a libertação. A atividade literária converteu-se desde muito cedo em ato de resistência e um problema que logo se colocou foi o da escolha da língua em que se realizaria o projeto de integração que a literatura chamava para si.

Não acreditando noutras hipóteses, os escritores, sem ignorar a dimensão do problema, assumiram o português como um instrumento a ser utilizado a seu favor. A nacionalização da língua trazida com a invasão seria uma estratégia para a conquista maior. Esse movimento de nacionalização traduziu-se num esforço para conferir ao idioma conotado com a metrópole marcas que o tornassem também um espaço de identidade cultural de cada um dos territórios.

Passados mais de 30 anos desde a independência, o pragmatismo que está na base da escolha da língua oficial, embora tenha resolvido a questão principal, não afastou completamente aspectos que cercam a literatura. Vez por outra, o debate ressurge, sugerindo que essa é uma espécie de área minada, pois a preocupação com o problema permanece no imaginário de fecundos escritores. Em inúmeras vezes, José Luandino Vieira, um dos maiores ficcionistas angolanos, defendeu a idéia de que a língua portuguesa é uma espécie de despojo de guerra, portanto o seu uso é um direito dos africanos e não um sinal de alienação. O fato é que dos dilemas que a relação guarda têm nascido páginas belíssimas dessa literatura.

Entre os ficcionistas, há pelo menos três que se têm destacado pelo trabalho de reinvenção da língua que operam em seus textos: o próprio José Luandino Vieira e seu conterrâneo Boaventura Cardoso e o moçambicano Mia Couto. Dividindo-se entre o conto e o romance, esses autores trabalham a língua portuguesa buscando enfatizar a sua diversidade. Em seus textos, recorrem ao uso de neologismos, desobedecem à norma culta, empregam palavras das línguas de seus países, tornando-as, portanto, mais próximas das realidades apanhadas pelo texto literário. Diante de seus textos, o leitor percebe logo que o autor não é um português.

Ao leitor brasileiro, essa produção vai lembrar o nome de Guimarães Rosa, uma vez que, tal como o brasileiro que fez do sertão um espaço privilegiado, esses escritores, além de transformarem a língua com a interferência de construções um tanto insólitas, procuram trazer para a literatura certa dinâmica da oralidade. Não se trata simplesmente de recontar as lendas, os mitos e as fábulas que compõem as suas tradições, mas de revitalizar a escrita através do questionamento dos modelos ocidentais. Dessa forma, eles exprimem o impasse criado entre a recusa de uma tradição imposta pelo sistema colonial e a impossibilidade de retomar integralmente a tradição que fora submetida ao amordaçamento pelo mesmo sistema. A necessidade de resgatá-la em novas bases vai orientar a procura de novas falas que a literatura precisa abrigar.

Em Angola, onde a ficção se consolidou mais cedo, essa urgência de romper com a convenção que se tentou impor também condicionou logo a invenção de novos espaços e a predominância de personagens que durante a dominação foram desconsiderados pela chamada literatura colonial. Os pobres, os negros, os excluídos ganham a cena na prosa de ficção, alçados ao estatuto de protagonistas do que se pode chamar de uma outra história. Nos anos que antecederam a independência e no período imediatamente posterior, as obras publicadas empenhavam-se em oferecer versões da história que se contrapusessem às imagens disseminadas pelo discurso colonial. Os silenciados exercitavam o direito à voz, conquistado com a libertação. Romances como Mayombe, de Pepetela, e os contos de Sim, camarada, de Manuel Rui, vão revelar novos heróis, em textos que celebram a resistência.

Curiosamente, esses mesmos autores, ainda nos tempos de euforia revolucionária, publicam dois textos de forte conteúdo crítico. O cão e os caluandas, do primeiro, e Quem me dera ser onda, do segundo, com uma perspectiva muito irônica, que contamina a própria linguagem, fazem do humor um modo de abordar o tempo das carências materiais e da desorganização cultural que predomina nos primeiros anos da revolução. O processo de desagregação do projeto utópico começa a ser tratado pela literatura que anunciara a transformação.

