domingo, 27 de dezembro de 2009

Andréa Donadon-Leal (Os Quatro Meninos)



Os meninos saíam da escola como sempre, numa gritaria danada. Luizinho, moleque rechonchudo e bagunceiro dava trabalho para os professores. Metido a valentão, de vez em quando dava uma coça nos colegas e ainda não sabia flexionar os verbos. Guto, colado sempre em Luizinho, era um garoto meigo, mais inteligente dos meninos, responsável nos deveres ; magrinho, olhos grandes e óculos ainda maiores. João, cabeça de abóbora, como todos chamavam, era sistemático, falava pouco e acertado. Só tinha fixação por coisas que botavam medo nas pessoas. Uma vez, colocou na porta de dentro da sala de aula, um boneco grande pendurado numa corda, cheia de sangue de galinha, assustando até a professora, coitada, grávida de oito meses, quase ganhou o bebê na sala de aula.

Osvaldo, colecionava piadas, charadas e revistinhas. Era extrovertido e aonde chegava à molecada se reunia para escutar suas histórias engraçadas. Os meninos, na faixa de dez a doze anos, estudavam na mesma sala. Não se largavam pra nada, nem nas brigas.Véspera de férias escolares, animação na primeira semana. Iriam passar um final de semana na fazenda antiga, afastada da cidade. Pertencia ao pai de Luizinho. Os quatro desciam as escadas da galeria da escola juntos, aos berros, cada um querendo falar ao mesmo tempo. Ainda no pátio Luizinho gritou:

- Falando sério agora, gente! Ocês tão sabendo, né, caras! Amanhã, nóis vai levantá junto com as galinha. Ocês já preparam a mala, vara de pesca, as barraca? Fica espertos, ocês! Papai já pediu pras suas mães e elas deixaram ocês ir com papai e eu pra fazenda em Alvinópolis! Vamo azará muito neste final de semana.

Na manhã seguinte o pai de Luizinho esquentava o motor da caminhonete velha para a viagem. Buzinou na casa do Guto, João e Osvaldinho e todos aguardaram na porta de casa com suas mães que pediam de novo: não esqueça dos conselhos de ontem, vê se não .. não! Saíam correndo afoitos pro carro, deixando as mães falando para os ventos.

Na viagem, tagarelices de João que não parava de falar em assombração, Guto, calado e azedo de medo, Osvaldinho dava gargalhadas e Luizinho não flexionava os verbos.

Viajaram duas horas na estrada de poeira, buracos e mato alto. A paisagem de repente, começou a mudar... Pedras escuras, montanhas altas, neblina densa. O sol havia ficado para trás, e o céu se transformou em cinza escuro. De longe, surgiu um telhado pontiagudo escuro de musgo no topo das encostas. Parecia torre de igreja de tão pontudo. Silêncio no carro...

Os meninos prenderam a respiração, até o Osvaldinho com suas gargalhadas dementes. A casa, uma mansão velha. O jardim tinha morrido, ficaram os galhos secos das árvores. Uma fonte seca, adornada com a estátua de um homem de bengala de ferro presa em suas mãos gigantescas. Uma cara sem graça, semblante carrancudo.

Pularam do carro, carregaram as malas pra dentro da casa grande. Uma sala de estar que parecia maior que o pátio da escola. Quadros nas paredes, infestados de poeira e teias de aranhas. Seu José, pai de Luizinho explicou que a casa estava mal cuidada e havia tempos que ele não ia pra lá. Afoitos foram conhecer a casa, percorrendo os cômodos espaçosos.

Seu José colocou Luizinho e Guto num quarto grande, João e Osvaldinho do lado do quarto dos meninos. Disse que a cozinheira chegaria logo para preparar o almoço, limpar a casa e fechou-se no escritório. A dona cozinheira apareceu de uniforme preto, cabelos presos em um coque alto, rosto quadrado, nariz grande e olhos esbugalhados... Parecia que tinha saído dos contos de assombração de tão feia e estranha. Estavam na cozinha, os quatro, caçando algo para comer e de repente aparece àquela mulher esquisita. Assustados saíram aos berros. Seu José saiu imediatamente do escritório assustado com a gritaria. Os quatro meninos rubros de vergonha com a dona e seu José pediram desculpas.

