quarta-feira, 14 de maio de 2008

Jeronimo Mendes (Bingles)

Aproxima-se a hora do pão nosso de cada dia, alimento preferido dos estudantes, principalmente daqueles que moram longe dos pais, ou melhor, das mães, é óbvio.

Subimos rapidamente pela André de Barros, eu e meu amigo Madalena, faceiros como nunca, reparando em tudo e em todos. Nossa alegria maior era buscar o pão quentinho na panificadora Real da Rui Barbosa, aquela dos Expressos, como fazíamos todas as tardes.

Na praça, a mesma poluição, o mesmo rush, as mesmas caras e bocas de sempre, filas e filas de batalhadores visivelmente cansados à espera do ônibus que nunca chega quando se tem um pouco mais de pressa .

O visual do estabelecimento era rotina, fila para pedir, pagar e levar, fila de pedintes e, disfarçadamente, fila de trombadinhas doidos pela nossa carteira cheia de documentos, dinheiro era raro.

Estudante de interior compra pão e mais nada. Vez por outra, um pãozinho de queijo e, quando muito, entre cinqüenta e cem gramas de mortadela.

Posicionados na fila, entreolhares correm soltos, de fila para fila, cliente para cliente, cliente para balconistas, vigia para clientes e transeuntes na calçada ou do outro lado da rua, onde as freadas do Expressão distraem a atenção da torcida com possibilidades constantes de atropelamento.

Madalena sorridente, companheiro inseparável de quarto e sala de aula, sempre animado, dentes à mostra, mais aberto que armário de estudante solteiro longe dos pais.

À porta, um momento de distração do vigia, preocupado com os pedintes que se aglomeram na entrada incomodando a clientela.

Enquanto aguardamos na fila, olhamos para o chão e avistamos um ticket de caixa registradora, ainda sem carimbo e nenhuma rasura, tal como exigiam as balconistas no atendimento. Era nosso dia de sorte, bastava escolher.

-Qual o valor, Madá ?
-CR$ 3,00 , cara !
-Uh, que beleza, dá pra comprar 30 pãezinhos.
-Que pãozinho nada, vamos escolher algo melhor !

Aguardamos pacientes a nossa vez de fazer o pedido, embora apreensivos, com o ticket valioso nas mãos e buscando na tabela de preços alguma coisa que coincidisse com o valor autenticado. Corremos os olhos para cima e para baixo e estava lá, o último item do canto inferior esquerdo, meio apagado, mas legível. Nosso estado emocional oscilava a olhos vistos. Malandros inexperientes, nunca ousamos nada semelhante.

Próxima parada: fila para pagar, o pão somente, onde o rapaz do caixa nunca foi visto bem humorado. Última parada: fila para retirar. Dividimos a responsabilidade, um com o pão e outro com a novidade, grátis.

Senhor de si , grita Madalena, cheio de razão :
-Um Bingles, por favor !

Todos os olhares de espanto se voltam para ele.
-O quê ? - Retruca a balconista, perplexa.
- Isso mesmo que você ouviu, tá na tabela, o último item ali.

Na hora contive o riso no dedão do pé, mais vermelho que pimentão, mas agüentei firme, nossa reputação estava em jogo.
-Que bingles o quê, moço ! É b ponto inglês, Bolo Inglês.

Sem saber se ríamos ou chorávamos, Madalena suaviza com presença de espírito impressionante:
-Tô brincando, é isso mesmo !

Nunca vi Madalena tão sério, mas nossa cara lavada garantiu o reforço do lanche noturno. Jantar, nem de longe. Suamos um pouco e saímos felizes da vida. A volta para casa foi animada, quase mijamos nas calças de tanto rir, apesar do susto. Se contarmos hoje para o dono, duvido que ele acredite.

Ficou a lição : Mentira tem perna curta.

Fonte:
MENDES, Jeronimo. Muito Além do Cotidiano (crônicas). Curitiba, 2001.

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