quinta-feira, 5 de junho de 2008

Gérson Valle (Vozes Novas para Velhos Ventos)

por Fernando Py

Vozes novas para velhos ventos, de Gérson Valle (Brasília: Thesaurus, 2007)1, é um livro que se assemelha ao último caso: sem exceção, trata-se de contos inspirados em obras-primas da literatura universal, sem fazer paráfrase ou paródia do texto original. Se as histórias de Valle não imitam nem tentam “melhorar” a fonte de que se servem, é porque o autor, embora se sentisse subjugado pelo alto valor da obra-prima referenciada, soube trabalhar numa tônica muito diferente, em que apenas o “miolo” foi conservado, ou nem isso.

Para o leitor comum, e mesmo para o escritor, contumaz ou não, os grandes clássicos da literatura exercem uma atração profunda e irresistível, sobretudo quando se trata de um principiante das letras. Este vai se sentir estimulado pela leitura de uma obra-prima, estímulo que lhe serve de apoio e, muitas vezes, de material a ser imitado ou emulado, de acordo com seu talento e perspectivas. Se o primeiro é escasso e as segundas ainda não lhe estão bem delineadas na mente, o produto em geral será uma imitação servil ou até assume contornos de plágio involuntário. Se for dotado de maior talento e inventividade, poderá escrever algo importante, que será lido com interesse apesar das óbvias relações com a obra-prima de referência. Existem casos em que o autor parte deliberadamente de um texto para construir outro, seja na tentativa de explicar certos episódios, seja para concluir de maneira diversa um desenlace que não lhe satisfaz – ou que oferece uma solução diversa –, seja ainda para retomar personagens ou até aspectos do texto original e elaborar um texto inteiramente diferente.

No primeiro caso, temos o romance A esfinge dos gelos, de Júlio Verne, e o conto To the mountains of madness ('Nas montanhas da loucura'), do norte-americano H. P. Lovecraft, ambos tentando explicar episódios estranhos ou deixados incompletos na Narrativa de Arthur Gordon Pym, de Edgar Allan Poe. O segundo caso pode ser explicitado por vários contos, em geral de ficção policial, como os de Jack Moffitt, que “refez” contos de Maupassant ('O colar de brilhantes') e outros. O último caso é o do livro Missa do galo: variações sobre o mesmo tema, em que seis escritores brasileiros retomam personagens do conto machadiano e produzem textos que pouco têm a ver com a história que lhes serviu de fonte. Em todos os casos, podemos ver que o escritor recria o texto porém os personagens já não são exatamente os mesmos ou quase não aparecem, como em Júlio Verne, estando ausentes de todo em Lovecraft. A esposa frívola do conto de Maupassant não se repete exatamente na história de Moffitt, e os personagens machadianos têm perfil psicológico variado nas histórias dos outros escritores. São mais ou menos como clones que o autor do texto aproveita para dar uma aparência do personagem original, para sugerir verossimilhança ao que está sendo narrado.

Vozes novas para velhos ventos, de Gérson Valle (Brasília: Thesaurus, 2007)1, é um livro que se assemelha ao último caso: sem exceção, trata-se de contos inspirados em obras-primas da literatura universal, sem fazer paráfrase ou paródia do texto original. Se as histórias de Valle não imitam nem tentam “melhorar” a fonte de que se servem, é porque o autor, embora se sentisse subjugado pelo alto valor da obra-prima referenciada, soube trabalhar numa tônica muito diferente, em que apenas o “miolo” foi conservado, ou nem isso. Acima de tudo, Valle fez questão de manter o “espírito” do texto original; assim, as obras-primas em que se baseou são unicamente pontos de partida para a elaboração de um texto bastante diverso, um texto inventivo, mais próprio à criação de Gérson Valle, criação que às vezes surpreende nas entrelinhas da elaboração de uma frase.

O primeiro dos dez textos do livro – “Amor clonado” – aborda justamente o problema da clonagem, tendo como referência o conto “As ruínas circulares”, do argentino Jorge Luis Borges. Assim como em Borges um homem deseja criar um ser humano, simples aparência, por meio do sonho, e afinal descobre que ele próprio era uma aparência, que outra pessoa o estava sonhando, o Dr. Pater Clonem, personagem de Gérson Valle, reproduz uma aparência de mulher, o clone feminino Broda Bruda Hermana y Hermana, por quem, qual novo Pigmaleão, se apaixona. Mas não consegue que esse clone corresponda ao seu amor, e sua frustração o faz perceber a inanidade daquele amor pela criatura que realizou, cuja ética, por sua vez, poderia fazê-la desejar não somente o corpo, “que se copia e reproduz, mas o impossível além de todos nós...”
Em “Bromélias enfiteutas”, a fonte de referência é o romance Contraponto, de Aldous Huxley. A técnica de Huxley consiste em justapor na narrativa dois ou mais blocos de acontecimentos com certa independência de desenvolvimento, mas sempre ligados entre si. Gérson Valle se utiliza não propriamente do contraponto huxleyano mas de uma espécie de contínuo flash-back. no qual o economista Carlos Carreira da Costa, negro e de origem humilde, recorda o seu passado principalmente desde uma ocasião em que estivera por algum tempo em Petrópolis, de namoro com uma mocinha rica. O conto põe em relevo, com alguma ironia, os prejuízos que o tempo e a ocupação desenfreada das encostas causaram na paisagem e no nível de vida da cidade imperial.