O pai de Luizinho dirigiu-se para o escritório batendo a porta pesada de madeira. A dona torceu a cara feia, deu de ombros e desapareceu na cozinha. Osvaldinho chorava de tanto rir da correria. Até ele tinha zunado no pé de medo. Guto, ainda branco como boneco de cera. João, misterioso fazendo planos para suas peças. Luizinho estava com a perna bamba tremendo de susto. O almoço, feito pela dona estava horrível: um punhado de folhas verdes amargas com um arroz que mais parecia um angu de tão cozido. De tarde, foram conhecer o resto da fazenda. Seu José tinha explicado que ficaria o tempo todo no escritório trabalhando. Foram para o sótão da casa. Sujeira, teias de aranhas, mais quadros de gente. Pessoas horríveis, cabeludas demais. No canto do sótão, livros de números, estantes que iam até o teto de livros.

Guto, muito intelectual se esbaldou nos livros de medicina, plantas, matemática, história... João encontrou um livro de contos de assombração e ficou lendo avidamente as páginas amareladas. Luizinho ficou de pé namorando as armas antigas penduradas da parede, sua mão coçava para tirar uma pequena do lugar e brincar de bang-bang.

Osvaldinho cínico como só ele, correu os olhos pelo sótão sem muito interesse, encontrou um livro antigo de piadas e soltou algumas gargalhadas sarcásticas.

- Luizinho, essas piadas são mais velhas que a criação do mundo! Dá vontade até de chorar! Raaaa

- Ô seu prego, já que ocê tem imaginação fértil, porque não aproveita grande escritor, e refaz todas elas?!

- Ô Luizinho, você de vez em quando solta uma boa pela boca. Idéia irada.

Ficaram até tarde no sótão até escutaram uns ecos estranhos de vozes que vinha lá de cima chamando-os para o jantar. Nem deram ouvidos. Quando a noite caiu no céu, o sótão ficou repleto de trevas. As luzes não acenderam, estavam queimadas. O Guto pediu pra tentar de novo, mas nada. Começaram com a neurose do medo, medo do escuro... Todos pediram ao mesmo tempo para Luizinho parar com a brincadeira sem graça e acender as luzes. Escutaram uivos de lobo, portas abrindo e fechando... Tremeram de medo, correndo desvairados para cozinha e gritaram ainda mais com a dona que os aguardava no pé da porta do sótão com o corpo estremecido de gargalhadas maldosas..

- Meninos da cidade grande! Metidos, arrogantes e medrosos. Tremem feito gelatina.

No jantar mais comida ruim da dona. Não tinha batata frita, macarrão ... Folhas verdes e amargas à vontade e o arroz empapado foi colorido com beterraba. Jantaram fazendo caretas simulando repulsa. Seu José fulminava os meninos com o olhar, passando sermão sobre o benefício do consumo dos legumes e verduras para uma vida saudável. Após a gororoba, Seu José explicou para os meninos que dona Otila tinha arrumado todas as camas e para eles não esquecerem de escovar os dentes antes de dormir... Depois dirigiu-se para o escritório, desaparecendo na escuridão do corredor cumprido. A dona bruxa, pegou o casaco, chapéu e sombrinha pendurados no cabideiro, despedindo-se dos meninos:

- Meninos, não façam xixi no colchão à noite! Se escutarem algum barulho estranho, não saem do quarto! Lembrem-se: não saiam do quarto até amanhecer! Tenham, se possível, uma boa-noite. Esbravejou a dona virando as costas para os meninos, rodopiando os pés e batendo a porta da sala com força. Tiveram tempo de espiá-la pela janela de vidro da sala.

Ela conversava e gesticulava sozinha. Seu José trancado no escritório, passava horas no trabalho. Os meninos assistiram alguns filmes sem graça na televisão que ora pegava, ora saía do ar. Olharam para o relógio grande e já eram onze e meia da noite. Correram para os quartos. Luzinho e Guto foram pro primeiro do corredor e Osvaldinho e João para o segundo. No quarto não havia sequer um abajur. Guto perguntou se não havia uma vela na casa porque tinha medo do escuro. Luizinho, metido a machão:

- Guto deixa disso cara! Eu não tô aqui co cê?! Cê já pensô se ficasse num quarto sozinho? Tá com medo de quê? Esse quarto nem tão escuro é! Ói! Apagou a luz e tomei um susto com o breu! Não via nada, só escuridão.

- Viu, Luizinho? Não dá pra ver um palmo de luz!

- Tá bem, molenga! Vou deixá as cortina da janela aberta e a lua alumia o quarto. Agora vá deitar que amanhã nóis vai nadá no rio e pescá uns peixe grande. Guto, ainda com medo, começou a rezar baixinho o credo, ave-marias, pai-nossos, salve rainha ... Luizinho também com medo dos quadros de gente morta, da dona bruxa, do sótão sinistro... De repente escutaram portas batendo com força, passos arrastando nas tábuas... Um frio gelado no quarto, vento soprando no rosto; janela do quarto batendo! Luizinho e Guto engoliram gritos de pavor, cada um em sua cama! Guto rangia os dentes de medo chamando atônito Luizinho:

- Luizinho! Cochichou. Você tá escutando o que estou? Têm umas portas rangendo! O frio no quarto tá gelando meus ossos. Estou com medooooo...

