sábado, 7 de fevereiro de 2009

Antonio Augusto de Assis (A enchente)



Silvedora e Sezefredo se encontraram, se gostaram, se casaram, se enlearam num xodó de fazer medo.

Medo de os outros botarem mau olhado e o amor gorar, se reverter, se atrapalhar, desmastrear e súbito acabar. Mas não gorava não. Quanto mais passava o tempo, mais calor no assanhamento, mais amor no coração. Na primavera e no verão, também no outono e mais até no inverno, era aquele achegamento com juras de amor eterno.

Era de noite, de tarde, de manhã, de madrugada, toda hora para eles era hora de agarra-agarra, interminável saborosa farra, beijo no queixo, cosquinha no atrás-da-orelha, amor sem-pausa estava ali.

Só quando ele ia para o eito é que os dois se desjuntavam. Morantes num pé de serra, ia ele todo dia para o roçado, vol­tava embalado na hora do almoço e no fim da tarde, guloso dos carinhos dela, mais até que das gulodices da panela.

E a bóia era boa. A sopa de inhame, o caldo d'unto com taioba e couve, o feijão preto, a canjiquinha amarelinha, a costeleta de porco. Ele chegava de enxada no ombro, o corpo suado, um assobio na boca soprando dengosas modinhas, largava a tralha no terreiro e ti­bum no rio para o vespertino asseio. Silvedora já esperando com a roupa dele limpinha na mão, para as alegrias da noite.

Só eles os dois, e as estrelas no céu e um bicho ou outro piando nas redondezas. Depois da janta, a viola para a digestão. E zás de novo na cama, para a festa do amor-sem-fim.

Só que tem que mas porém Silvedora de repente embarrigou. Sezefredo e ela por uns tempos só pensavam no bebê. Que nasceu robusto e que na pia o nome de Ambrósio recebeu. Primogênito de uma ninhada de nove: três meninas e seis guapos garotões. Silvedora mal esvaziava e já de novo arredondava. Mas nem por isso o amor diminuía, antes pelo contrário mais crescia.

Até que deu aquela enchente doida. Trinta dias chovia sem parar. Dilúvio parecia. Da serra desciam grossas enxurradas levando as lavouras de arrasto. Era água de não mais acabar. O rio em frente da casa roncando, engordando, troncos batendo nas pedras, bichos do mato rolando embolados na correnteza, e não parava de chover.

Um estrondo na madrugada. Era o curral caindo. Sezefredo acordou num susto, viu o rio levando as vacas, puxando junto o galinheiro, o cavalo, as cabras. Só a casa deles ainda em pé, sustentada nas pilastras altas. Ilhados ali, viam as águas já entrando pelas portas, Silvedora e a criançada chorando, rezando, Sezefredo pra-lá-pra-cá com uma corda na mão.

O pé-de-manga tinha tronco forte, haveria de resistir. Pela janela atirou a corda, laçou um galho. O rio crescendo, rosnando. Sezefredo mandou as crianças se agarrarem na corda e subir na árvore. Mandou também Silvedora, que ainda conseguiu salvar-se a tempo.

Ele Sezefredo rodopiou águas abaixo misturado com os pedaços da casa. Paredes, soalhos, alicerces, telhado, móveis, panelas, todo o seu ninho engolido pelo furor da correnteza. As crianças e a mãe olhando do alto da árvore sem nada poder fazer.

Parou na manhã seguinte a chuva. Silvedora desceu com toda a ninhada. Nessas horas chorar não vale; é levantar a cabeça e enfrentar. Recomeçar. Reconstruir. Chegou todavia um recado.

– Dona Dora: é pra senhora preparar um feijãozinho aí, que Seu Fredo vem pro jantar. Ele mandou dizer que não morreu não. Salvou-se montado num pé-de-bananeira, mas engastalhou numa peroba e tá agora só esperando baixar mais um pouco o rio pra ele descer de lá.

No chão mesmo. Foi assim ele chegar e Sezefredo mais Silvedora mandaram as crianças sair de perto, e pimba num mata-saudade de dar gosto. Donde nasceu o nono fruto, chamado Pluvioso da Silva, que já encontrou a casa de novo erguida, a lavoura refeita, o curral e o galinheiro mais bonitos do que os que a enchente carregara.
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O poeta Antonio Augusto de Assis é membro da Academia de Letras de Maringá e considerado um dos maiores trovadores do Brasil
Esse conto foi premiado este ano (2008) em concurso nacional promovido pela Academia Niteroiense de Letras, em parceria com a Imprensa Oficial do Rio de Janeiro.

Fontes:
http://blogdodepaula.blogspot.com/
Imagem =
http://presentepravoce.wordpress.com

Antonio Roberto de Paula (Ary, o poeta que amou Maringá)

Maringá - 1952 - Quadro de Edgar Werner Osterroht de 1952
(quando a cidade tinha 5 anos) mostra os prédios do
escritório da Companhia Melhoramentos e o
Hotel Esplanada, na esquina da Duque de Caxias
com a então rua Bandeirantes (hoje, Joubert de Carvalho).
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Quem te avista nos dias de agora talvez não saiba quantos lutaram para que tu chegasses à condição de terceira cidade paranaense. O que seria de ti se não existissem homens que empunhassem a caneta para contar tua história?