O terceiro texto, “Missas de galo”, aproveita o mote do conto de Machado para desenvolver uma história bastante diversa. É o caso de um sujeito muito dedicado à obra machadiana, e que vai a Parati a fim de procurar conhecer pessoalmente o cineasta Nélson Pereira dos Santos, que ali filmava Um azyllo muito louco, baseado em 'O alienista', conto do livro Papéis avulsos de Machado. E assim como na “Missa do galo” de Machado, o adolescente Nogueira, ingênuo e de boa-fé, perde canhestramente a oportunidade de ouro “de comer uma balzaquiana” como a Conceição, assim o narrador se perde e se atrapalha diante do cineasta a quem admira e não realiza seu maior desejo, além de mostrar-se inadaptado às condições de vida que exigem mais determinação e força de vontade.

Já o conto “Crimes sem castigos”, a partir mesmo do título, tem como referência o romance Crime e castigo de Dostoievski. O romance do escritor russo se enquadra na questão do “crime permitido”, ou seja, aquele que do ponto de vista do criminoso seria perdoável, como, por ex., a eutanásia. Assim, o protagonista da história de Gérson Valle – um rapaz russo de nome (Raskolnikov) americanizado significativamente para Nick Raskow, que vive no exílio em Nova York – adora passear no Central Park, onde se sente em casa, apaixona-se por uma moça, Sonetchka (diminutivo de Sônia, como a heroína de Dostoievski), que se prostitui para sustentar o velho pai bêbado e imagina que matá-lo seria um benefício. Percebe que não conseguiria cometer o crime. Mas conhece duas velhinhas que só fazem se lamentar da solidão na velhice e desejam que a morte as visite. Raskow então resolve lhes fazer a vontade. E passou a viver disso, poupando o desgosto da velhice às pessoas idosas e solitárias, encontrando naquele serviço a sua identificação com o american way of life, numa sociedade onde só é apreciado aquele que cumpre “um trabalho com competência”, seja qual for... A visível ironia de Valle, nem sempre exposta com nitidez, surge aqui em todo o seu caráter subreptício de condenação.

O conto seguinte, “Alguma coisa vai acontecer”, cujo texto inspirador é o romance Doutor Fausto (1947), de Thomas Mann, recupera a idéia de fazer um pacto com o demônio, vendendo a alma em troca de prazeres ou benefícios terrenos. A história de Mann deve provir da lenda de um certo alemão Faust (1480? – 1540?), que teria vendido a alma ao diabo, fato que, de certa maneira, sintetiza as aspirações de dominação do homem renascentista. A lenda se tornou grandemente popular, tendo sido aproveitada por diversos escritores, como Christopher Marlowe (1588) e sobretudo Goethe, que lhe confere uma alta significação filosófica e humana. O romance de Mann foi escrito durante a II Guerra Mundial, e o doutor Fausto é um compositor erudito, Adrian Leverkühn, personagem que alcança grande força simbólica, corporificando a soberania e a queda da Alemanha inteira, à época em que a nação compactuava com as forças demoníacas do nazismo.

O protagonista do conto de Gérson Valle é um funcionário público que conhece num dos bares da Cinelândia, no Rio de Janeiro, um indivíduo manco, de cabelos de fogo, que lhe faz promessas, “como se dissesse: Tome seus chopinhos e eu lhe darei tudo que suas frustrações não lhe têm permitido. Não tem dúvida que, durante a noite, alguma coisa vai acontecer...” E assim, durante anos, iludido no íntimo, o funcionário, que nunca mais se encontrou com o sujeito manco, fica à espera do que virá... De certo modo, Gérson Valle está ironizando a credulidade do funcionalismo público – e por extensão, do próprio povo – nas promessas sempre postergadas dos políticos.

Quando a humanidade pode se ver reduzida a simples números de registro e identificação, seria o caso de organizar uma insurreição geral, ainda mais que praticamente todos os seus atos são vigiados por um ser superior que se intitula Big Brother. Este é o caso do romance 1984, de George Orwell, referência para o conto “027.135”, de Gérson Valle. Sabemos que, na história de Orwell, um homem se apaixona por uma mulher (secretamente, pois o amor é proibido e as pessoas só podem ter relações exclusivamente para procriar, quase como animais) e ambos decidem enfrentar o poder do Big Brother. Algo semelhante ocorre na história de Valle, com algumas diferenças fundamentais. O homem, aliás narrador do conto, é tratado pelo número que dá título à história; possui um temperamento bastante contemplativo e esse é o apelido que a moça Barrolda lhe dá. Por sua vez, é Barrolda quem, achando excessiva a intromissão dos dirigentes no controle de suas vidas, sugere uma rebelião, que afinal não se concretiza. Contemplativo se perde em filosofias vagas, mostrando-se incapaz de passar da reflexão à ação, como muita gente no nosso mundo.

