terça-feira, 25 de novembro de 2008

...E o Sertão Virou (Bel)Mar (entrevista com Cícero Belmar)

Entrevista realizada em outubro de 2008 por Raimundo de Moraes

Cícero Belmar é escritor e jornalista. Natural de Bodocó (PE), filho de Adrina e Cícero (Bé), nasceu a 20 de janeiro de 1963. Ele acabou de lançar o romance "Rossellini Amou a Pensão de Dona Bombom", que recebeu os prêmios de ficção Vânia Souto Carvalho, da Academia Pernambucana de Letras, e o Lucilo Varejão do Conselho Municipal de Politica Cultural, da Fundação de Cultura do Recife.

Este é o segundo romance de Cícero. Em 2001, ele lançou "Umbilina e Sua Grande Rival", que também recebeu o mesmo prêmio da Fundação de Cultura. Além desses dois romances, ele tem também um livro de contos, "Tudo na Primeira Pessoa" e duas biografias: "POla" e "O homem que arrastou rochedos".

Ele também é autor de teatro, com três peças de sua autoria encenadas no Recife: "A Flor e o Sol", "A Floresta Encntada" e "Coração de Mel". Além de escritor, Cícero Belmar tem uma larga experiência como jornalista, já tendo recebido duas vezes o prêmio Cristina Tavares de Reportagem. Ele trabalhou em Redações de vários jornais e televisões em Pernambuco.
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Há tempos que eu queria entrevistar Cícero Belmar. Uma das primeiras lembranças que tenho da sua gentil pessoa é quando, entre uma aula e outra, nos encontramos por acaso num dos jardins da Universidade Católica de Pernambuco (à época ele terminava Jornalismo e eu era calouro de Direito). Eu disse, com certo espanto: seu nome ao contrário significa mar belo. E ele riu. Ora, não é que desse mar saíram muitos tesouros? Competente na profissão que resolveu seguir e um dos melhores escritores de Pernambuco na atualidade, entrevistar Belmar na verdade foi um presente para mim. Quando o nosso bate-papo virtual ia se desenrolando, eu me deliciava com o seu Acabou-se o que era doce! – o livro, por si só, valeria uma outra entrevista. Mas fica o gostinho de quero mais. Com vocês, um sertanejo com alma universal e que faz iluminar ainda mais este Recife de muitas histórias e de muita poesia.

Raimundo de Moraes: Como surgiu a idéia de escrever Rossellini Amou a Pensão de Dona Bombom?

Cícero Belmar: Minha intenção era fazer uma espécie de trilogia pernambucana. Não uma trilogia no sentido mais tradicional, de uma história ter uma seqüência na outra. Ou de um personagem se repetir na outra história. Não. Eu queria fazer uma trilogia mais geográfica, mais de costumes, de formas de expressão, de culinária. Então eu lancei primeiro Umbilina. É uma história sertaneja. Não gosto de dizer que é regionalista. É uma história de realismo mágico (expressão que também tá demodè). Eu usei o catolicismo popular para mostrar que se vive na prática o realismo mágico no Sertão de Pernambuco. Pode perguntar à Cida, que ela não me deixa mentir. É puro realismo mágico. Cida mesma conheceu dona Maria Nenen, dona Ermínia dos Paus Pretos. Pois bem. Fiz Umbilina, que era sobre Bodocó, a terra onde nasci. Fiz uma pesquisa de linguagem, de termos, etc. Depois, queria escrever uma história sobre o Recife. Comecei a pesquisar e vi que era melhor falar sobre o Recife dos anos 50. O glamour das noites do Bairro do Recife. Passei a ler sobre a prostituição, sobre o cais do porto. E me envolvi demais, entrevistei velhas putas. Resgatei umas histórias e vi que todas as mulheres dali tinham uma forte ligação com São Jorge, com Xangô, com Oxum. E os fatos foram se juntando na cabeça. À parte isso, tem aquele lance de dizer que havia casas mal-assombradas no Recife. E eu fui juntando o glamour com o sobrenatural. Até que um dia, conversando com Liêdo Maranhão, ele me mostrou umas fotos pornográficas (bem artísticas) do Recife Antigo. E eu entrei naquele clima mesmo: havia sacanagem, mas era um tempo artístico, entende? Foi quando ele me disse que Rossellini esteve na zona. Eu disse: caramba! É a minha história. Então, eu juntei verdades e mentiras. E deu no que deu. Quanto ao terceiro livro da "trilogia", lancei no dia 31 de agosto deste ano Acabou-se o que era doce!, que fala da politização do pernambucano. A história começa no Recife e vai até o Sertão. Desta vez não mais Bodocó, mas Floresta do Navio.

Em Rossellini você usa preâmbulos que antecedem os capítulos - recurso muito utilizado, por sinal, por grandes nomes como Cervantes, Dickens, Jonathan Swift etc - só que você deu um toque pessoal: uma frase ora filosófica, ora metafísica arrematando o preâmbulo. Como foi a concepção estética do livro? Ao fazer suas pesquisas você já sabia que formato final ele teria?

