terça-feira, 23 de junho de 2009

Arthur Rimbaud (Poesias)



O BARCO ÉBRIO

Como descesse ao léu nos Rios impassíveis,
Não me sentia mais atado aos sirgadores;
Tomaram-nos por alvo os Índios irascíveis,
Depois de atá-los nus em postes multicores.

Estava indiferente às minhas equipagens,
Fossem trigo flamengo ou algodão inglês.
Quando morreu com a gente a grita dos selvagens,
Pelos Rios segui, liberto desta vez.

No iroso marulhar dessa maré revolta,
Eu, que mais lerdo fui que o cérebro de infantes,
Corria agora! e nem Penínsulas à solta
Sofreram convulsões que fossem mais triunfantes.

A borrasca abençoou minhas manhãs marítimas.
Como uma rolha andei das vagas nos lençóis
Que dizem transportar eternamente as vítimas,
Dez noites sem lembrar o olho mau dos faróis!

Mais doce que ao menino os frutos não maduros,
A água verde estranhou-se em meu madeiro, e então
De azuis manchas de vinho e vômitos escuros
Lavou-me, dispersando a fateixa e o timão.

Eis que a partir daí eu me banhei no Poema
Do Mar que, latescente e infuso de astros, traga
O verde-azul, por onde, aparição extrema
E lívida, um cadáver pensativo vaga;

Onde, tingindo em cheio a colcha azulecida,
Sob as rutilações do dia em estertor,
Maior que a inspiração, mais forte que a bebida,
Fermenta esse amargoso enrubescer do amor.

Sei de céus a estourar de relâmpagos, trombas,
Ressacas e marés; eu sei do entardecer,
Da Aurora a crepitar como um bando de pombas,
E vi alguma vez o que o homem pensou ver!

Eu vi o sol baixar, sujo de horrores místicos,
Para se iluminar de coagulações cianas,
E como um velho ator de dramas inartísticos
As ondas a rolar quais trêmulas persianas!

Sonhei com a noite verde em neves infinitas,
Beijo a subir do mar aos olhos com langores,
Toda a circulação das seivas inauditas
E a explosão auriazul dos fósforos cantores!

Segui, meses a fio, iguais a vacarias
Histéricas, a vaga a avançar os rochedos,
Sem cogitar que os pés piedosos das Marias
Pudessem forcejar a fauce aos Mares tredos!

Bati, ficai sabendo, em Flóridas perdidas
Ante os olhos em flor de feras disfarçadas
De homens! Eu vi abrir-se o arco-íris como bridas
Refreando, no horizonte, às gláucicas manadas!

E vi o fermentar de enormes charcos, ansas
Onde apodrece, nos juncais, em Leviatã!
E catadupas dágua em meio das bonanças;
Longes cataratando em golfos de titãs!

Geleiras, sóis de prata, os bráseos céus! Abrolhos
Onde encalhes fatais fervilham de esqueletos;
Serpentes colossais devoradas de piolhos
A tombar dos cipós com seus perfumes pretos!

Bem quisera mostrar às crianças as douradas
Da onda azul, peixes de ouro, esses peixes cantantes.
A espuma em flor berçou-me à saída de enseadas
E inefável o vento alçou-me por instantes.

Mártir que se cansou das zonas perigosas,
Aos soluços do mar em balouços parelhos,
Vi-o erguer para mim negra flor de ventosas
E ali fiquei qual fosse uma mulher de joelhos...

Quase ilha, a sacudir das bordas as arruaças,
E o excremento a tombar dos pássaros burlões,
Vogava a ver passar, entre as cordagens lassas,
Afogados dormindo a descer aos recuões!...

Ora eu, barco perdido entre as comas das ansas,
Jogado por tufões no éter de aves ausente,
Sem ter um Monitor ou veleiro das Hansas
Que pescasse a carcaça, ébria de água, à corrente;

Livre, a fumar, surgindo entre as brumas violetas,
Eu que rasguei os rúbeos céus qual muro hostil
Que ostentasse, iguaria invulgar aos bons poetas,
Os líquenes do sol e as excreções do anil;

Que ia, de lúnulas elétricas manchado,
Prancha doida, a arrastar hipocampos servis,
Quando o verão baixava a golpes de cajado
O céu ultramarino em árdegos funis.

