quinta-feira, 9 de abril de 2009

Manoel de Andrade (Poemas)



Véspera

Quatorze de março
mil novecentos e sessenta e nove.
É preciso…
é imprescindível denunciar o compasso ameaçador destas horas,
descrever esta porta estreita que atravesso,
esta noite que me escorre numa ampulheta de pressentimentos.

Um desespero impessoal e sinistro paira sobre as horas…
O ano se curva sob um tempo que me esmaga
porque esmaga a pátria inteira…

Nossas canções silenciadas
nossos sonhos escondidos
nossas vidas patrulhadas
nossos punhos algemados
nossas almas devassadas.

Pelos ecos rastreados dos meus versos
chegam os pretorianos do regime.
Alguém já foi detido, interrogado, ameaçado
e por isso é necessário antecipar a madrugada.

E eis porque esse canto já nasce amordaçado
porque surge no limiar do pânico.
Meu testemunho é hoje um grito clandestino
meus versos não conhecem a luz da liberdade
nascem iluminados pelo archote da esperança
para se esconderem na silenciosa penumbra das gavetas.

Escrevo numa página velada pelo tempo
e num distante amanhecer
é que o meu canto irá florescer.

Escrevo num horizonte longínquo e libertário
e num tempo a ser anunciado pelo hino dos sobreviventes.
Escrevo para um dia em que os crimes destes anos puderem ser contados
para o dia em que o banco dos réus estiver ocupado pelos torturadores

Contudo, nesta hora, neste agora
o tempo se reparte pra quem parte
e um coração se parte nos corações que ficam…
O amanhecer caminha para desterrar os nossos gestos
para separar nossas mãos e nossos olhos
e nesta eternidade para pressentir o que me espera
já não há mais tempo para dizer quanto quisera.

Tudo é uma amarga despedida nesta longa madrugada
e neste descompassado palpitar,
contemplo meus livros perfilados de tristeza
retratos silenciosos de tantas utopias,
bússolas, faróis, retalhos da beleza.
Aceno a Cervantes, a Lorca, a Maiakovski
mas só Whitman seguirá comigo
nas suas páginas de relva
e no seu canto democrático.
Contemplo ainda os pedaços do meu mundo
nos amigos do penúltimo momento
nas lágrimas de um benquerer
na infância de minha filha
e nesse beijo de adeus em sua inocência adormecida.

Nesta agonia…
neste abismo de incertezas…
abre-se o itinerário clandestino dos meus passos.
De todos os caminhos
resta-me uma rota de fuga, outras fronteiras e um destino.
Das trincheiras escavadas e dos meus sonhos,
restou uma bandeira escondida no sacrário da alma
e no coração…
um passaporte chamado… liberdade.
¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

VELEIRO

Mar afora, mar adentro
lá vai singrando um veleiro
quem dera ser passageiro
pra correr nas mãos do vento.

Mar adentro, mar afora
como navega ligeiro
cruzando este golfo inteiro
nas cores vivas da aurora.

Onde vais assim tão cedo
rumo à Ilha do Arvoredo
levando meu coração…?

Vou navegando contigo
meus olhos te seguem, amigo,
perdidos na imensidão.
¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

Hiroshima

Hiroshima, Hiroshima
rosa rubra do oriente
fragrância de cerejeira
céu de anil no sol nascente.

Farol de luz no estuário
remanso dos vendavais
porto e escala dos juncos
roteiro dos samurais.

Verão de quarenta e cinco
no dia seis de agosto.
Clareando as águas do delta
a aurora beija o teu rosto.

Surge o Sol, se abre o dia
na luz e no movimento.
Tudo era paz e alegria
e nenhum pressentimento.

Teus colibris revoavam
no fresco azul dos teus ares
eram os casais, eram os ninhos
carícias, trino e cantares.

O arroz na água e na espiga
talo e seiva a palpitar
os rosais desabrochando
e os girassóis a girar.

Vidas…teu rosto eram vidas
nos campos e nos quintais
nos jardins, na verde relva
na algazarra dos pardais.

Folguedos, danças, cantigas
tua infância sem receios
teus escolares em flor
correndo pelos recreios.

As horas cruzavam o dia
os pais e os filhos na praça
o povo cruzava as ruas
cruzava o céu a desgraça.

De repente nos teus ares
a Águia do Norte, o Falcão
e num segundo, em teus lares,
gritos, fogo, turbilhão.

O beijo carbonizando
a luz devorando o dia
a carne viva queimando
na instantânea agonia.

No céu… um avião se afasta
na voz… a missão cumprida
no chão… a dor que se arrasta
e a cidade destruída.

Quem eras tu, Hiroshima
naquele dia distante…?
Eras sonhos e esperanças
incendiados num instante…

Quantos projetos de vida
mil sonhos acalentados
quantas mil juras de amor
nos lábios dos namorados.

Eras filhote no ninho
eras fruto no pomar
canteiro de brancas rosas
e toda a vida a cantar.

Eras mãe, eras criança
e no útero eras semente
ontem eras a esperança
e agora o braseiro ardente

Por que Hiroshima, por quê…?
o punhal de fogo, a explosão…?
Por que cem mil corações
ardendo sem compaixão…?

Tua inocência cremada
na fogueira do delírio.
Tua imagem retratada
na estampa do martírio.

Teu sangue vive na história
nas cicatrizes ardentes
nas lágrimas, na memória
na dor dos sobreviventes.

Quem previu tua agonia ?
Quem explodiu tua paz ?
Quem tatuou nos teus lábios
as palavras: nunca mais!?

Comandantes, comandados…
quem são os donos da guerra…?
e em que tribunal se julgam,
os genocídios da Terra…?

Por tanta dor, rogo a Deus
na minha prece tardia
que guarde no seu amor
os mártires daquele dia.

Hiroshima, flor da vida,
semente, ressurreição.
Fênix, face renascida.
PAZ, santuário, canção.
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Fontes:
ANDRADE, Manoel de. Cantares. São Paulo: Escrituras, 2007.
ANDRADE, Manoel de. Poemas para a liberdade. São Paulo: Escrituras, 2009.

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