- Guto, tem medo não! Né nada não, seu medroso! É meu pai que tá abrindo e fechando as portas. Ele tem esta mania! Falou pouco convincente. O vento estava vindo da janela aberta. Luizinho atordoado de medo, mas firme para Guto.

- Pra você não ficar sozinho aí na cama, pode vim dormir comigo aqui na cama, cabe nós dois. A dona bruxa, aquela vaca sem consciência, deixou a janela aberta para matar os meninos de susto. Guto apertou o interruptor da luz e nada. De novo a escuridão. Não tinha luz. Nem vela. Luizinho levantou da cama e foi tremendo fechar a janela. Topou de cara com os olhos de vidro de uma coruja no galho seco de uma árvore, logo em frente da janela do quarto. Gritaram horrores de medo e pavor, Luizinho, Guto e a coruja... Fechou de uma vez a janela pesada de madeira.

- Tenho que admitir, Guto, tô com medo. E mais medo vinha por aí. Os dois deitados juntos na cama, escutavam uivos de lobo, pios de corujas, correntes batendo no chão da casa velha... Tremeram de pavor. A noite demorava pra terminar. Lembraram do conselho da dona bruxa, não podiam sair do quarto...No quarto ao lado, Osvaldinho e João jogavam conversa fora deitados nas camas espaçosas. João satisfeito com a casa assombrada da fazenda. Osvaldinho cheio de histórias para contar para os colegas da escola. Apagaram a luz e foram dormir, pois já passava das duas horas da madrugada. Osvaldinho escutou sons dentro do quarto, alguém abriu cortina abruptamente e a luz da lua invadiu o quarto escuro.

- João, por que abriu as cortinas?

- Eu?! Ia perguntar o mesmo para você, seu engraçadinho.

- Fui eu não, moleque! Não gosto de luz no quarto quando estou dormindo! João levantou com má vontade e fechou a cortina de renda. Antes de chegar à cama, de repente, a cortina abriu novamente. João, assustado, acendeu as luzes do quarto e Osvaldinho estava de pé com os olhos arregalados, balbuciando:

- Cê viu cara? Viiiiu?.... Sombras de chifres e rabo correndo pelo quarto! É você né, seu prego? Cadê a fantasia, moleque sem graça!

- Você pirou de vez! Não fui eu! Quem abriu as cortinas do quarto, quando eu estava perto da cama? Foi você?

- Não...As luzes do quarto começaram a piscar, como se a energia começasse a falhar. Osvaldinho foi até o interruptor para apagar as luzes e nada. O interruptor enguiçou. Os dois viam sombras nas paredes do quarto, chifres e rabo andando em círculos. Os quadros do quarto de cabeça pra baixo. Os tapetes pendurados no teto. Urros de bichos... Osvaldinho e João, abraçados correram até a porta do quarto e a maçaneta queimou a mão de João. Os dois corajosos estavam com as calças molhadas. Gritavam em vão, ninguém escutou os berros! A noite demorou a passar para os meninos presos nos quartos da casa grande. Gritos, uivos de lobisomem, correntes que arrastavam pelo chão, quadros e cortinas mexiam sozinhos, figuras fantasmagóricas nas sombras das paredes, pio de coruja, tapete pendurado no teto. Os meninos abraçados e molhados de xixi! Se tivessem problemas cardíacos de manhã seus corpos estariam estirados no chão do quarto, mortos de tanto susto.

Ficaram a noite inteira acordados. Finalmente os raios do sol invadiram os quartos. Levantaram rapidamente das camas molhadas. Luizinho e Guto trocaram de roupa e desceram para a cozinha, mortos de fome, com olhos inchados, afônicos... Lá já estavam Osvaldinho e João, olharam para os dois, não dormiram também! Estavam todos emburrados com os cabelos em pé, olheiras fundas... Sentaram nas cadeiras altas da cozinha esperando o desjejum matinal. A dona bruxa abriu a porta da cozinha, olhou para os quatro meninos e perguntou:

- Já de pé!? Tiveram uma boa noite, meninos da cidade grande?

Nem esperou resposta; olhou fundo para cada um deles, levantou uma das sobrancelhas grossas e riu alto, como uma desvairada, a dona bruxa!

Fontes:
Jornal Aldrava Cultural. http://www.jornalaldrava.com.br/
Imagem = http://portugalporreiro.blogspot.com

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