Antes de começar a escrever a história, eu fiz uma espécie de roteiro, uma divisão dos capítulos, e defini o que diria em cada um. Fiz um resumo com frases-chaves para eu não me perder a idéia original durante a narração. Podia até mudar a idéia, mas não perdê-la. Morro de medo de esquecer a lógica do que estou escrevendo. E no caso de "Rossellini..." consumi seis meses. As frases que fui anotando para não perder o fio da meada eram do tipo: capítulo X "Dora trai o amante americano..."; capítulo Y "A cartomante prevê a chegada de um homem muito importante...". Depois eu me perguntei: já que essas frases foram escritas, por que não usá-las nos preâmbulos? Não houve uma intenção de copiar, mas terminei copiando os clássicos. Quando resolvi usar essas, pensei em dar a elas um marketing. Eu queria "vender" o capítulo para o leitor. Oferecer o produto escrito, mas oferecer de uma forma que seduzisse o leitor. Então, as frases precisavam ser mais que informativas. Elas deveriam ter uma adjetivação. E eu encontrei isso quando comecei a pesquisa sobre o neo-realismo. Isso que você fala de metafísico ou filosófico está no neo-realismo, que é uma corrente artística que mistura realidade e ficção. A proposta do livro era exatamente essa, misturar esses dois eixos. E os preâmbulos surgiram, finalmente.

E o seu envolvimento com o teatro? Nesta área você também é um autor premiado...

Eu comecei lendo peças, ainda na adolescência. A primeira foi uma desconhecida, de Jorge Amado, O Amor do Soldado. Depois, li O Santo Inquérito, de Dias Gomes e essa mexeu comigo. Eu fiquei muito reflexivo com aquela força que vinha do texto. Então eu fiquei pensando: como é que se faz isso? Li o texto e posteriormente tive a oportunidade de ver o texto montado por um grupo local de teatro do Recife, no Valdemar de Oliveira, cuja atriz principal era Marilena Breda. Ela fazia Branca Dias. Foi outra surpresa pra mim. No texto escrito e no texto montado, vi claramente que eram duas coisas iguais e diferentes ao mesmo tempo. Aí eu descobri a possibilidade. Teatro me encanta pela possibilidade, pelos mil caminhos que ele te indica E me empolguei. Aí continuei lendo. Li Vestido de Noiva de Nelson Rodrigues, os textos de Maria Clara Machado, li Ibsen, Brecht, Federico García Lorca. Um dos textos que mais que marcou foi As Lágrimas Amargas de Petra Von Kant, de Rainer Werner Fassbinder. Já que estava no embalo, também li todas as teorias de teatro, até que um dia eu pensei: não vou ler teoria, não quero ser diretor de teatro. O que eu sou mesmo é um curioso que escreve. E fui me envolvendo com a proposta de literatura para teatro. Como eu tenho uma facilidade muito grande de fazer diálogos, então os textos brotaram com mais facilidade. Teatro exige muito cuidado, exige que a palavra usada seja muito medida, pois a palavra é a jóia do império. Através do diálogo, sem o artifício de descrever as cenas, você tem que estabelecer um pacto, de fazer o jogo acontecer. Ou seja, é preciso usar a palavra certa e forte. Teatro e literatura é um casamento perfeito, como a pintura e a escultura; como a música e a dança.

Escrever peça infantil é mais difícil que escrever para adulto? Você tem "na gaveta" alguma peça que ainda não foi encenada?

Em geral, as pessoas acham que escrever para criança é difícil porque se trata de uma relação de desiguais. E é. No caso, escritor adulto escreve para um leitor infantil. São dois mundos diferentes. A pessoa que escreve para criança precisa fazer um exercício de humildade, desfazer-se das carapaças que a vida adulta vai colocando ao longo do tempo. Precisa também entender de poesia, saber da importância dos detalhes, sem nunca ser piegas. Caso contrário, ele nunca chegará à criança da platéia. Realmente não é simples escrever peça de teatro infantil, pois além desse desafio de captar o interesse da criança, é também preciso emocionar a pessoa adulta que acompanha a criança ao teatro. Criança nenhuma vai sozinha para o teatro, por isso é preciso lançar mão de uns temas "adultos", entende? É um desafio para qualquer escritor. Mas, apesar disso, os autores de peças infantis não são reconhecidos pelas suas obras. E quando eu falo desse não-reconhecimento estou falando da crítica, das instituições que controlam as políticas culturais e até mesmo da classe artística. Você não encontra o reconhecimento que merece. O nobre é fazer teatro adulto. Quem faz teatro infantil o reconhecimento acaba quando a temporada acaba. Então eu me pergunto: o gênero dramático (teatro infantil) está enfraquecido? Ou as pessoas é que são preconceituosas com o teatro infantil? Eu posso questionar, pois tenho cinco peças infantis, sendo uma delas ainda inédita, cujo título é Os Vaga-lumes. Das quatro que já foram montadas no Recife, três ganharam prêmios. Uma, de melhor texto pela Apacepe (Associação dos Produtores de Artes Cênicas de Pernambuco) e as outras duas receberam o Miriam Muniz.