A consciência crítica da realidade que sucedia ao sonho convive, todavia, com uma aposta na literatura como marca de identidade. Vamos encontrar assim o romance histórico como uma tendência significativa no itinerário do gênero. Do próprio Pepetela, podemos referir Lueji e A gloriosa família – o tempo dos flamengos. De Arnaldo Santos, temos A casa velha das margens, que, como A conjura, de José Eduardo Agualusa, remonta ao século XIX para oferecer elementos que permitam interpretar o presente. É interessante assinalar que esse tipo de narrativa, que teve seu modelo forjado no Ocidente, no contexto das literaturas africanas traz uma característica especial: para além das fontes documentais, os autores lançam mão da memória oral, confirmando a energia dessas matrizes no patrimônio cultural africano.

Tão forte em Angola, o romance histórico não tem o mesmo peso nos outros países. Ali, percebe-se o desejo de resgatar mitos que a história colonial havia desconsiderado, recuperando para muitos um papel edificante, compatível com a construção do nacionalismo orgulhoso, como é o caso de Nzinga Mbandi, de Manuel Pedro Pacavira. Até o presente, em Moçambique destacam-se apenas dois casos de romances que excursionam pelas páginas da história. O primeiro deles é Ualálapi, de Ungulani ba ka Khosa, publicado em 1987. E, muito curiosamente, a narrativa, em lugar de enaltecer o mito de Ngungunhane – o imperador de Gaza que resistiu bravamente aos portugueses –, oferece uma imagem em tudo contrária à dimensão heróica que o novo Estado procurava assegurar ao personagem. Mais recentemente, Mia Couto, em O outro pé da sereia, faz uma incursão pela história e vai ao século XVI colher material para uma reflexão sobre aspectos contemporâneos da realidade africana. Mais uma vez, a ironia está presente na estrutura da obra.

Muito embora seja reconhecido o peso do passado colonial na situação a ser enfrentada hoje, há uma inegável tendência de trazer a discussão para outros termos, responsabilizando as elites que tomaram conta do poder e contribuíram para o quadro de desagregação mais evidente num ou noutro país. Já em 1994, com O desejo de Kianda, Pepetela denunciava uma Luanda (cidade que foi fundamental na literatura que espelhava o desejo de mudança) vivendo a experiência da ruína. Esse processo de apodrecimento da cidade, que foi tão importante na geografia literária dos anos 60, quando ganhavam corpo os desejos da transformação, será intensificado pelo mesmo autor em obras como Predadores e Jaime Bunda, o agente secreto. Com Jaime Bunda e a morte do americano, este último integra uma série que, parodiando o romance policial, oferece-nos um registro mordaz da degradação das relações sociais e humanas numa sociedade que vive um intenso desregramento.

A ironia será também a marca da ficção em Cabo Verde. Uma boa dose de mordacidade marca o humor que emerge em romances como O testamento do senhor Nepomuceno e A família Trago, de Germano de Almeida. Em todos eles, o foco recai sobre a sociedade caboverdiana numa atualidade em que se refletem os traços de um passado não muito distante e em que se confirma o caráter mestiço da cultura das ilhas. Germano brinca com os estereótipos com que os ilhéus são muitas vezes pintados, mas consegue tratar algumas de suas peculiaridades de maneira corrosiva, sugerindo características que compõem a sua identidade ostensivamente mesclada.
Apesar de estar ainda numa fase incipiente, a prosa de ficção na Guiné-Bissau é marcada por um olhar ácido, incapaz de ver saída. Romances como Eterna paixão e Mistida, de Abdulai Sila, e Kikia Matcho, de Filinto de Barros, tematizam a desilusão diante daqueles que deveriam ser os novos tempos. O pós-independência é visto amargamente nessas duas últimas narrativas, nas quais o recurso àquilo a que se convencionou chamar de fantástico é utilizado para expressar a deterioração de valores que se quer apontar. Já em A última tragédia, de Sila, temos um recuo ao período anterior à independência, e figuras como o professor negro e um velho régulo traduzem uma ponta de esperança em meio ao drama colonial.