Ary de Lima, por amor e com competência, fez a maior declaração que um morador poderia fazer a ti. Com o coração repleto de júbilo e agradecimento, o poeta Ary de Lima gravou ainda mais seu nome à Cidade Canção, escrevendo o hino da menina Maria do Ingá. Outro brilhante professor, Aniceto Matti, se encarregou de colocar melodia àquela declaração de amor e gratidão e a parceria redundou num canto emocionado que vai atravessando gerações.

O eclético Ary, falecido em abril de 98, deixou uma vasta folha de serviços prestados a Maringá. Uma folha escrita com emoção. Professor, vereador, deputado, radialista. E, acima de tudo, poeta. Os feitos desse maringaense nascido na cidade mineira de São Sebastião do Paraíso, que grande contribuição deu ao progresso da Cidade Canção, jamais serão esquecidos porque sempre haverá numa escola uma criança cantando o Hino a Maringá. Em qualquer solenidade que a linda flor, a mais gentil do norte do Paraná for homenageada, lá estará a eterna lembrança do poeta Ary de Lima.

Há em ti o perfume das flores, a poesia de todos os ninhos, e uma luz que acende fulgores, clareando teus novos caminhos. Maringá, o teu nome sublime será porque tiveste a graça de receber, em teu seio, figuras como Ary de Lima, que fez da vida uma poesia sem deixar de atender sua gente. Ary fez poesia, ensinou e legislou. A tripla colaboração que o tornou uma grande eminência maringaense.

E para homenagear Ary de Lima, o melhor é buscar definições na sua poesia a Maringá: o teu vulto traduz a mensagem de um passado coberto de glória, um passado que exemplo nos dá. Ary pode ser saudade, mas não é passado. Poeta nunca morre. Está sempre compondo novas estrofes, aqui ou em qualquer outro lugar.
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Hino de Maringá
(Letra - Ary de Lima/ Música - Anicetto Matti)

I
Quem te avista, nos dias de agora,
Acenando ao porvir da esperança,
Adivinha a floresta de outrora
Que embalou tua vida criança
- Há em ti a grandeza imponente
De um passado que exemplos nos dá:
-Se és glória da Pátria contente,
És orgulho do teu Paraná.

ESTRIBILHO
Linda flor, a mais gentil,
Do norte do Paraná,
És orgulho do Brasil,
Nossa amada Maringá (BIS)

II
O teu vulto traduz a mensagem
De um passado coberto de glória,
Arrancado à floresta selvagem
Para eterno viver na história.
Um poema de luz para o mundo
O teu nome sublime será,
E de nosso afeto profundo
Sempre filha serás Maringá.

ESTRIBILHO
Linda flor, a mais gentil,
Do norte do Paraná,
És orgulho do Brasil,
Nossa amada Maringá (BIS)

III
Teu encanto de hoje é retrato
Das belezas que Deus espalhou
Como bênçãos do céu sobre o mato
Que a tua grandeza enfeitou.
Há em ti o perfume das flores,
A poesia de todos os ninhos,
E uma luz que acende fulgores,

Clareando teus novos caminhos.
ESTRIBILHO
Linda flor, a mais gentil,
Do norte do Paraná,
És orgulho do Brasil,
Nossa amada Maringá (BIS)
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Arlene de Lima (Ary de Lima, saudoso pai)



Papai, lembro com saudade
tuas conversas mineiras,
a vida de liberdade
e as poesias altaneiras.

Poeta e mãos de operário,
ah, meu pai, quanta lembrança...
foi teu hábito diário
com flores ter aliança!

Por onde meu pai passou,
explodiu sua poesia.
Tanta magia deixou
suas marcas por onde ia.

Papai querido, partiu...
nada mais há que fazer.
Ficaram saudades mil,
um enorme padecer!

Papai descansa, repousa
dentro de cada um de nós.
O seu corpo está na lousa,
mas é viva a sua voz!

Pois não tenho cultura e arte
para saber expressar
meu grande amor, exaltar-te,
saudoso pai exemplar!

Lá atrás, tudo ficou,
muitos amigos, parentes,
lembranças de quem amou,
e acenos aos nossos entes...

Na alma, jaz tanta saudade,
papai partiu, nos deixou:
ficou a honestidade
que nos corações plantou!
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Fontes:
Academia de Letras de Maringá
Imagem = http://garatujando.blogs.sapo.pt

Antonio Roberto de Paula (Amores de todos os matizes)


Tento escrever. Está difícil. Procuro inspiração nos escândalos envolvendo gente graúda da cidade. Deixo de lado. Já disse e já disseram quase tudo. Se for colocar mais algumas linhas sobre isso, tenho quase a certeza de que vou ser repetitivo.

Procuro pôr no papel algo sobre o amor. Penso num amor específico. O de mãe, por exemplo. Não, não... É matéria vencida. Seria cair no lugar comum falar da mãe. Afinal, não conheço um único ser humano que não ame a mãe com todas as forças. Mãe, me desculpe, mas falar do meu amor pela senhora não dá ibope.

Busco então o amor pela mulher. Aquele amor que movimenta o espírito e o físico. Não posso fazer isso. Não tenho a coragem e nem a pretensão de fazer confidências. Além do mais, minha vida sentimental pouco difere da maioria das pessoas.

Vem o amor pelos familiares. Outro amor comum. Apesar dos arranca-rabos com a turma consangüínea, prevalece o amor. Briga-se internamente e dá-se a vida na defesa de um irmão. Quem não tiver uma família com este perfil não é normal. Portanto, falar de amor familiar também não chama a atenção.

Quem sabe falar sobre o amor pelos amigos? Dou uma geral no número de amigos. Começo a peneirar as pessoas com as quais me relaciono e procuro os verdadeiros amigos. Parece que tenho vários. Só parece.

Lembro de algumas decepções que trago comigo e de muitas outras que infringi às pessoas. Percebo que mais sou perdoado do que perdôo. Lembro dos amigos de longa data que se perderam no tempo, dos circunstanciais, dos que chegaram muito tempo atrás e que estão comigo até hoje e dos que chegaram agora e que luto para preservá-los.

Não conseguiria falar dos meus amigos. Além de ferir suscetibilidades ao omitir algum nome que imagina ter a recíproca neste amor, que chamamos de amizade, seria básico porque todas as pessoas são iguais. Os relacionamentos diferem, mas mantêm a essência: são complicados. Se forem simples, os relacionamentos não são importantes.

Desisto de falar de amor. Sei que tenho uma fonte inesgotável de amor e não sei se faço a distribuição correta. Vou falar do amor de Deus. Quero começar agora, mas hoje está difícil escrever. O importante então é sentir o amor de Deus. Nenhuma frase vai poder traduzir este sentimento. Paro de escrever, prefiro sentir.

Fontes:
http://www.tvcm.com.br/da_minha_janela.htm
Pintura = http://pinturadeamor.blogs.sapo.pt/

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

José Feldman (Espelho da Alma)


I

Antes de começar a narrar a minha odisséia, creio que devo me apresentar, para que não imaginem ter eu saído de algum livro de conto de fadas.

Meu nome é Zwaig Ramcharran. Apesar de ser filho de mãe norueguesa, nasci nas Bahamas. Desde cedo, senti uma tendência aquém do normal para a pintura, uma facilidade enorme para realizar a combinação de cores, dando a impressão de que meus quadros criavam vida.

Comecei a dedicar-me desde cedo a esta arte e, senti-me muito influenciado por Ben Nicholson(1) , inglês de Buckinghamshire (2), filho do já pintor William Nicholson. Ben foi considerado um dos maiores expoentes da arte não figurativa da Inglaterra, criou obras abstratas, tratadas por vezes, como baixo-relevos, mas também pintava paisagens e naturezas mortas muito estilizadas, oferecendo jogo de cores purificadas ao extremo.

Aliás, para não estender-me muito no assunto, o qual acredito não ser de vosso interesse uma aula de pintura, encerro esta explanação com uma frase marcante de Nicholson, ao menos para a minha pessoa: “Os problemas de que trata a arte abstrata ligam-se a encontro de forças e, por conseguinte, toda solução em que nos detemos exerce influência sobre todos os equilíbrios de forças. Trata-se de uma partida de futebol entre o Arsenal e o Clube de Corridas ou do movimento dos astros”.

Graças a este meu dom, fui galgando cada vez mais a escala dos pintores do século XX, expondo em museus da América do Norte, América Latina e Europa, rendendo-me, pois, certa compensação financeira e, estando eu com 35 anos de idade, resolvi procurar um lugar tranqüilo para me dedicar à pintura e, ao meu hobby, a eletrônica.

Morava numa casa simples de um quarto apenas, em Estocolmo, Suécia, localizada na Grev Magnigatn, que fazia esquina com Riddargatan. Entretanto, sentia que a casa já era pequena. Portanto, graças à venda de alguns quadros na exposição de arte e artesanato de Liljevalchs Konsthall(3) , finalmente pude cumprir o meu sonho de um lugar sossegado, comprando um terreno em Riddarholmen, beirando o lago Malaren, um lugar quase que totalmente isolado, excetuando-se o grande movimento aos finais de semana devido a proximidade do cemitério Riddarholmskyrkan, ocasião tal, que aproveito para ir às confeitarias no centro de Estocolmo para comer o famoso “smorgasbord”(4) e degustar um bom vinho. Esta é uma oportunidade para percorrer a cidade, atualizando-me de novidades no mundo da arte da eletrônica.

II

A minha história começa na terça-feira, no período da manhã, quando eu me mantivera ocupado tentando montar um conversor térmico, para fornecer maior calor à casa, pois sentia que nesta época do ano, somente a lareira seria insuficiente, além do fato de que não estava ambientizado num país frio como a Suécia e eu ser originário de um país de clima quente.

Estava absorvido nesta montagem – eram tantos fios, pólos de contato, relés, resistência, etc. – que comecei a perder a paciência e abandonei tudo de lado, retornando às minhas pinturas.

O quadro em que eu me empenhava no momento era uma espécie de auto-retrato de corpo inteiro, no qual eu colocava-me refletido num espelho e, na frente, meio de lado, uma figura de costas, que seria eu mesmo, o qual devo confessar sem falsa modéstia, um retrato fiel de mim mesmo. Entretanto, o que eu não encontrava, era uma cor que desse mais vida – não desejava um retrato simplesmente – mas sim algo que mexesse com as emoções das pessoas, despertasse seus sentimentos, uma pintura viva, na qual eu seria o Dr. Viktor Frankestein, como idealizou Mary Shelley. Seria minha maior obra-prima.

Enquanto eu refletia sobre o que utilizar, peguei meu cachimbo bengt “plumb”(5) , o qual havia ganho de presente de um oficial do exército, em umas de minhas vernissages em Londres, Inglaterra, abri uma caixinha de tabaco dinamarquês “neeskens”, meu preferido por não ter nenhum odor, de modo a que o ar não ficasse muito carregado em meu atelier, já tão carregado pelo cheiro das tintas à óleo.

Estava eu perdido em reflexões sobre a pintura, quando a réstia de luz que penetrava em meu atelier principiou a desvanecer-se. Mirei através do vidro da janela e percebi que o céu, frequentemente sombrio, tornava-se escuro, prenunciando o início de uma tempestade (algo muito raro na Suécia), mas o clima encontrava-se instável em virtude do aquecimento global - obra do homem. passei a trava de segurança no batente da janela, trancando-a, para que, se porventura houvesse um vento violento, não penetrasse no atelier, derrubando tudo.

Quase que instantaneamente, uma saraivada de trovões estourou no céu, cujos raios brilhavam intensamente, iluminando-o, como se fosse o "Gotterdamerung", a batalha final dos deuses realizada em solo sueco.

Repentinamente, uma descarga elétrica se fez sentir nos fios de alta tensão dos postes enfileirados na rua, produzindo um clarão de grande intensidade e, tudo que se encontrava ligado na eletricidade, estalou. as luzes se apagaram e um cheiro de queimado volatizou-se pelo ar - fios queimados e retorcidos.

Confesso que eu, acostumado a tempestades em vários lugares do mundo, a observar o encanto das forças da natureza, senti um calafrio repentino percorrer-me a espinha, mas prevenido sobre estes fenômenos repentinos neste local isolado da cidade, havia-me preparado, colocando no centro de cada compartimento da casa uma lamparina, algo arcaico, mas eficiente.

Peguei a caixa de fósforos que havia utilizado para acender o cachimbo e acendi a lamparina da sala. No instante que meus olhos se acostumavam lentamente com a escuridão que momentaneamente havia me cegado, o ruído de um estalo no assoalho na sala contígua me assustou e, um suor frio escorreu em minha testa. Fiquei paralisado.

Agucei os ouvidos, mas nada mais ouvi. Senti minha pressão voltar ao normal e, raciocinei que estava a me deixar levar pela imaginação - uma casa isolada, próxima ao cemitério e, como se não bastasse, tivera a maldita idéia de ler na noite anterior o livro "Drácula", de Bram Stocker.

Não, não podia deixar que minha imaginação me dominasse. Evidentemente é isto que ocorreu...eu estava muito sozinho.

Espere!!...Um ruído no assoalho novamente. Passos...não! Não é minha imaginação! Alguém ou alguma coisa está na casa.

Procurei me controlar e dirigi-me lentamente até o criado-mudo, de onde tirei da gaveta uma pistola semi-automática Maanlicher, a qual ganhei de um oficial austríaco, quando expus em Viena. Na verdade, era uma pistola para colecionador, já que há mais de 20 anos não se fazem mais suas balas especiais de calibre 7,65. Aliás, a última vez que uma arma como esta foi empregada, foi na II Guerra Mundial. Contundo, a minha ainda possuía em seu tambor as dez balas originais, fabricadas em 1905, raridade. Mas, para auto-defesa, tem sua validade.

Peguei a arma e andei sorrateiramente, sempre beirando a parede, para não ser apanhado de surpresa pelas costas.

Novo ruído! E na semi-escuridão de meu atelier pareceu-me divisar uma sombra passando célere. Com a arma na não, tremendo entre meus dedos gelados, avancei devagar e, numa mesa ao lado peguei um farolete e fui em direção à soleira da porta entreaberta - alguém estava lá - eu sentia.

Procurei raciocinar. O jeito era fazer como aqueles filmes policiais americanos, meter o pé na porta e entrar com tudo. É claro, seria um ato absurdo, pois se alguém estivesse me esperando, me acertaria facilmente.

