domingo, 27 de dezembro de 2009

Sérgio Antonio Costa Gomes (O Anão)



A impossibilidade de satisfazer um desejo o torna ainda mais intenso; isso é um fato. Alguns desejos, de tão intensos que são, podem levar à loucura; essa é outra verdade.

Buscaremos a comprovação de tal tese em um ambiente e com pessoas bastante improváveis.

Melquisedeque era um anão. Por conta disso, talvez, muitos pudessem duvidar que um coração tão pequeno pudesse conter um amor tão grande. O pequenino homem tinha uma aparência engraçada: as pernas curtas e roliças lhe conferiam um andar semelhante ao de um pinguim, a cabeça exageradamente grande, a testa proeminente, lhe davam um aspecto caricato, muito embora, não obstante a aparência um tanto quanto estranha, fosse quase impossível não se contagiar com seu sorriso largo e espontâneo – todos gostavam dele – diziam os mais íntimos que um gigante se escondia sob suas proporções bizarras. Trabalhava como assistente de palhaços no Danúbio Azul, um misto de circo e parque de diversões de quinta categoria. Um mero coadjuvante, em cores espalhafatosas, vestia-se de bobo da corte em suas apresentações e sofria com as travessuras diabólicas de seus companheiros de picadeiro.

O Danúbio Azul, apesar de ser um local destinado a diversões, não tinha um ambiente agradável: a qualidade precária de suas instalações, aliada ao mau-gosto dos entretenimentos oferecidos, só poderia atrair pessoas pouco exigentes ou até mesmo mentalmente degeneradas. Operários de baixa-renda, bêbados, vadios e alguns mal-intencionados se constituíam em seu público predominante. O medonho parque era uma das poucas possibilidades de diversão oferecidas por seus mundinhos reduzidos.

O sombrio local estava a algum tempo na mira da polícia. Crimes sequenciais, com as características predominantes da ação de um serial killer, ocorriam com certa frequência nas adjacências de onde o Danúbio Azul costumava se instalar. As vítimas, sempre do sexo masculino, empaladas por algum objeto pontiagudo, no sentido de baixo para cima, tingiam o chão onde jaziam com o produto mais íntimo de suas carnes.

Carlos Mariano era o soturno proprietário do Danúbio Azul. Era um homem enorme e desagradável; bronco e de feições endurecidas, pouco afeito aos hábitos da higiene, tinha um aspecto seboso, salientado pelos bigodes compridos e grisalhos, amarelados pelo hábito do fumo. Ambicioso, sugava seus funcionários até o tutano dos ossos e pouco se importava com as condições precárias em que viviam. Indiferente aos crimes que ocorriam nas redondezas de seu parque de diversões, interpelado diversas vezes pela polícia, enquanto esbaforia a fumaça fedorenta de seu inseparável cachimbo nos rostos dos agentes da lei, dizia que não tinha nenhuma pista, que era trabalho deles prender o autor de tais atrocidades.

Alheios ao que se passava além do cercado que isolava seu local de trabalho dos bairros periféricos por onde passavam, Melquisedeque e seus colegas mantinham o ritmo normal de suas atividades; tentavam dar o melhor de si no intuito de trazer alguma alegria à paupérrima população que se constituía em seu público fiel.

Amigo de todos, Melquisedeque tinha uma predileção especial por Ananias, o contorcionista e por Nora, a mulher-gorda, por quem nutria uma intensa e anônima paixão, conhecida apenas por Ananias, seu melhor amigo. Sempre envoltos em uma cortina de fumaça de cigarro, juntos, tomavam umas “branquinhas” para aliviar as amarguras da vida. Nessa noite, impulsionado pela coragem etílica, Melquisedeque, que se sentia desencorajado pela incompatibilidade física que havia entre ele e Nora, disse ao contorcionista que não obstante as dificuldades pretendia declarar todo amor que sentia por ela.

Ébrio, Ananias contorcia o corpo esquálido das formas mais aberrantes possíveis, enquanto desdenhava da possibilidade do pequenino amigo realizar seus desejos amorosos:

– Heh! Você e Nora? Não sei não... Ela pesa quase duzentos quilos! È muita carne pra tu. Não dá! Não dá! Não dá!

Uma canção sertaneja embalava a dor-de-cotovelo que invadiu o coração desesperançado de Melquisedeque que esperava uma palavra de encorajamento por parte de seu melhor amigo. Tentando talvez uma posição diferente de Ananias em relação a suas pretensões amorosas, o anão conjeturou:

– Mas será que não tem alguma forma de...

Ainda mais contundente, Ananias interrompeu as considerações do amigo antes que ele pudesse concluí-las:

– Vocês são fisicamente incompatíveis! Não dá! Não dá!

