segunda-feira, 9 de junho de 2008

Emir Macedo Nogueira (O homem que colecionava caixas de fosforos)

Publicado na Folha da Manhã, domingo, 1º de fevereiro de 1953.

Neste texto foi mantida a grafia original


Cada louco com sua mania. Balduino, apesar de não ser louco —pelo contrario, era até um individuo bem lucido, perfeitamente normal— tambem tinha a sua mania: a mais prosaica, a mais inofensiva, talvez a mais tola das manias: colecionar caixas de fosforos. Bem conservadas ou não, de qualquer formato, de qualquer marca. Balduino nunca se vexou de apanhar uma caixa de fosforos na rua, mesmo que estivesse acompanhado por sua namorada (mais tarde sua esposa), por um amigo ou pelo patrão.

Para se compreender bem o que aconteceu com o Balduino, em consequencia de sua mania, não se pode esquecer que ele viveu a vida toda em uma cidadezinha pequena, dessas onde todo o mundo se conhece. Não é de estranhar, portanto, que todos soubessem de seu singular habito, a ponto de ninguem mais reparar nele. Para a Mariazinha, vizinha do Balduino e que o namorou durante nove anos, vindo depois a casar-se com ele, nem essa atenuante ficou: a de poder dizer aos tribunais que "ele era um sujeito muito bonzinho, equilibrado, um chefe de familia exemplar mas de repente pegou uma mania, uma verdadeira obsessão, que transformou a vida conjugal em um 'inferno'".

A verdade é que a Mariazinha sempre pareceu ser muita compreensiva e tolerante, em relação à mania do Balduino, pelo menos enquanto não o desposou. No longo tempo de namoro e noivado (este durou seis anos), ela até o ajudava a encontrar novas caixas de fosforo, não reprimia interjeições admirativas diante dos castelos que ele construia com esse modesto material e até mesmo o incentivava a juntar mais e mais.

Foi só casar, porem, e... Minto. Começou antes. Já a confecção do bolo do casamento provocara a primeira rusga seria entre os dois. Balduino insistia em que o bolo tivesse a forma de uma caixa de fosforo, meio aberta, com os palitos aparecendo. E no alto dela, duas figurinhas simbolizando o casal de noivos. Mariazinha fez pé firme e, numa demonstração de como agiria depois de casada, colocou o futuro marido num dilema: ou ela (a caixa de fosforos) ou eu. Acredito que em outras circunstancias Balduino não hesitaria: optaria pela sua caixa de fosforo, sem pensar duas vezes. Mas, fosse porque gostasse mesmo da Mariazinha, ou porque os convites já tivessem sido distribuidos, os doces prontos, a cerimonia religiosa encomendada - fosse porque fosse, enfim - decidiu ceder dessa vez. Mas com uma conclusão: a de que as alianças fossem levadas, por dois garotinhos, para o casamento na igreja, dentro de caixas de fosforos, artisticamente enfeitadas...

Dizem as más linguas que, no dia do casamento Mariazinha ficou mais de meia hora em frente ao padre, com a igreja cheia, os convidados impacientes, esperando o noivo, que lá ficara, na casa que tinha alugado para a nova vida, tentando arrumar um lugar "decente" para as suas caixas de fosforos. Pode ser que seja verdade, mas eu não garanto.

Enfim, com todos esses pequeninos contratempos, o casamento se realizou. Durante os primeiros meses, parece que tudo correu normalmente, porque, como eu já disse, Balduino era um bom sujeito, compreensivo, muito simpatico e gostava da Mariazinha. Ninguem sabe quando esta começou de fato, realmente, ferozmente, a implicar com a mania do Balduino. A principio, apenas o impediu de apanhar novas caixas na rua. Quando os dois passavam para ir ao cinema, ou dar uma volta no jardim e Balduino vislumbrava na rua um dos pequeninos objetos que eram a sua obsessão, imediatamente começava a dobrar a espinha, para apanhá-lo e metê-lo no bolso. Mas com a Mariazinha ao lado, o gesto ficava inacabado. Ela se agarrava ao braço do marido, puxava-o com força e passava-lhe um sermão em regra, sobre comportamento de pessoas na rua, "o ridiculo a que muita gente se submete", etc. De tal forma o azedume da cara-metade era pronunciado, nessas ocasiões, que Balduino teve de resignar-se a renunciar a 312 caixinhas de fosforos, bem contadas, que lhe apareceram sob as vistas, sempre que estava em companhia da Mariazinha (durante os sete meses em que permaneceram juntos). Em compensação, os companheiros de trabalho do Balduino (trabalhavam numa modesta selaria que até hoje não sei porque cargas dagua se chamava "A Agulha de Aço"), nunca deixaram de lhe aumentar a coleção, seja reservando-lhe as proprias caixas que usavam, seja guardando para ele as que acaso achavam na rua.