Agora um pouco de jornalismo. Na época dos nossos pais e avós a profissão de jornalista era até mal vista, aquela coisa: vai morrer de fome! Hoje, nos vestibulares, as vagas para os cursos da área de comunicação social são concorridíssimas. Parece que todo mundo quer ser jornalista e publicitário. É modismo ou é a glamourização do Quarto Poder?

É tudo isso e mais o desconhecimento sobre o mercado de trabalho. Eu fico impressionado como é que, nos dias de hoje, com tanta informação disponível, as pessoas insistem em tomar decisões sem levar em conta sobre o futuro, sobre o que a profissão pode garantir. Hoje, em cada esquina você encontra uma pessoa formada em jornalismo, mas grande parte não sabe escrever uma notícia. Aliás, não sabe juntar duas frases com objetividade e clareza. Qual o destino desse profissional, num mundo cada vez mais exigente, num mercado que está pedindo multifunções? E então eu me pergunto se as faculdades estão de fato cumprindo o seu papel, voltando à discussão dos anos 90, de que fazer um curso superior de jornalismo era inócuo, dispensável.

Em 2005, quando você era editor executivo do Jornal do Commercio, foi demitido sumariamente por autorizar a publicação de uma matéria que ia de encontro aos interesses da diretoria do Sistema JC de Comunicação. Sua demissão causou protestos de jornalistas daqui e de outros Estados - houve até um abaixo-assinado com apoio de várias entidades: Instituto Paulo Freire, Movimento Nacional de Direitos Humanos, Sindicato dos Jornalistas etc. Hoje, em 2008 - e se ainda fosse funcionário do JC - você tomaria a mesma decisão de 2005?

Mais do que nunca, hoje eu tenho clareza de que mandaria publicar. Sou contra o trabalho escravo, como qualquer pessoa de bom senso. O Jornal do Commercio não me demitiu por causa da matéria em si, mas porque a publicação da matéria poderia ferir a amizade do dono da Folha de Pernambuco (proprietário da destilaria que estaria mantendo os trabalhadores em regime de semi-escravidão) com o dono do Jornal do Commercio. Agora veja que ironia: meses depois da demissão eu fui procurado por uma pessoa da Folha de Pernambuco que me trazia um recado dos diretores da empresa, mandando dizer que jamais, em tempo algum, pediram minha cabeça ao Jornal do Commercio. Ou seja: O JC foi mais real que o rei. Mas, eu digo e repito: um editor executivo tem cargo de confiança do jornal e deve fazer o que for determinado a um editor executivo. No meu caso, eu mandei publicar porque sempre arquei com o ônus e o bônus da função. Nunca me arrependi de ter publicado.

Existe imprensa livre?

Não. E vou dizer mais: a imprensa não é livre nem mesmo para o dono. Um jornal, por exemplo, nem sempre publica só o que o dono quer. O poder público manda nos jornais (ou o jornal publica a notícia favorável ou o poder público não manda publicar os milhares de editais). O poder econômico manda nos jornais (ou o jornal pega leve ou os empresários não publicam os anúncios). A religião tem influência num jornal. Os amigos do dono do jornal e os familiares têm influência, sim, no que o jornal publica. Sabendo disso, o leitor precisa ter senso crítico para formar sua opinião sobre o que vê, lê e escuta. Já conheci uma pessoa que declamava, na mesa do bar, tudo o que lia nas páginas da Veja. E jurava que era uma pessoa bem informada. Convém ler mais de um jornal ou mais de uma revista, ver mais de um canal de televisão, ouvir mais de uma emissora de rádio. Mas, é bom a gente fazer uma reflexão: quando um leitor compra um jornal ou uma revista faz isso de livre e espontânea vontade. Ele compra sabendo exatamente o tipo de informação que vai encontrar ali. É uma opção dele. Ou seja: ele tem o poder de comprar ou deixar de comprar, caso não goste daquele produto.

Estou lendo o seu último livro publicado, o Acabou-se o que era doce!, cuja história se passa no município de Floresta, Sertão pernambucano. Aproveitando o mote e para finalizarmos esta entrevista gostaria de saber como você se relaciona com as suas raízes interioranas. Muitas pessoas que migram para a cidade grande vivem um misto de nostalgia-mágoa, nostalgia-alegria, nostalgia-repulsa ou outros preferem esquecer de vez que nasceram no interior. E com você? Como Bodocó situa-se no âmbito afetivo?

Sem Bodocó eu jamais seria isso que aprendi a ser. Tudo o que escrevo tem a ver com o que sou, com o que fui, com o que quero ser. E eu sou apenas uma pessoa modesta que, se tiver chance, dispara no cavalo magro de Dom Quixote e ganha o mundo. E ganho.
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Raimundo de Moraes é poeta, cronista, jornalista e colunista da INTERPOÉTICA
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Fonte:
http://www.interpoetica.com

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