O protagonista do conto seguinte, “O fantasma de Hamlet”, é um certo mineiro Joel Campos. Aqui, a história de Valle tem como referencial a peça de Shakespeare, enfatizada sob o aspecto da dúvida. Joel Campos desconfia da eficácia da atual globalização, sobretudo quando chega pela primeira vez a Londres, de avião – para ele, como para muita gente, “todos os aeroportos se parecem”.2 As decepções que sofre na capital britânica, que julgara melhor do que parecia ser, e suas dúvidas a respeito do personagem de Shakespeare, cuja peça assistira então pela primeira vez, acabam por fazer com que ele alugue um carro e saia de qualquer jeito, na contramão, como para libertar-se psicologicamente daquela globalização castradora e impor seu modo de ser em todas as circunstâncias.

Temos visto que os textos aproveitados por Gérson Valle como referência para seus contos são quase sempre, além de obras-primas, histórias que destilam um tom especial, seja no assunto ou na maneira de desenvolvê-lo, seja na atração exercida sobre o leitor – e aí Gérson Valle é um pouco de todos nós, leitores. O mesmo ocorre com o romance O processo, de Franz Kafka, que serve como ponto de partida para o conto “O encontro”. O título já é estranho em si, pois uma das características do escritor tcheco é o “desencontro”, tanto dos protagonistas com os demais personagens, quanto consigo mesmos. Mas o encontro da história de Valle se refere a um encontro verdadeiro com K., “um ser tão comum!” exclama o narrador. Esse encontro, todavia, é de fato um tête-à-tête incompleto, pois K tanto pode ser o autor Kafka como um de seus muitos personagens chamados apenas por essa inicial, ou que a transportam no nome. De qualquer modo, o narrador tenta discutir com esse K todas as dúvidas e perplexidades que a leitura de Kafka lhe provoca. Mas em vão. K não aceita discutir, pois o enorme sentimento de culpa que carrega consigo impede que seu retrato se faça completo aos olhos e à palavra do narrador.

Mas é necessário que o leitor de Valle atente para o que escrevi no começo a propósito das entrelinhas da elaboração de uma frase. “O encontro” principia com a seguinte frase: “Na frente da catedral, encontrei K.” Nada de mais? Vejamos: “na frente” pode significar, “no princípio de”; catedral começa com ca, ou seja, o fonema k. Assim temos: “no começo da catedral achei o fonema k.” Dirão que é irrelevante, e eu concordaria se em Kafka e na história de Valle a catedral não tivesse nenhum destaque. Mas não é o caso, pois qualquer leitor de Kafka sabe como é importante a letra (o fonema) K em sua obra. Valle, portanto, de modo subreptício, concede pistas para a leitura de seus textos.

O conto final não tem como referência uma obra literária, mas um conjunto de textos musicais. “24 prelúdios” tem como origem o conjunto das 24 peças com esse nome de Chopin, obra-prima do Romantismo pós-beethoveniano. Aqui, Valle cede ao seu lado de profundo conhecedor de música, não só como teórico mas libretista de óperas (como Olga, de Jorge Antunes, e Fronteira, de Guilherme Bauer, baseada no romance de Cornélio Pena), e que possui diversos textos poéticos musicados por Ernani Aguiar, Ricardo Tacuchian e muitos outros. Sua história narra, em 24 parágrafos, a vida de um certo Frederico, exímio no violão. O texto acompanha, até certo ponto, a vida e os amores do próprio Chopin, pois entre outras coisas conhece uma moça Aurora, que também se faz chamar Jorge,3 com quem vive um romance cheio de altos e baixos, exatamente como Chopin. A história, como na realidade que conhecemos, se resolve num rompimento entre os dois. E assim se encerra o livro de Gérson Valle, que, por sua originalidade e desenvolvimento, é um dos melhores lançamentos deste ano.
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Notas
1. Prêmio Nacional da ANE (Associação Nacional de Escritores, de Brasília) no ano de 2006.
2. Adaptação da frase de Georges Bernanos no começo do romance Journal d'un curé de campagne: “Toutes les paroisses se ressemblent” ('Todas as paróquias se assemelham”.)
3. Aurora: prenome da escritora francesa Aurore Dupin, baronesa Dudevant (1804-1976); Jorge, nome pelo qual era mais conhecida como escritora (George Sand). Teve uma relação amorosa e prolongada com Chopin.
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Fernando Py é poeta, escritor e tradutor, membro da Academia Brasileira de Poesia e da Academia Petropolitana de Letras.
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Fonte:
Jornal de Poesia
http://www.secrel.com.br/jpoesia/gvalle.html

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