A tensão entre um presente difícil e a necessidade de encontrar alguma saída marca essa prosa de ficção. As diversas situações de instabilidade, o acirramento das contradições sociais e a convivência com a morte caracterizam essas realidades onde a guerra tem sido uma marca muito freqüente, o que explica que ela apareça em tantos textos. Melhor seria falar em guerras, pois elas, na verdade, são várias e de maneiras diferentes serão abordadas no interior das obras.

José Luandino Vieira faz da guerra o pano de fundo de duas de suas excelentes narrativas. Em Nós, os do Makulusu, escrita em 1967, ela é a expressão do dilaceramento de um mundo condenado. A sociedade colonial começa a experimentar a consciência de seu fim, e a morte de Maninho, alferes do exército colonial, vítima de uma emboscada, é uma espécie de metáfora do inconciliável para quatro personagens que na infância vivenciaram a comunhão. No livro com que se relança no mercado editorial, rompendo um prolongadíssimo silêncio, Luandino retomará o período e, dessa vez, mergulhará na ambiência da guerrilha no admirável Livro dos rios, com que abre a trilogia De rios velhos e guerrilheiros. Tal como no texto dos anos 60, Luandino recusa aqui qualquer atitude maniqueísta, fazendo, contudo, com que a participação na guerrilha seja uma espécie de travessia que integra a construção da identidade, em que também interfere a relação do homem com a natureza, metonimizada pelos rios que formam a terra angolana.

Em Mayombe, romance destacado na obra de Pepetela, a luta de libertação é palco de glorificação de heróis nacionais, fenômeno que será relativizado em A geração da utopia, quando o mesmo autor procura fazer um balanço do período que vai do começo dos anos 60 até o tempo indicado como “a partir de julho de 1991”. Em A parábola do cágado velho, Pepetela denuncia o absurdo dos combates que se prolongam para além da lógica de seus motivos iniciais e arrasam o país.

Dois autores angolanos, em tudo diversos, também terão na guerra um ponto de aproximação. Em Bom dia, camarada, o jovem Ondjaki surpreende oferecendo a memória de um tempo que, mesmo marcado pelas dificuldades e pela atmosfera algo sombria de um cotidiano povoado pela morte, abre espaço a uma experiência de infância em tudo avessa à desesperança que o cenário externo poderia levar. O narrador menino empresta seu olhar e o leitor pode recuperar alguns fios da vida que permitem encontrar luz onde o nosso senso de realidade teria dificuldade de localizar.

Outro livro fundamental sobre a guerra será Actas da Maianga dizer das guerras em Angola, de Ruy Duarte de Carvalho. Num texto de difícil definição temos uma análise dos conflitos proposta num panorama mais amplo, que tem como objetivo a discussão dos caminhos que se abrem à sociedade angolana logo após o acordo de paz assinado em abril de 2002.

No caso moçambicano, a guerra focalizada não é a luta anticolonial, mas aquela que derivou de conflitos de baixa intensidade alimentados por forças externas e se converteu numa terrível guerra civil. É essa a guerra abordada por Mia Couto em vários romances, como o belíssimo Terra sonâmbula, A varanda do frangipani e O último vôo do flamingo, além de ser uma referência muito significativa no volume de contos Estórias abensonhadas. Em Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra, de 2003, Mia vai se debruçar sobre os efeitos da guerra naquilo que se pode chamar de processo de desagregação de valores, fenômeno também trabalhado em A varanda do frangipani. Terminada a guerra, para além dos rastros de destruição material, os moçambicanos confrontam-se com outros níveis de degradação. Em O último vôo do flamingo, um narrador irônico dirige seu olhar às forças estrangeiras que desembarcam no país para monitorar a paz.

É dessa mesma guerra civil que trata Paulina Chiziane em Os ventos do apocalipse. Também é a guerra que aparece em As duas sombras do rio, romance de João Paulo Borges Coelho, e no volume de contos Setentrião, do mesmo autor. São os sinais de uma devastação profunda que mobilizam a atenção dos escritores empenhados em avaliar o fenômeno que dominou a vida do país por tantos anos. Historiador de formação, João Paulo publicou esse que foi o seu primeiro romance em 2002. Daí para cá, mais dois romances e duas coletâneas de contos foram lançados, uma produção que tem confirmado a qualidade de sua escrita desde a estréia.