Desiludido, Melquisedeque deixou Ananias bebendo sozinho e foi dormir mais cedo. Estacas de desapontamento varavam seu coração sofrido em todas as direções possíveis. A intraduzível dor do amor impossível tomava-o por completo. Com a esperança fraquejada, banhado em lágrimas, atirou-se em seu catre e mesmo morto de cansaço não conseguiu dormir. Nora não lhe saía dos pensamentos atormentados, roubando-lhe a paz.

Dada suas condições físicas grotescas, Nora não era uma mulher feliz. Trabalhava em um daqueles dispositivos sádicos onde o cliente, conseguindo acertar o alvo com a força e precisão necessárias, mergulhava seu corpanzil no aquário de águas geladas num “chuá redundante”. Frequentemente alguns abusados lhe dirigiam palavras e gestos ofensivos, em meio a gargalhadas estridentes, enquanto tentavam mandá-la para a água.

Cada palavra menos digna dirigida a Nora, penetrava o coração apaixonado de Melquisedeque feito setas envenenadas. Algumas vezes, esquecendo-se de sua estatura acanhada, ele desejou socar até a morte um e outro mais abusado que pegava pesado demais com sua amada. Mas isso significaria tirar seu amor do anonimato, algo que estava fora de cogitação, pelo menos naquele momento, para o inseguro anão.

Pensando em tais infortúnios, Melquisedeque conseguiu pegar no sono apenas quando o sol causticante do verão já se encontrava no final da tarde. Não muito tardou e logo ele acordou com o barulho das primeiras atividades do Danúbio Azul que já estava aberto ao público para mais uma noite de diversões. Sonolento, com uma expressão fisionômica carregada, arrastando-se com seu andar peculiar, caminhou até o local onde Nora divertia um grupo de homens rudes e sádicos.

Raimundo Silva, um operário da construção civil, recém-chegado do norte, exagerava no consumo de álcool e nas ofensas. Com gestos e palavreados chulos que não cabem aqui descrever, ofendia a pobre mulher que estava apenas exercendo sua profissão. Quando conseguia acertar o alvo, mandando-a para o aquário, dizia que ali era seu lugar e tantas coisas mais.

Ao observar a cena, Melquisedeque transfigurou em ódio sua face caricata e desejou atracar-se ali mesmo com Raimundo e fazê-lo retirar, a socos e pontapés, uma a uma de suas ofensas. Ananias, que também observava tudo de perto, ao perceber que o amigo preparava-se para ir às vias de fato, o segurou, desencorajando-o.

– Deixa esse idiota pra lá! Você não pode com ele.

Tomado pelo ódio, o anão vociferou com uma voz desproporcional a seu tamanho:

– Canalha! Quem ele pensa que é para tratar Nora assim?

Tentando apaziguar os ânimos, Ananias retrucou:

– Ele é um idiota! Esquece o cara.

Indignado, Melquisedeque retirou-se do local e foi preparar-se para mais uma de suas apresentações. Mesmo com a algazarra pertinente aos espetáculos dos quais fazia parte, não conseguia tirar da cabeça toda ignomínia da cena de outrora.

Finda as atividades, o Danúbio azul cerrou seus portões e funcionários e artistas, exaustos, retiraram-se para seus precários aposentos coletivos a fim de se recuperar da fadiga de mais uma movimentada noite de diversões.

Logo ao amanhecer, a polícia foi procurar Carlos Mariano em busca de pistas. Um cadáver, que posteriormente foi identificado como sendo Raimundo Silva, foi encontrado em uma rua próxima do local onde o Danúbio Azul encontrava-se instalado. O corpo, empalado por algum objeto pontiagudo, no sentido de baixo para cima, apresentava as mesmas características dos crimes que vinham ocorrendo, já há algum tempo, nas adjacências de onde o circo de Carlos costumava se instalar. Mais uma vez, com seu jeito bronco de ser, enquanto fumava seu cachimbo, Carlos disse que não tinha nenhuma pista, que era trabalho da polícia investigar e prender o criminoso.

Alheios ao que se passou na noite passada, além das cercas que os continham em seu sombrio local de trabalho, os funcionários do Danúbio Azul, após o descanso diurno, se preparavam para mais uma rotineira noite de entretenimentos. Porém, dessa vez, pelos para Nora, um fato inusitado estava prestes a acontecer. Melquisedeque tomara uma crucial decisão: no calor de sua paixão, resolveu deixar as inseguranças de lado e finalmente declarar todo seu amor ao objeto de sua especial predileção. Tímido, resolveu dirigir-se aos aposentos de Nora enquanto ela ainda estivesse dormindo. Aproveitaria-se do torpor de sua sonolência para pegá-la de surpresa e, enfim, lhe dizer tudo o que havia guardado por quase três anos de anonimato.

Os quartos onde descansavam os funcionários do Danúbio eram precários e mal iluminados. Sem bater na porta que não tinha trancas nem fechadura, Melquisedeque adentrou o recinto onde Nora dormia ruidosamente e lhe sacudiu o corpanzil que se esparramava sobre a cama reforçada. Pega de surpresa, tonta de sono, Nora reconheceu Melquisedeque, apesar da escuridão, por sua pequena estatura e por sua voz peculiar:

– Ah! È você? O que foi? Estou atrasada?

– Nora... Tem uma coisa que há muito tempo preciso lhe dizer...

Melquisedeque, tomado por uma inusitada coragem, confessou a obesa mulher todo amor que sentia por ela, o quanto ela era especial para ele, o quanto a desejava. Nora, espantada com aquela confissão repentina, puxou-o a si, esmagando-o contra a consistência gelatinosa de seu corpanzil, e disse:

– Oh, meu lindinho! Vem para os braços da mamãe!

Assim, ambos permaneceram abraçados e calados por alguns minutos até que Nora soltou uma gargalhada de sarcasmo, desmoronando o paraíso onírico em que, por alguns breves instantes, viveu Melquisedeque.

– Ah, ah, ah! Você é louco? Ah, ah, ah! Você e eu? Amantes? Que ridículo! Olhe para você. Não acredito nisso... Ah, ah, ah...

Ainda gargalhando, ignorando Melquisedeque e todo seu amor, Nora levantou-se e, atrasada que estava, foi preparar-se para mais uma noite de trabalho e humilhações.

Arrasado por ter seu amor sincero e ardente, assim desprezado, Melquisedeque não compareceu a suas obrigações da noite e ninguém o achou em lugar nenhum.

No dia seguinte, os funcionários encarregados da limpeza depararam-se com uma cena macabra: chorando copiosamente, Melquisedeque encontrava-se abraçado ao corpanzil ensanguentado e inerte de Nora. Empalado no abdômen, no sentido de baixo para cima, a obesa vítima apresentava as mesmas características dos crimes que ocorriam além das fronteiras de madeira compensada que separavam o Danúbio do mundo lá fora.

Ananias que já sabia do amor do anão por Nora, chamou a polícia que não tardou em chegar. Banhado em lágrimas, o anão se entregou sem oferecer resistência e sem nada dizer em sua defesa. Uma expressão de revolta estampava-se nos rostos dos funcionários e amigos de Nora que, com olhos odientos, acompanharam a viatura que levava Melquisedeque até ela sumir de vista.

Diz um ditado popular que “a voz do povo é a voz de deus”. Sentença que é profundamente questionável. Nunca gostei muito de ditados populares, embora alguns deles sejam, de fato, eficientes no sentido de enunciarem verdades simples. “Quem ama o feio, bonito lhe parece” é um deles.

Quem quer que observasse Nora e suas formas grotescamente deformadas pela obesidade mórbida, jamais imaginaria que ela fosse capaz de despertar paixões tão intensas. Ananias mantinha, já há alguns anos, uma caso secreto com ela. O contorcionista, sem coragem de assumi-la perante todos, mantinha o relacionamento no anonimato, embora isso não fosse do agrado dela.

Na noite em que Melquisedeque resolveu declarar seu amor, poucos minutos depois, Ananias resolveu ir visitá-la em seus aposentos. Ao adentrar seu quarto no momento em que ela abraçava o anão, o contorcionista, na obscuridade proporcionada pela escuridão do recinto, imaginou ter visto o que não aconteceu. Tomado pelo fel do ciúme, retirou-se antes de ouvir as gargalhadas de desprezo de Nora e planejou a forma mais cruel de se vingar de ambos.

De há muito tempo, Ananias já vinha eliminando, de forma contumaz, aqueles que escarneciam Nora de uma maneira mais contundente. Conhecedor que era do amor de Melquisedeque por sua obesa namorada, cometia os assassinatos de forma a incriminar o anão e assim se livrar de um provável rival na disputa pelas carícias de Nora. Dessa vez, ensandecido pela dor de uma traição que só aconteceu em sua cabeça, decidiu acabar com os dois, aniquilando a vida de Nora, produzindo uma espécie de morte em vida em Melquisedeque que seria culpado pela morte de sua amada.

Enquanto isso, na cadeia, inocente, jogado em um canto sujo e úmido de sua cela, Melquisedeque permanecia calado – para ele a vida havia perdido a razão de ser.

Fonte:
http://www.mesadoeditor.com.br/

Um comentário:

Unknown disse...

Conto genialmente simples, mas que assume caracteres complexos se você souber se entretecer em todos os fios da trama. O que antes era aparentemente simples revela um caráter cujo fio psicológico parece ultrapassar de muito as fronteiras acanhadas que separam o circo do mundo lá fora e ganham a universalidade de nossos sentimentos, muitas vezes escondidos sob a aparência externa que tentamos manter a fim de nos tornarmos "dignos" cidadãos de nossa sociedade hipócrita e covarde. Sérgio Costa Gomes é um gênio. Sabe como conduzir a trama com maestri a nos lena à "purgação" de sentimentos que jazem escondisdos em nosso íntimo mais profundo. Conto absolutamente genial