domingo, 8 de novembro de 2009

Jean-Pierre Bayard (História das Lendas) Parte IV


II. — Sentido sacro e iniciático

1. — Esoterismo e Magia

O esoterismo é subjacente em muitos de nossos atos. A religião católica não pode se livrar dos ritos de religiões antigas e os círios e o incenso provam a sobrevivência das oferendas, bem como a tonsura do padre indica o sítio da espiritualidade.

O coroamento é uma cerimônia esotérica: os braceletes tornam o rei prisioneiro de seu povo, o cetro é a vara mágica, e a coroa o emblema da flor ritual de mil pétalas. Th. Briant deu: Le goéland, n.o 108 (A gaivota) preciosas informações sobre o coroamento da rainha Elisabete da Inglaterra que, vestida com sua roupagem de linho, está ritualmente nua para a unção real.

Os povos da África, com seus conhecimentos sobre magia, se aproximam de uma verdade transcendente que nos escapa. Os ritos esotéricos eram, porém, muito mais empregados em tempos passados e Victor Emile Michelet: Le secret de la chevalerie (O segredo da cavalaria) escreveu: “Os construtores de catedrais inscreveram no secular silêncio da pedra o eco da palavra perdida que os predestinados ouvirão.” Se os mitos sagrados fossem divulgados seriam profanados e com isso perderiam suas virtudes místicas, diz Lévy-Bruhl: La mythologie primitive (Mitologia primitiva, 1935). Assim é que o sentido profundo e a virtude eficaz são revelados somente aos iniciados, os não iniciados só encontram nesses mitos um divertimento. Os contos da Nova Guiné expõem essa eficácia mágica.

Ora, todos os povos fizeram uso da magia. No evangelho assistimos aos fenômenos da levitação, à multiplicação dos pães e dos peixes; se o alcance das palavras de encantamento nos escapa, não deixamos de sentir que esses ritos se destinam a manter a coesão de uma civilização (Van Gennep). Saintyves: Les contes de Perrault (Os contos de Perrault, 1923), definiu as provações e as tentações com suas encenações prestigiosas que são ritos de iniciação.

Este elemento sobrenatural requer uma explicação a qual tentaremos evidenciar no estudo de algumas lendas. Pois esses costumes de iniciação, provindo de um conhecimento profundo e de um ritual desenvolvido estão tão alterados que perderam o seu sentido original. O símbolo do casamento, em que a bênção coloca os eleitos sob a proteção de um poder superior; o elo sem princípio nem fim, cadeia indissolúvel que une dois esposos romanos; o elo deve ser de ouro puro pois que a mulher é acorrentada pelo mérito e pelas qualidades sólidas de seu noivo; mas esse elo liga a vontade do operador ao gênio benfazejo personificado pelo fluido invisível.

O simbolismo do casamento é muito vasto, mas o ritual da morte — freqüentemente tido como uma espécie de sortilégio — mereceria também ser estudado. A magia popular deveria ocupar-se do modo de conquistar o poder com Fausto e D. Juan. Surgiram então os feiticeiros, as invocações, os filtros, os remédios e os venenos; essa magia natural penetrou nos contos.

O sistema cabalista — de origem esotérica e de espírito iniciado — serviu para a construção das catedrais. A constituição da sociedade — que teve seu apogeu no reinado de São Luís — a música dos gregos de Eleusis, o cantochão provêm da Cabala que serviu para estabelecer os monogramas árabes, as estátuas da Índia, as regras para a seção do ouro. Este ensinamento profundo, freqüentemente insuspeitado, constitui um precioso patrimônio da inteligência humana.

Os próprios jogos têm origem esotérica (jogos de cartas, buena-dicha, de xadrez, de damas, gamão, dominó, jogo do ganso, roleta, marelinha, esconde-esconde, etc.). As canções populares, muitas vezes, são iniciáticas (Les compagnons de la Marjolaine, la tour prends-garde, Cadet Roussel).

O valor dos algarismos é nesse caso muito importante. O texto pode ser dividido em livros, capítulos, versículos, alíneas, cujo número é ditado, (poema em doze cantos, tragédia em cinco cantos). Às vezes é o número de personagens, o número de anos de sua existência, o número de seus combates. O escritor multiplica os algarismos para não se dar a conhecer e os acontecimentos descritos ultrapassam, dessa forma, a realidade. As profecias entram nessa categoria. O número 3, emblema sexual em Freud, é a base do princípio divino que reaparece em todos os cultos, culto de Mitra, triade teológica céltica, ternário de Pitágoras. São três as penitências e existem três etapas essenciais no aperfeiçoamento individual; as fadas, como no teatro, dão três golpes com a varinha; dez, número de Adão e Eva, falo e ovo, são a base da filosofia pitagórica.

Os ritos podem derivar para a superstição, o fetichismo, mas a interpretação desse simbolismo é sempre delicada.

2. — Religião e origem sacra

As teses religiosas são numerosas. O Pe. Banier, com sua Escola bíblica, via nos mitos pagãos, a revelação divina; Bérard, na sua tese religiosa, explica as cerimônias rituais.

Lenormant e Gladstone interpretam as personalidades dos deuses a partir de personagens bíblicas.