Essa convergência temática conduzida pela presença da guerra, no entanto, não determina a existência de uma uniformidade em relação aos elementos estruturais na prosa contemporânea. Não podemos sequer falar em predominância de um gênero, pois a variedade de propostas constitui um dado interessante dessa produção africana em língua portuguesa. Uma diversidade que podemos encontrar no interior da obra de um mesmo autor. Já consagrado como romancista, Mia Couto, que na ficção começou como contista, volta ao gênero que o consagrou. O fio das missangas, de 2004, surge na seqüência de vários romances.

O trânsito entre as diferentes modalidades literárias pode mesmo ser visto como uma característica dessa literatura nos vários países. Os autores migram de um gênero a outro, optando, a cada momento, por aquele que consideram mais adequado ao que têm a dizer. É esse o caso de João Melo, de Angola, que, conhecido inicialmente como poeta, tem se notabilizado como contista. Imitação de Sartre e Simone de Beauvoir, Os filhos da pátria e O serial killer são três dos títulos de coletâneas que têm em comum a focalização de cenas da realidade urbana do país. Também em Manuel Rui observamos essa capacidade de transitar entre os vários gêneros: o romancista de Rioseco regressa ao conto em Da palma da mão, no qual exercita a contenção de forma magistral. E vamos ainda encontrar o cronista em Maninha, para ficarmos apenas com três de seus títulos editados de 1997 para cá. Os exemplos se multiplicam se nos voltamos para Moçambique: é o caso de Nelson Saúte, que reúne em sua produção romance, contos e poemas. É o caso, também, do já citado João Paulo, que vai do conto ao romance.

Outro fenômeno muito interessante na prosa africana de língua portuguesa é a diluição das fronteiras entre os gêneros narrativos. Tanda, um livro recém-lançado pelo angolano Adriano Mixinge, mistura poesia, crítica literária e de artes plásticas, cartas e outras formas de discurso.

Cruzando o imaginário cultural com a história remota e recente do seu país, ele monta um painel da complexa realidade atual de Angola.

Essa tentativa de mesclar os gêneros vem sendo radicalizada por Ruy Duarte de Carvalho, como apontamos em Actas da Maianga. Em outras obras, o leitor pode se surpreender com esse escritor que faz da sua formação e experiência de antropólogo uma bagagem fundamental no domínio da atividade literária. Em Desmedida – Luanda – São Paulo – São Francisco e volta – crônicas do Brasil, de 2006, deparamo-nos com a mesma ousadia criativa que já havia sido demonstrada em Vou lá visitar pastores. São escritas orientadas pelo sentido da viagem, mas que ultrapassam em muito os limites de um diário. Muito diversas entre si, as duas narrativas têm em comum a combinação entre o compromisso com o conhecimento e a fidelidade à invenção. Essa mesma associação é trabalhada em obras que apresentam uma estrutura menos polêmica como Os papéis do inglês e As paisagens propícias. Em todas elas, o perfil multifacetado do autor (poeta, antropólogo, cineasta e artista plástico) está, de alguma maneira, presente.

São poucos os nomes de mulheres ficcionistas nas literaturas africanas de língua portuguesa, e as causas da ausência de uma sólida escrita feminina são variadas, mas não podemos deixar de considerar que, apesar das conquistas trazidas pela independência, elas ainda enfrentam as dificuldades geradas pela sua posição de subalternidade, socialmente falando. E aqui se desenha uma contradição, na medida em que a voz feminina é ouvida no círculo mais íntimo das relações familiares, no qual o contar histórias e o consolidar laços acabam sendo suas tarefas. Ocorre, no entanto, que as suas adivinhas e contos estão no domínio da oratura, e, infelizmente, entre o contar e o escrever há um hiato que impede o aproveitamento mais amplo dos seus saberes.