Que tremia, de ouvir, a distâncias incríveis,
O cio dos Behemots e os Maelstroms suspeitos,
Eterno tecelão de azuis inamovíveis,
Da Europa eu desejava os velhos parapeitos!

Vislumbrei siderais arquipélagos! ilhas
De delirantes céus se abrindo ao vogador:
Nessas noites sem fundo é que dormes e brilhas,
Ó Milhão de aves de ouro, ó futuro Vigor? –

Certo, chorei demais! As albas são cruciantes.
Amargo é todo sol e atroz é todo luar!
Agre amor embebeu-me em torpores ebriantes:
Que minha quilha estale! e que eu jaza no mar!

Se há na Europa uma água a que eu aspire, é a mansa,
Fria e escura poça, ao crepúsculo em desmaio,
A que um menino chega e tristemente lança
Um barco frágil como a borboleta em maio.

Não posso mais, banhado em teu langor, ó vagas,
A esteira perseguir dos barcos de algodões,
Nem fender a altivez das flâmulas pressagas,
Nem vogar sob a vista horrível dos pontões.

VOGAIS

A negro, E branco, I rubro, U verde, O azul: vogais.
Explico um dia vossas origens latentes:
A, negro corpete é um pelo em moscas luzentes
Que zumbem ao redor de fedores brutais,

Golfo de sombra; E, albor de vapores e tendas,
Lanças de alto gelo, alvos reis, tremor de umbelas;
I, lacre, sangue em cuspe e rir de lábios belos
Dentro da cólera ou do torpor penitente;

U, ciclos, vibração divina em verde mar,
Paz de animais no pasto, paz desse enrugar
Alquímico na fronte de quem muito leu;

O, supremo Clarim de estranhos sons diversos,
Silêncio atravessado em Anjos e Universos;
- O Ômega, raio roxo entre esses olhos Seus!

MINHA BOÊMIA
(Fantasia)

Eu andava com punhos em bolsos rasgados;
Também meu paletó tornava-se ideal;
Andava sob o céu, Musa! e a ti leal;
Oh! lá lá! amores lindos eu tenho sonhado!

Minhas únicas calças com um grande furo.
— Pequeno Polegar sonhador, em meu curso
De rimas. Meu albergue era lá na Grande-Ursa.
— As estrelas no céu num frufru de doçura.

E as ouvia sentado à margem destas rotas,
Setembro em belas noites ao sentir as gotas
De orvalho em minha fronte, como um vinho são;

Onde, rimando em meio as sombras fantásticas,
Tal como as liras, eu arrancava os elásticos
Dos sapatos feridos, pé no coração!

AURORA — XXII (de: As iluminações)
Abracei a aurora do verão.
Nada ainda se movia à frente dos palácios. A água estava morta. Os acampamentos de sombra não abandonavam o caminho do bosque. Andei, despertando os sopros vivos e tépidos, e as pedrarias olharam, e as asas se levantaram sem ruído.
O primeiro objetivo foi, na vereda já cheia de lívidos e recentes lampejos, uma flor que me disse seu nome.
Eu ri diante da fulva queda d’água que se desgrenhava através dos abetos: no cimo prateado, reconheci a deusa.
Então, eu levantava os véus, um a um. Na alameda, agitando os braços. Pela planície, onde mostrei-a para o gato. Na grande cidade, ela fugia entre as cúpulas e campanários, e, correndo como um mendigo sobre as plataformas de mármore, eu a perseguia.
No alto do caminho, perto de um bosque de loureiros. envolvi-a com seus véus amontoados e senti um pouco seu corpo imenso. A aurora e a criança tombaram no bosque.
No despertar, era meio-dia.

Fonte:
RIMBAUD, Arthur. Poesia completa. Rio de Janeiro: Topbooks, 1995.

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