Apesar de pouco ter transpirado, é facil supor que a vida do Balduino foi-se tornando um inferno, em vista da implicancia da Mariazinha. Volta e meia se comentava um novo ato dela, com relação direta à mania do marido: um dia, jogava no lixo (sem querer, dizia ela) uma meia duzia de caixas que o Balduino pacientemente tinha selecionado, entre as mais perfeitas da coleção; outro, pisava (tambem inadvertidamente), em cima de alguma caixa que o marido tinha esquecido de guardar); certa ocasião, chegou a jogar no fogo um castelo muito bonito, estilo medieval, que com paciencia beneditina o Balduino conseguira armar.

Como pobre casa sem ter nada e aos poucos vai comprando tudo aquilo de que necessita, quando Balduino e Mariazinha chegaram ao quinto mês de casados, sua modesta residencia já estava mais ou menos abarrotada de moveis, utensilios domesticos e bugigangas de toda especie. Mariazinha então começou a apertar o cerco:

"Baldo, a gente já vive esprimidinha aqui dentro, não tem nem lugar pra guardar a louça e você ainda enche a casa com esses baús cheios de 'porcaria'". Precisamos jogar essas porcarias fora."

Naturalmente, havia um certo exagero nas palavras de Mariazinha porque Balduino tinha apenas dois baús, grandes, é certo (de uns oitenta centimetros de comprimento), onde guardava as suas caixas de fosforo. Mas a mulher insistia tanto, falava, brigava, fazia cenas, que o Balduino decidiu adotar a solução extrema, dois meses depois.

"Já faz sete meses que estamos casados. Nem sinal de filho ainda. Quer dizer que Deus não abençoou mesmo o nosso casamento. Ela me martiriza todo dia. Não compreende a necessidade que eu sinto de ser artista, de criar alguma coisa, um castelo feito com caixas de fósforo, por exemplo. Então, o que é que eu estou fazendo nesta casa? Que vá às favas o casamento".

Deve ter sido esse o pensamento de Balduino, pois logo depois ele abandonou a mulher e voltou a residir com a mãe, viuva, com a qual morava antes de casar-se. Não dramatizou o rompimento, não discutiu, nem pediu ou impôs nada. Disse à mulher que não poderiam viver juntos, que ela tambem voltasse para a casa dos pais e ele continuaria dando-lhe uma pequena mesada, do parco ordenado que recebia na selaria.
Não se sabe qual foi a reação da Mariazinha diante da resolução do Balduino, porque se este, alma simples e ingenua, contou todos os fatos acima narrados aos companheiros de trabalho, ela não se abriu com ninguem.

O desfecho do caso não se fez esperar. Três dias depois da separação, Mariazinha apareceu na selaria e pediu para falar com o Balduino, num cantinho, longe dos ouvidos dos outros empregados. Dizem que não conversaram mais de três minutos. Um dos companheiros do Balduino, mais curioso, que não despregara os olhos do casal, viu o rapaz balançar resolutamente a cabeça, em sinal negativo, provavelmente diante de um pedido de reconciliação da esposa. Imediatamente, Mariazinha, desvairada, pegou em cima de uma mesa um instrumento de cortar couro, afiadissimo, em forma de meia-lua, e cravou-o no pescoço do Balduino, que não teve tempo de esboçar sequer um gesto de defesa. Os companheiros acorreram rapidamente, mas nada podiam fazer. O corte fora fundo, Balduino sangrava abundantemente e morreu ali mesmo, poucos instantes depois.
A cidade comenta até hoje as razões do gesto de Mariazinha. Para uns, foi a vaidade ferida, a vergonha de ter sido abandonada e todo o mundo, onde viviam, saber isso. Outros acham que ela amava realmente o marido e não poderia viver sem ele. Eu, por mim, acho que foi vaidade, sim, vergonha tambem: mas vergonha por ter sido vencida, na afeição do marido, por uma miseravel caixinha de madeira, fragil e feia.

Todos os moradores da cidade onde se desenrolou o drama ficaram profundamente consternados com a morte do Balduino. E, por iniciativa dos companheiros de trabalho do assassinado, decidiram prestar-lhe uma ultima homenagem, a mais significativa que puderam imaginar: organizaram uma lista para custear o enterro. E mandaram fazer um caixão com a forma, igualzinha, à de uma caixa de fosforos.

Fonte:
http://almanaque.folha.uol.com.br/

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