Nos poucos textos escritos hoje por mulheres nos países africanos de língua portuguesa, o leitor vai poder encontrar os problemas, os sentimentos e a intimidade femininos, abordando desde a marginalização e as tentativas de rebeldia em um mundo de carência, como no instigante A louca do Serrano, da caboverdiana Dina Salústio, até a experiência da solidão e do exílio nos contos da também cabo-verdiana Orlanda Amarílis, passando por mulheres que, submetidas a uma tradição que talvez já não corresponda ao seu papel na história, revoltam-se e denunciam a opressão, como se vê em Niketche, uma história de poligamia, da moçambicana Paulina Chiziane.

São textos que apresentam a singularidade da visão feminina da sociedade, dos seus dramas e da submissão a que larga parcela das mulheres continua condenada, mas que também constroem situações capazes de indicar a possibilidade de superação de suas limitações sociais. É o que o leitor encontra, por exemplo, e muito bem tratado pela angolana Ana Paula Tavares em seus dois livros de crônicas: O sangue da buganvília e A cabeça de Salomé. Mais uma vez, a literatura é vista como um espaço de discussão de problemas concretos e como um lugar em que se podem projetar saídas quando as circunstâncias convidam ao desânimo.

A notícia correu muito depressa, como aquele vento maluco que desde a ponta da Ilha sobre até a Lixeira, varre todo o musseque até o fundo da Calemba e da Maianga, pra ir morrer lá longe nos confins da Samba.
Foi assim mesmo, com um vento assanhado que trazia atrapalhação nas nuvens carregadas de chuva, que o caso começou naquele dia tão triste como esquina da Mutamba sem gente. Porque a raiva desse vento é que foi sacudir as vigas de ferro, fez voar os luandos e os zincos e, com um barulho muito grande, deixou cair a antiga kitanda de Xá-Mavu.
As kitandeiras ficaram sem o negócio, sem o dinheiro, muitas mesmo sem a vida. Naquele dia, rios de sangue correram no meio do peixe, dos kiabos, da takula, do jipepe e jisobongo, os gritos não calaram na boca dos feridos.”
Trecho de Estórias do Musseque, de Jofre Rocha.

O culpado que você procura, caro Izidine, não é uma pessoa. É a guerra. Todas as culpas são da guerra. Foi ela que matou Vasto. Foi ela que rasgou o mundo onde a gente idosa tinha brilho e cabimento. Estes velhos que aqui apodrecem, antes do conflito eram amados. Havia um mundo que os recebia, as famílias se arrumavam para os idosos. Depois, a violência trouxe outras razões. E os velhos foram expulsos do mundo, expulsos de nós mesmos.
Você há-de perguntar que motivo me prende aqui, nesta solidão. Sempre pensei que sabia responder. Agora, tenho dúvida. A violência é a razão maior deste meu retiro. A guerra cria outro ciclo no tempo. Já não são os anos, as estações que marcam as nossas vidas. Já não são as colheitas, as fomes, as inundações. A guerra instala o ciclo do sangue.”

Trecho de A varanda de frangipani, de Mia Couto

Costumo pensar que nossa geração se devia chamar a geração da utopia. Tu, eu, o Laurindo, o Vítor antes, para só falar dos que conheceste. Mas tantos outros, vindos antes ou depois, todos nós a um momento dado éramos puros e queríamos fazer uma coisa diferente. Pensávamos que íamos construir uma sociedade justa, sem diferenças, sem privilégios, sem perseguições, uma comunidade de interesses e pensamentos, o Paraíso dos cristãos, em suma. A um momento dado, mesmo que muito breve nalguns casos, fomos puros, desinteressados, só pensando no povo e lutando por ele. E depois...tudo se adulterou, tudo apodreceu, muito antes de se chegar ao poder. Quando as pessoas se aperceberam que mais cedo ou mais tarde era inevitável chegarem ao poder.
Cada um começou a preparar as bases de lançamento para esse poder, a defender posições particulares, egoístas. A utopia morreu. E hoje cheira mal, como qualquer corpo em putrefação. Dela só resta um discurso vazio.
”Trecho do livro A geração da utopia, de Pepetela

Fonte:
Rita Chaves e Tânia Macedo. Caminhos da Ficção da África Portuguesa
http://www2.uol.com.br/entrelivros/reportagens/caminhos_da_ficcao_da_africa_portuguesa.html

Nenhum comentário: