domingo, 19 de abril de 2009

Kelly de Souza (Tupi or Not Tupi?)



A Identidade do Brasil Pré-Colonial na Obra de Autores Índios e Escritores Indigenistas

Diz a sabedoria popular que a história sempre tem duas ou mais versões. O Descobrimento do Brasil, em abril de 1500, não fugiu à regra. Cedo, aprendemos com Pero Vaz de Caminha, escrivão da expedição de Cabral, como se comportavam os índios da recém-descoberta terra. A carta de Caminha, considerada a primeira obra literária do país, descreve com deslumbramento ao rei Dom Manuel, essa “gente de tal inocência”. Empolgado com a “bela simplicidade” deles, Caminha faz sua aposta: “Se entendêssemos a sua fala e eles a nossa, (...) não duvido que imprimir-se-á facilmente neles qualquer cunho que lhe quiserem dar”.

Graças a este documento, conhecemos as impressões (e intenções) dos primeiros contatos entre portugueses e indígenas. A escrita, ferramenta fundamental nesse processo, não era dominada pelos índios, cuja oralidade funcionava como instrumento de transmissão das histórias vividas, dos mitos e das lendas criadas. Essa “memória ancestral”, passada de geração para geração, ficou bem escondida entre as matas e etnias dessa terra chã. A história do Descobrimento brasileiro ficou apenas com uma versão: a do homem branco.

O antropólogo Darcy Ribeiro dedicou grande parte de sua vida a contar o evento por outro ângulo, dessa vez, o do indígena. Com uma vasta obra etnográfica, o escritor deixou importantes livros sobre o tema, como Maíra, Os índios e a civilização e O povo brasileiro. Neste último, figuram de forma veemente as opostas visões entre colonizador e colonizados. “Os índios perceberam a chegada do europeu como um acontecimento espantoso, só assimilável em sua visão mítica do mundo. (...) Recém-chegados, saídos do mar, eram feios, fétidos e infectos.”

Se na antropologia o assunto ganhou densidade no século 20, foi a literatura que inaugurou a discussão. Já no 18, autores passaram a dedicar obras baseadas no mundo indígena, a partir de relatos de pessoas que tiveram contato com diferentes etnias e nas crônicas de viajantes dos séculos 16 e 17. O Uraguai, poema épico de 1769, escrito por Basílio da Gama, critica frontalmente os jesuítas em suas relações com os índios. Caramuru, escrito em 1781 pelo frei Santa Rita Durão, é outro exemplo de épico que relata a história de um náufrago português que viveu entre o povo indígena.

É na primeira geração de escritores do Romantismo, do século 19, que o índio vira foco da literatura brasileira, representando a pureza, o heroísmo, a coragem e o homem não corrompido pela sociedade. Nessa época, surgem diversos personagens-heróis que marcam a literatura indianista, como I-Juca-Pirama (Gonçalves Dias), O guarani, Iracema e Ubirajara (José de Alencar). O selvagem, de Couto de Magalhães, foi escrito a pedido de D. Pedro II para a Exposição Mundial de Filadélfia (EUA), em 1876. Já no século 20, o romance Quarup (esgotado), de Antônio Callado, se desenrola no Xingu.

CHOQUE CULTURAL?
Se o primeiro contato entre “homens brancos” e índios causou profundo estranhamento, mais de 500 anos depois – apesar de toda a evolução feita no campo das ciências sociais –, este choque cultural parece não ter sido resolvido. Ambos parecem se conhecer na mesma profundidade relatada em 1500. Não faltam motivos para a deficiência na comunicação e interação, porém a ausência da escrita formal, em português, figura mais uma vez como uma das responsáveis. Fica tudo como na época de Caminha: não índio contando a história de índio.

A literatura brasileira sempre esteve ligada aos indígenas, mas de forma dependente da escrita de não índios, o que configurou a chamada literatura indianista ou indigenista, desenvolvida por especialistas no assunto. A formação de uma escrita genuinamente indígena, ou seja, criada por autores índios, é um fenômeno atual, ocorrido há menos de 15 anos. De acordo com um dos pioneiros da literatura indígena, Daniel Munduruku, autor de Todas as coisas são pequenas, entre outros, a escrita é uma conquista recente para os 230 povos, que falam quase 200 diferentes línguas e dialetos, existentes no país. “A literatura indígena nasceu a partir do momento em que eles assumiram um papel mais político na sociedade brasileira.” Munduruku, que preside o Instituto Indígena Brasileiro para a Propriedade Intelectual (Inbrapi), defende que é pela oralidade que os povos mantêm sua tradição, mas só por meio da escrita será possível oferecer à sociedade uma visão histórica e atual deles.

O BRASIL É ACANHADO?
Para a professora Graça Graúna, potiguar de São José do Campestre (RN), sim, quando comparado a outros países da América Latina. “Falta abertura, leitura e informação para que possamos diminuir os preconceitos existentes. Muitos (não índios) exclamam: ‘Ah, eles escrevem, ah, eles pensam’. Temos ainda que brigar muito, essa é uma luta pela palavra. E ela é sagrada, seja indígena ou não.” Graça explica que o crescimento da literatura indígena representa um novo movimento das caravanas portuguesas, só que agora em sentido inverso. “Nós estamos redescobrindo o Brasil. Não chegaram aqui as caravelas de Cabral, Pero Vaz de Caminha e suas cartas? Agora é nosso momento de contar a história, de dizer o que estamos fazendo.

Quem tem feito esse caminho são os índios que vivem nas grandes cidades e trilharam o mundo acadêmico. Há um segundo tipo, que manteve contato maior com a cidade sem a academia. E, o terceiro perfil de escritor-indígena é aquele que vive em sua comunidade e faz o resgate da oralidade dos mais velhos. Para isso, existe hoje um movimento editorial nesses locais, financiado essencialmente por órgãos governamentais, como o Ministério da Educação e Cultura, que visa a formação de professores e a implantação de escolas nas aldeias.

A partir da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), esse trabalho formou no estado cerca de 300 professores em nível médio. “Com a capacitação de mais índios, cerca de 60 livros foram publicados, a maioria em língua indígena”, comenta Maria Inês de Almeida, professora da UFMG e coordenadora do projeto. Em 2006, ela também coordenou a criação do primeiro curso superior para professores indígenas, que formará uma turma de 140 alunos em 2010.

Dados do Censo Escolar INEP/MEC mostram que a oferta escolar para esses povos cresceu 48,7 % , entre 2002 e 2006, em cursos que vão da educação infantil ao ensino médio. A expansão anual da matrícula em escolas indígenas aproxima-se de 10% ao ano. Nenhum outro segmento da população no Brasil apresenta igual crescimento. Cerca de 100 escritores índios atuam hoje no país e, de acordo com Daniel Munduruku, esse número não para de aumentar. Prova disso é a realização da sexta edição do Encontro de Escritores Indígenas, que ocorre de 10 a 21 de junho, no Rio de Janeiro, durante o Salão do Livro, da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil.

LITERATURA ORAL
Não seria exagero citar a crise existencial de Hamlet, na peça de Shakespeare, para representar a “tragédia” que muitos estudiosos e críticos têm criado em torno da escrita indígena: afinal, é ou não literatura? Autor de 35 livros publicados, Daniel Munduruku diz que a justificativa dos opositores é que estes escritores não dominam o instrumental da escrita e é através da oralidade que são transmitidas as histórias, portanto, esta literatura seria inexistente. “A justificativa é um engodo, porque estão tentando definir o que é indefinível. Decifrar o que é indecifrável. Quem escreve textos literários não quer filosofar, nem teorizar, quer escrever e mostrar o que sabe.”

Graça Graúna explica que, quando um índio é apresentado como escritor, desperta a curiosidade da sociedade. “Ainda falta quebrar um monte de preconceito, e as noções de cultura, literatura e ancestralidade têm que existir sem essas amarras.” E não foi apenas a respeito disso que a escritora já sofreu preconceitos. “Fui muitas vezes questionada e impedida de ser vista como indígena por morar na cidade. Ora, você não precisa estar em uma aldeia para ser índio.”

Uma das mais atuantes defensoras da literatura indígena, a escritora Eliane Potiguara compara esse imbróglio à discussão de gênero. Formada em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, ela diz que um dia não será mais necessário questionar se é ou não literatura. “É parecido com o que aconteceu em termos da inserção feminina no mercado de trabalho.” Autora de três livros, Eliane diz que essa literatura tem sido bem recebida pela sociedade, e os índios se sentem valorizados. “Cada vez mais, precisamos provar que existimos para essa antropologia burguesa e que queremos mostrar o que temos.”

Quem também deve ouvir o que tais autores têm a dizer é a Academia Brasileira de Letras (ABL), que organiza um encontro inédito, em seu salão nobre, no próximo 16 de junho. “A ideia é abrir um diálogo com os imortais para aproximar as duas literaturas e mostrar que o que se produz na floresta – a oralidade – é também a literatura utilizando o mecanismo da palavra”, explica Munduruku.

DESBRAVANDO O MERCADO

Apesar de ocupar espaço crescente no segmento, ainda são poucos os autores que veem suas obras publicadas em grandes editoras comerciais. Publicado pela Companhia das Letras, Daniel Munduruku acredita que o mercado percebeu o nicho que precisa ser explorado. “Os indígenas estão produzindo porque existe demanda e o livro chega cada vez mais para esse público comprador.” Segundo ele, o problema é que essa literatura, como é pouco conhecida, não consegue disputar espaço nas livrarias com os grandes best-sellers.

Para Graça Graúna, a questão não é tão simples. O mercado editorial é construído por modelos. No geral, as editoras querem vender livros. “São aquelas obras que têm um grande campo de comercialização. Os grupos editoriais ainda mistificam a literatura indígena”, explica. Já Munduruku espera ainda mais a ampliação do mercado. “O Brasil nos conhece pouco. E os leitores precisam ler seus próprios autores e, quando o povo perceber isso, será o momento em que esta literatura despontará ainda mais.”

O grande filão é o público infanto-juvenil. A obrigatoriedade do ensino da temática tornou o governo e as escolas os maiores compradores dessas obras. Recentemente, a Secretaria Municipal de Cultura e Educação do Rio de Janeiro comprou 1.300 exemplares do livro Metade cara, metade máscara, de Eliane Potiguara, para distribuir nas bibliotecas da cidade. “É preciso sensibilizar outras secretarias municipais para ampliarmos o alcance da literatura indígena no Brasil. Neste ponto, o governo tem papel fundamental.”

O DESTINO DO JAGUAR

Se as editoras ainda têm reservas em relação à publicação em massa da produção indígena, o mesmo não ocorre com a indianista, escrita por não índios. Nunca se viu a publicação de tantas obras com tal temática. Uma delas é Couro dos espíritos, da respeitada antropóloga Betty Mindlin, que conta fábulas e relatos sobre a tribo gavião-icolen, de Rondônia. Outro lançamento badalado é Meu destino é ser onça, de Alberto Mussa, que estudou os fragmentos de registros feitos pelo frade André Thevet sobre a cultura indígena durante a ocupação da Baía de Guanabara, em 1550.

Ainda que dois escritores “veteranos” tenham movimentado o cenário cultural, foi um estreante que roubou a atenção. O mineiro Murilo Antonio de Carvalho venceu a primeira edição do concorridíssimo prêmio literário Leya, que pertence ao maior grupo editorial de Portugal. Seu primeiro romance O rastro do jaguar, ficou entre os 8 selecionados, num total de 448 romances recebidos de diferentes países de língua portuguesa. Com seis votos contra um, de um júri formado por nomes como Pepetela e Carlos Heitor Cony, o brasileiro venceu e receberá prêmio de 100 mil euros.

Como jornalista e documentarista, Carvalho teve contato durante muitos anos com diferentes etnias. “Nos últimos 30 anos, estive perto das principais nações indígenas brasileiras, presenciando situações de guerras, invasões, julgamentos etc. Esta certamente é uma das razões que me levaram a estar sempre atento à vida dos índios e as questões ligadas à cosmogonia”, conta.

O romance, que se passa no final do século 19, trata da vida de um índio brasileiro que foi criança para a Europa e passa por três guerras: a do Paraguai, a dos Guaranis e a dos Aimorés, em Minas Gerais – estes últimos praticamente extintos. O rastro do jaguar deve ser lançado em todos os países de língua portuguesa, além de Estados Unidos e Canadá. A edição portuguesa deve chegar às livrarias em abril, com tiragem de 70 mil exemplares.

Fontes:
Revista da Cultura – edição 21 – abril de 2009
Foto = Araquém Alcântara

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