O Apocalipse de São João é uma obra esotérica cujas palavras-chave servem a religiões e ordens assaz diferentes. As religiões empregam palavras de encantamento que devem produzir o máximo de efeito além de processos na aparência muito simples; eis aí uma forma de magia (Anne Osmont). Diz o conde de Larmandie a esse respeito: “Esses ritos que nada mais são do que a realização de símbolos, têm poder natural sobre o mundo astral, que contém em potencial e germe todo o desabrochar do mundo físico. A palavra símbolo significa, principalmente, resumo, quintaessência; atingimos, pois, completando-o, a causa segunda na órbita de nossa vontade: desencadeamos o dinamismo produtor do fenômeno.” F. Ch. Barlet (A iniciação, janeiro de 1897), diz que “a religião nas suas manifestações exteriores torna-se apenas uma alta magia cerimonial”.

Se Lévy-Bruhl afirma que o homem primitivo não tem o sentimento do divino, parece que para Piobb: Formulaire de haute-magie (Formulário de alta magia) ele está presente em toda parte mas suas leis são difíceis de discernir; são muitos os véus que encobrem esses segredos que só se exprimem por meio de símbolos. Contudo, toda essa ciência que provém dos colégios iniciáticos, não está perdida. O cristianismo não soube se eximir de leis anteriores; as idéias jurídicas em curso formaram o direito canônico; as vestes sacerdotais provêm de Bizâncio.

3. — A arte sagrada da Índia

Estas lendas, encontradas na Índia, pertencem à mitologia hindu que compreende os Vedas (hinos), os Bramanas (comentários), as Sutras e Upanichads (manuais de devoção) e finalmente as compilações de lendas Puranas.

Mallarmé: Les dieux antiques (Os deuses antigos) fala desse berço misterioso, os Arias, situado no centro da grande Ásia, no vale do Oxo e do qual temos poucas referências. Suas tribos nômades emigraram para os países eslavos e depois para a Pérsia, a Índia, a Grécia e a Itália. A mitologia persa, no seu falar Zenda, devia influir sobre a mitologia norse para criar a epopéia escandinava.

Varuna, autor do mundo, exprime o instinto monoteísta dos cantos védicos. Não é absurdo afirmar que os três deuses da Índia (Varuna, Agni e Indra) representam diferentes aspectos do Ente Infinito. Eis porque Deus, falando com Moisés, diz nós e não eu. Outros três deuses sucedem aos três deuses antigos: o deus da criação Brama, o deus da conservação Vichnu e o deus da destruição Civa, portador do terceiro olho: R. Fougère, Contes et légendes de l’Inde (Contos e lendas da Índia). Quanto a Buda, seria apenas um dos mais recentes avatares do Vichnu e o próprio Jesus Cristo seria o reflexo desse Deus. Um livro curioso e inspirado, La vie de maîtres (A vida dos mestres), de Baird T. Spalding (Ed. Leymarie, 1946), retoma esse tema.

É digno observar que a crença na transmigração é reencontrada na literatura céltica; é que a religião druídica, de uma amplidão esquecida, estendia-se até a Grécia e com toda certeza se achava em comunicação com a Ásia. Desta forma, depois da morte, a alma se reencarna tomando nova forma, ora superior, ora inferior, relativamente à vida anterior. Essa sucessão de existências pode ser humana ou animal e ter lugar neste ou em outros mundos. A sociedade bramânica é estabelecida em castas, cujos grupos são hereditários e hierarquizados; em seu pináculo reinam os brâmanes, os padres.

No século VI antes da era cristã, porém, o bramanismo se transforma sob a impulsão de Gotama, o Buda. Depois de reencarnações sucessivas, o indivíduo chega ao aniquilamento total, o Nirvana. Por suas concepções mais amplas e mais sociais, todo homem tem acesso à via religiosa.

Lotus de Paini observa que o Tao seria uma força oculta ao redor da qual todos os valores morais evoluiriam. Esse dinamismo cósmico seria produzido por elementos eletrizantes Iang e Iin que se aparentam ao próton e ao eléctron. Essa sabedoria espiritual se obtinha por meio da meditação realizada sobre regras precisas; a formação dos órgãos da clarividência só podia se produzir após as duas fases impostas: a purificação do corpo astral e a iluminação.

Langlois (Monuments littéraires de l’Inde, 1827) analisou essa literatura sânscrita cujos Vedas (4500 a. C.) são os livros do conhecimento e os Vidia, os da ciência. As quatro obras Upanichad tratam da natureza de Deus, os Upavedas são relativos à vida corrente. Valmiki escreveu o Ramaiana, as aventuras do deus Rama e Viasa (1000 a. C.) e é o autor de Maabarata que descreve as desgraças de uma família real. O Bagavad-Gita é um episódio desse trabalho: o deus revela ao seu favorito Ardjuna a origem e a natureza do universo.

Essa literatura é escrita em sânscrito, língua dos padres e da alta sociedade mas entremeada de dialeto Pracrit, linguagem de classes inferiores. Sob o efeito das invasões o sânscrito foi esquecido e só em alguns santuários é encontrado. Observemos os recentes estudos de Jones, Wilkins, Colebrooke, Wilson, e Langlois.

Quanto ao grande livro hindu, o Pantchatantra, foi traduzido do sânscrito para o phlvi por ordem do rei Choroés, no século VI. A importância desse livro é considerável uma vez que foi traduzido em antigo persa e em sírio (Calila e Diná); traduzido em árabe (século VIII) em hebraico (século XII), passou pela Espanha e sua tradução latina data do século XIII, quando chegou à França e à Alemanha. Paralelamente a esse eixo, sua tradução árabe penetra na Grécia (Stéphanit et Ikhnilate) e na língua eslava (XII e XIII) para alcançar, enfim, a Rússia.

Fonte:
BAYARD, Jean-Pierre. História das Lendas. (Tradução: Jeanne Marillier). Ed. Ridendo Castigat Mores

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