sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Fabricio Carpinejar (Reveillon das Letras)

O escritor brasileiro está lotérico. Todo novo ano renasce a expectativa de ficar rico. Antes não existia essa bolsa de valores, esse pregão de títulos. Ser escritor correspondia a assumir um atestado de pobreza. Um voto de castidade orçamentária. A vocação pesava mais do que a carreira. O prazer substituía o ideário de estabilidade. Os pais permaneciam como fiadores da trajetória inteira. Das opções milionárias nas décadas de 1980 e 1990, restava a chance mínima de ser um best seller – mais fácil era acertar a Mega Sena. Hoje, existem prêmios polpudos na literatura que reforçam o valor das simpatias e crendices na virada do calendário: R$ 400 mil do governo de São Paulo, dividido entre romance de veterano e estreante; R$ 100 mil de Passo Fundo para romance; R$ 150 mil do Portugal Telecom (R$ 100 mil ao primeiro, R$ 35 mil para o segundo e R$ 15 mil para o terceiro); R$ 60 mil do Jabuti (dividido entre livro do ano ficção e não ficção) e R$ 212 mil do governo de Minas (R$ 120 mil para o conjunto da obra, R$ 25 mil para um poeta, R$ 25 mil para um ficcionista e R$ 7 mil para um jovem escritor mineiro); R$ 100 mil do Machado de Assis, além de sete outros prêmios da Academia Brasileira de Letras, no valor de R$ 50 mil cada.

Mais de 1 milhão de reais disponíveis para os melhores livros. Publicar tornou-se uma atividade esperançosa. São valores para acertar a conta bancária e direcionar um maior tempo do autor para os livros e para o computador.

Perspectivas para aguçar costumes esotéricos em 31 de dezembro. Qualquer sinal é importante, tanto para fazer poesia quanto para incluir na categoria de presságios. Joaninha e louva-a-deus, portadores de boa sorte, serão recebidos com alarido nas golas das camisas.

Tatiana Salem Levy, por exemplo, laureada com o Prêmio São Paulo de Literatura de 2008 com A chave de casa, é a rainha dos rituais do réveillon, adepta do banho de mar e de pular sete ondas. Já começa pela lingerie. "Ano-novo tem de ser com calcinha nova dada por alguém. Branca, se eu quiser paz; vermelha, paixão; rosa, amor; amarela, dinheiro", comenta.

Moradora do Rio de Janeiro, não perde a oportunidade de visitar o repuxo das águas e jogar flores para Iemanjá, além de vestir alguma peça com a cor do orixá. Já foi escandalosa nas oferendas. "Uma vez, fiz uma mandinga que precisava molhar uma rosa em leite materno – peguei com uma amiga! –, espalhar pelo corpo, depois amarrá-la em fita de cetim azul e jogá-la para Iemanjá, no dia 31, em troca de um novo amor", lembra.

Loucura? Nem tanto. Desejo bom tem de cansar. E o pedido acabou atendido. "No início de fevereiro, lá estava ele, prontinho pra mim", solta uma boa risada, prevendo que estará no Alentejo, em Portugal, na transição da década. Trocará o oceano pelo campo, para ver como funcionará a mudança de ares.

O catarinense Cristovão Tezza tem antecedentes para ser um pai de santo. Pela primeira vez, teve que fazer mais estantes em seu escritório: não para abrigar os livros, e sim para abrir espaço para os troféus. Só não ganhou a São Silvestre, e isso porque não correu. Nos dois últimos anos, recebeu mais de 400 mil reais em prêmios por O filho eterno. Arrebatou o Portugal Telecom, o Jabuti, o APCA, o Prêmio São Paulo de Literatura, o Bravo! e o Prêmio Passo Fundo Zaffari & Bourbon. Depois do anúncio de seu nome no segundo certame, ninguém mais o parabenizava.

Apesar da lua cheia editorial e da inveja ainda maior dos colegas, não é usuário da mandinga. Muito menos fã de lentilha. Por incrível que pareça, não acredita em nada. "Sou estéril, desprovido de crenças metafísicas", brinca.

Sua virada é prosaica. Refugia-se com a família na praia paranaense Gaivota, toma cerveja e dá risada calçando havaianas. "Vou para o litoral ficar cozinhando em casa. Como vampiro, não tomo sol, senão viro pó."

A paulista Ivana Arruda Leite, autora de Hotel Novo Mundo, já abusou das despedidas, das listas de intenções, dos patuás, de receber amigos e de preparar encomendas para os santos. Agora, quer paz. "Adorava entrar no ano-novo em grandes festas, fazendo todas aquelas mandingas pra ter dinheiro, amor, sucesso. Até que, em 2006, resolvi passar o réveillon sozinha na minha casa vendo televisão, de pijama, tomando cerveja e comendo canapé de salmão defumado. Pra quê? Foi o melhor da minha vida. De lá pra cá, nunca mais fiz coisa diferente. E esse vai ser igual. Assisto à queima de fogos e meianoite e meia estou na cama feliz da vida. Nada como se livrar de ção ritualística, ainda que ela tenha cara de festa", explica.

De acordo com a médica e psicanalista Christiane Ganzo, do grupo gaúcho Bororó e uma das autoras de A vida como ela é para cada um de nós,as pessoas trabalham mais para consumar os caprichos da passagem do que para concretizar os pedidos. Trata-se de uma ísica e alimentar que às vezes leva à gripe ou à indigestão.

As crendices são fruto da onipotência. Um fruto amargo. "Antropologicamente e individualmente, nos acostumamos a um imenso êxito e nos tornamos profundamente gulosos com nosso desempenho. Assim que dominamos algo, já o apetite aumenta e desejamos controlar o incontrolável", afirma.

A insatisfação virá, qualquer que seja o resultado. Porque sempre se pede mais do que é possível realizar. Nem os milagres são casuais. "Paciência, escritores, a fome é diferente do apetite. Ambos necessitam de respeito e amor. Amor a quem somos e podemos ser frente aos fatos de nossas vidas. O poder é apenas delírio, sequer existe. Somos potentes, sim. Muito potentes, mas não onipotentes. Inventamos a onipotência como uma saída para a suposta impotência."

A verdadeira sorte dos autores é que não há fracasso que não vire uma grande história. O que não aconteceu na vida pode virar arte.

Fonte:
Revista da Cultura. Ed. 29. Dezembro de 2009.

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