Mas não podia ficar naquela posição de presa acuada. Suspirei para me recompor e meti o pé na porta, iluminei o atelier com o farolete e gritei: "Pare aí mesmo ou atiro!"

Talvez tenha sido uma entrada em cena muito cinematográfica, mas não havia mais nada que passasse por minha cabeça - aliás, devo admitir, que naquele momento, nem cabeça eu tinha.

O farolete iluminou tudo - não havia ninguém. Gelei!

Eu estava em minha casa, e eu era a caça.

Gritar? Para quem? Só haviam os mortos do cemitério.

Maldita hora que aluguei esta casa isolada do mundo! Estou com os nervos à flor da pele.

Lentamente, tornei a ficar de costas para a parede e fui andando como um gato pelo atelier, apesar de minhas pernas estarem tão trêmulas, que me faziam cambalear.

Com respiração arfante, andei, passo a passo para o canto da sala. A janela estava trancada, como eu havia deixado antes da tempestade e, só fechava por dentro.

Alguém estava em casa! Girei o farolete pelo ambiente.

A estante de pincéis e tintas, a caixa de ferramentas, a prateleira de porcas, parafusos e fios, o conversor térmico estourado e enegrecido, caído junto ao cavalete, provavelmente devido à descarga elétrica.

O quadro...o...o quadro!

Minhas pálpebras ergueram-se completamente e com os olhos esbugalhados de pavor fitei o quadro. O farolete escorregou de minha mão, batendo em meu sapato com um ruído surdo e rolando até próximo ao conversor. Minha boca entreaberta de espanto.

O quadro! - A imagem de mim mesmo que havia desenhado no espelho...sumira. Só ficara o espelho e a imagem de costas.

Senti um terror enorme - se eu fosse um gato de sete vidas, teria perdido ao menos umas seis naquele momento.

Um ruído à minha direita.

Aterrorizado, quase desfalecido, inclinei-me para a direita e o vi. Nem sei dizer o que senti...era a visão mais tétrica que jamais poderia ter imaginado em toda minha vida, em pensamento ou pesadelo. Lovecraft, Hoffman ou Stocker eram simplesmente infantis diante de que eu via.

Encostei-me na parede e senti-me escorregar pelo assoalho.

Ele estava parado tranquilamente à minha frente, fitando-me nos olhos, como se esperasse uma reação minha, pior do que qualquer filme ou história de terror, pior do que tudo que se pode criar. Estava lá a encarar-me.

E, então, ergueu as mãos. Desesperado, apontei a arma para ele.

Um raio! Uma luz! Um buraco vindo do nada! Tudo rápido como um relâmpago.

III

O Museu Liljevatchs Konsthall estava apinhado de gente. Fotógrafos, jornalistas, artistas e críticos estavam todos reunidos para admirar o quadro que fazia sensação. O diretor do museu, cedia uma reportagem, extasiado, aos repórteres:

"Sentimo-nos honrados em realizar esta exposição em nosso museu em homem ao desaparecido pintor Zwaig Ramcharram. Como já puderam comprovar anteriormente, seus quadros são de uma vivacidade ímpar. E, hoje, temos a imensa satisfação de revelar-lhes este fantástico quadro, o qual podem perceber nele a imagem do próprio artista refletida no espelho, com uma expressão de angústia, como se estivesse vendo uma coisa sobrenatural. Podemos até sentir em seu quadro, uma réplica de seu atelier, o desespero, a dor, a arma que empunha em sua mão, que parecem tão real. Se observarem dentro de seus olhos, parece que ele está nos vendo, com tanta intensidade, que chega até dar um arrepio. As cores são vivas, que parece que ele está vivo dentro do quadro, diante de nós. Esta é com certeza sua maior obra-prima, onde ele mexe com nossos sentimentos. Lamentavelmente, desde aquela semana de tempestade de raios, Zwaig desapareceu misteriosamente, mas ele sempre será imortal entre nós. Descerro para vocês o quadro "Espelho da Alma".
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Notas
1 1884 – 1982.
2 Condado no Sul da Inglaterra
3 Liljevalchs Konsthall é uma galeria de arte, localizada na Ilha de Djurgarden, em Estocolmo, Suécia. Inaugurada em 1916, é uma mistura da arte moderna e a tradicional.
4 O Smorgasbord é um buffet elaborado com diferentes ingredientes típicos da cozinha sueca. A palavra sueca "smörgåsbord" é composta pelas palavras smörgås (sandwich) e Bord (mesa). Se costuma servir em reuniões familiares ou em festejos, sendo servido nos restaurantes como um buffet. Um tradicional smörgåsbord consiste em alimentos quentes e frios, separando os pescados das carnes. Indispensáveis são o pão (diversos tipos) e a manteiga e queijo, arenque, salmão, almôndegas, salsichas e patê além de outras especialidades suecas. A idéia é consumir muitas proteínas, por isso os acompanhamentos como batatas, arroz ou saladas estão geralmente ausentes. Os comensais se servem por si mesmos e se fazem até cinco rodadas. Costuma ser acompanhado com cerveja e aquavit (bebida destilada escandinava, com 40% de álcool, aromatizada por ervas.
5 Bengt = cachimbo curvo, tipo utilizado por Sherlock Holmes, ou por marinheiros. Plumb = marca de cachimbo fabricado na Inglaterra.
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Fontes:
Feldman, José. Antologia de Contos para Curar Dorminhocos.
Imagem = http://www.angela.amorepaz.nom.br/

Edgar Allan Poe (Poema: Annabel Lee)


Foi há muitos e muitos anos já,
Num reino de ao pé do mar.
Como sabeis todos, vivia lá
Aquela que eu soube amar;
E vivia sem outro pensamento
Que amar-me e eu a adorar.

Eu era criança e ela era criança,
Neste reino ao pé do mar;
Mas o nosso amor era mais que amor
O meu e o dela a amar;
Um amor que os anjos do céu vieram
A ambos nós invejar.

E foi esta a razão por que, há muitos anos,
Neste reino ao pé do mar,
Um vento saiu duma nuvem, gelando
A linda que eu soube amar;
E o seu parente fidalgo veio
De longe a me a tirar,
Para a fechar num sepulcro
Neste reino ao pé do mar.

E os anjos, menos felizes no céu,
Ainda a nos invejar...
Sim, foi essa a razão (como sabem todos,
Neste reino ao pé do mar)
Que o vento saiu da nuvem de noite
Gelando e matando a que eu soube amar.

Mas o nosso amor era mais que o amor
De muitos mais velhos a amar,
De muitos de mais meditar,
E nem os anjos do céu lá em cima,
Nem demônios debaixo do mar
Poderão separar a minha alma da alma
Da linda que eu soube amar.

Porque os luares tristonhos só me trazem sonhos
Da linda que eu soube amar;
E as estrelas nos ares só me lembram olhares
Da linda que eu soube amar;
E assim 'stou deitado toda a noite ao lado
Do meu anjo, meu anjo, meu sonho e meu fado,
No sepulcro ao pé do mar,
Ao pé do murmúrio do mar
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Fonte:
Poetas norte-americanos. RJ: Lidador, 1976.

Argemiro Garcia (Caldeirão Literário da Bahia)

JANELAS

Olho da janela e o que vejo?
Formigas de azulejo
escalam muros de pedra;
anjos de face rosada
velam santos e orixás;
outros anjos, de cara suja,
percorrem praias e ruas,
à cata de latas e lixo.
Em torno, um e outro bicho
passam também a fuçar.
Rabiscos riscam tapumes e uma garatuja
Assina-se nas paredes. Solidão flutua no ar.
Janelas, sempre janelas!
Assisto através delas
o mundo que teima em passar.
Gotas escorrem do vidro:
Lágrimas? Suor?
Liberdade, Paraíso, Amaralina,
Copacabana, Imbetiba, Ondina,
quantas ruas será que eu, ainda,
percorro até me encontrar?

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MORRO ACIMA, MORRO ABAIXO

A cidade sobe, num jeito de presépio,
pelas curvas de nível e ladeiras.
Sobem, acima dela, pipas, pássaros,
nuvens de fumaça, como um véu;
sobem sonhos e orações num escarcéu.
A cada chuva descem,
nas sarjetas,
suores, sujeiras e dissabores,
incertezas e esperanças
que aguardam outro dia,
outra chance, a loteria,
para se concretizar.
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PAZ

Não sou guerreiro.
Não sou herói.
Guerreiros não vacilam nas grandes batalhas.
Prefiro lençóis a mortalhas.
Não puxaria um gatilho,
mas uma enxada.
Dignidade se constrói
com tijolos e cimento,
calos, calva e cãs.
Medalhas e bravatas? Coisas vãs.
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VIRA-LATAS

a Marilda Confortin e Manuel Bandeira

Filitas peito facas,
feito lápides, são estacas
cravadas no coração do Brasil.
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MARINHEIROS

Sobre a pedra, uma gaivota
observa o remador
e estuda sua rota.
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VIDA

A vida é um mistério
escancarado
livro aberto em idioma
ignorado,
escrito em pele humana,
pergaminho,
mapa ilegível
do caminho.
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ANJOS BARROCOS

Todo santo de pau oco
espera um pouco
espera um beijo
um soco.
Todo santo de pau oco
aguarda um pouco
um sorriso
um riso rouco
e guarda em si
um louco
desejo de carinho
um jeitinho.
Todo santo de pau oco
se guarda
e guarda em si
um prêmio
um tesouro,
pedra, ouro,
e espera sempre um pouco.

Macaé, 21/02/90
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ESTAÇÃO RODOVIÁRIA

Um gato passa caçando
na madrugada sem mistérios.
Vozes, tosses, impropérios
e um par de tamancos longínquos
ecoam pelo saguão;
o vapor da cafeteira
envolve o guarda ao balcão.
Dúzias de óculos me espiam
sem olhos atrás da vitrina
não sei como enxergariam
com essa luz que ilumina
menos que a minha sombra.
O chiado da vassoura
e a risada que estoura
sublinham o não-silêncio
da noite baiana cansada.

Salvador, 19/7/87
G G G G G G G G G G G G
Sobre o Autor
Nasceu em São Paulo, em 1960. Graças a seu pai, Argemiro, e a seu professor Wilson que se interessou pela poesia. Casou-se com Mariene: tiveram quatro filhos, Gabriela, Leonardo, Pedro e Gabriel. Hoje, moram em Salvador.

Participou das seguintes antologias:
Álbum In Verso. Macaé, RJ: Petrobras, 1995.
Brusca Poesia. Salvador, BA: Grupo Cultural Pórtico, 1996.
Antologia Escritores & Poetas da Bahia. Salvador, BA: Petrobrás, 1997.
Anuário Pórtico 1997. Salvador, BA: Grupo Cultural Pórtico, 1997.
Antologia Poetrix. Salvador, BA: Movimento Internacional Poetrix, 2002.
Antologia Pórtico 1. Salvador, BA: Grupo Cultural Pórtico, 2003.

Mantém o blog "Canto de Anjo", sobre o filho caçula, que é autista:
http://www.cantodeanjo.blogger.com.br
o blog "Cronica Autista", de notícias sobre autismo
http://www.cantodeanjo.blogger.com.br
e o blog "Imbloglio",
http://www.imbloglio.blogger.com.br , de Crônicas, poesia e tudo o mais.
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Fonte:
http://www.antoniomiranda.com.br

Bienal Afro-Brasileira do Livro, em Salvador, 7 de Fevereiro

Pintura de Wilson Tibério (1923-2005)
O evento traz à tona com grande ênfase a cultura afro-brasileira situando além do foco nas produções literárias independentes produções literárias do mercado editorial com prioridade no corte racial e outras manifestações culturais resultantes da trajetória de resistência dos afro-descendentes.

Bienal Acontece no dia 07 de fevereiro de 2009 (sábado), às 10h, na Câmara Municipal de Salvador – Pça. Tomé de Souza, o lançamento da Bienal Afro-Brasileira do Livro - Educar para a Diversidade. O evento traz à tona, com grande ênfase, a cultura afro-brasileira situando, além do foco nas produções literárias independentes, produções literárias do mercado editorial com prioridade no corte racial e outras manifestações culturais resultantes da trajetória de resistência dos afro-descendentes.

Durante a Bienal, a Secretaria de Educação do Estado da Bahia – SEC, faz lançamento do edital para seleção publica de material didático em Historia e Cultura Africana e Afro-brasileira e Educação das Relações Étnico Raciais para professores e alunos da rede estadual de educação. A programação do evento conta com: Colóquio Intelectual, mesas temáticas, exposição de artes plásticas e livros temáticos.

CONCEITO - Foi compreendendo que é necessário valorizar, sem disfarces, a luta e a história do povo negro na formação da identidade e cultura da sociedade brasileira que a Bienal Afro chega à conclusão que contribuir para ajudar a minimizar a desigualdade racial não é apenas resolver seus aspectos puramente econômicos, plasmar leis, mas é também educar a família, a comunidade, o professor e, nessa educação, reconstruir a educação nos parâmetros edificados pelos seus principais protagonistas.

Para que a pessoa, indistintamente, não seja só um ente social, mas que seja também capaz de viver, difundir e contribuir para o desenvolvimento da cidadania plena, esse caminho é, portanto, a preparação das novas gerações para a vida em sociedade plenamente democrática, justa e conhecedora da sua formação histórica, e, consequentemente transformadora, para que, de fato, sejamos gigantes pela própria natureza humana, rica em sabedoria.

A Bienal Afro-Brasileira vem de encontro às políticas públicas que visam o combate à discriminação racial, à igualdade de oportunidades e às reparações.

“A história é um processo, prossegue, e todos nós, conscientes ou inconscientemente, por atos ou omissões, participamos dela”.

OBJETIVOS

- Dar visibilidade às produções independentes, cujos conteúdos editoriais valorizem a História da África e a Cultura Afro-Brasileira, aproximando-os do mercado editorial e/ou auxiliando-os na criação de Cooperativa Editorial para concretizar as suas produções literárias.

- Oferecer essas produções aos Educadores de todos os níveis, cada um ao seu turno, para suprir a ausência de material didático para ser difundido nas salas de aula.

- Auxiliar as instituições de ensino na construção da identidade étnica dos alunos, pais, funcionários e comunidade.

- Fazer a discussão e tornar visível a temática racial para o conjunto da sociedade, através das manifestações culturais resultantes da trajetória de resistência: capoeira, samba, tambor de criola, ciranda, música, congada, reisado, boi-bumbá, etc.; além dos instrumentos musicais: atabaque, agogô, caxixi, cabaça, chocalho, etc.; exibição de vídeos e filmes; culinária de origem africana de todas as regiões do Brasil; moda; beleza; exposições artísticas; exposições fotográficas; artesanato; religiosidade de matriz africana e outras intervenções culturais relacionadas ao tema do evento.

- Introduzir a comparação do sistema brasileiro de inclusão racial e social, no contexto de uma economia transacional , com outros países desenvolvidos, emergentes e subdesenvolvidos, demonstrando o impacto de diferentes ambientes culturais, político-econômicos e normativos sobre a natureza da diversidade.

Serviço

O quê?
Lançamento da Bienal Afro-Brasileira do Livro - Educar para a Diversidade
Quando?
07 de fevereiro de 20009 (sábado), a parti das 10h.
Onde?
Câmara Municipal de Salvador – Pça. Tomé de Souza - Salvador/Ba.
Quanto?
GRATUITO

PROGRAMAÇÃO:

Manhã:
-10h, Abertura

Mesas Temáticas
- Invisibilidade do Negro na Literatura Afro-brasileira
- Impacto da lei 10.639 no combate as desigualdades
- Lançamento do edital para seleção publica de material didático em Historia e Cultura Africana e Afro-brasileira e Educação das Relações Étnico Raciais para professores e alunos da rede estadual de educação

Almoço

Tarde:
- Apresentação do Conselho Consultivo da Bienal Afro-BrasileirA do Livro
-Visitação Publica ao pôr-do-sol no Forte São Marcelo
-Show intimista com artistas locais

Noite:
- Noite da Beleza Negra no Ilê Aiyê

Mais informações:
Samuel Azevedo
(71) 87090312 - aseydou@hotmail.com

Hamilton Oliveira (Dj Branco) – Assessor de Comunicação
(71) 9151-0631 – cmahiphop@hotmail.com

Fontes:
artigo escrito por Hamilton Oliveira,
http://www.portalcapoeira.com/capoeira/106/1833
http://ricardoriso.blogspot.com/2009/02/bienal-afro-brasileira-do-livro.html
Pintura =
http://revistaraiz.uol.com.br

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

Dimas Carvalho (O Manuscrito)


Nota: Recebi hoje do escritor Nilto Maciel, o livro Contistas do Ceará: D'A Quinzena ao Caos Portátil. Já havia lido outras obras deste escritor, tanto na área de ficção como em não ficção, como podem atestar pelas postagens colocadas neste blog. A qualidade tanto material do livro, como de seu conteúdo, como a maioria dos livros de Nilto que tive em mãos, me impressionaram muito pela sua excelência. E, neste ano que se comemora o bicentenário de Edgar Allan Poe, folheando este livro meus olhos pousaram sobre um conto: O Manuscrito, de Dimas Caravalho, o qual me aguçou a curiosidade. Devorando-o, transcrevo-o a seguir tal qual está no livro. O pouco que já li de seus contos, me impulsiona a coloca-lo entre outros do mesmo autor em minha estante das obras favoritas.
José Feldman
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Epaminondas Pitágoras da Cunha trabalhava numa livraria decrépita, um prédio velho de dois andares, situado numa ruazinha decadente do centro da cidade. Era o único empregado, além de dono, seu Eleutério, muito idoso, surdo, reumático, quase cego. De modo que Epaminondas se via quase que como proprietário absoluto daqueles milhares de livros velhos e empoeirados, perfilados em estantes antigas, e aos quais praticamente ninguém procurava. Porque os clientes, como era de se esperar de tal estabelecimento, eram raros, e também eles antigos, decrépitos e decadentes.

Os dias se passavam numa monotonia de rio amazônico… Epaminondas, entediado, dava grandes bocejos enquanto folheava páginas esquecidas. Seu Eleutério cochilava na espreguiçadeira, por trás do balcão, o jornal caído entre as pernas, a boca aberta, babando.

Além dos dois andares, o prédio possuía um pequeno sótão, onde Epaminondas subia, quando estava mais disposto, para fazer a limpeza. Numa dessas vezes, notou que, num canto, havia uma pilha de livros, coisa que nunca antes observara. Aproximou-se e começou a verificar os títulos, manuseando com todo o cuidado as folhas amareladas. A poeira fazia com que espirasse. Alguns livros estavam roídos pelas traças, outros eram quase ilegíveis. Mas o que chamou mesmo a sua atenção foi um manuscrito encadernado, datado do século XVII, vazado em uma língua que lhe era completamente estranha. Um pequeno texto em Português, que parecia servir de intróito, dizia ser a língua o sumério, e que o felizardo capaz de traduzi-lo alcançaria a imortalidade, assim como se tornaria imensamente rico.

Epaminondas era um homem prático, nada sonhador, bem terra a terra. Riu com desdém daquelas promessas mirabolantes. O absurdo do que lia levava-o a crispar os lábios em um sorriso irônico. Porém, alguma coisa, que ele não saberia explicar o que era, puxava-o para o manuscrito, como o ímã faz com o ferro. Quando desceu do sótão, já estava determinado a aprender o sumério, custasse o que custasse.

A partir deste dia, a vida de Epaminondas mudou radicalmente. O que era fascinação transformou-se em mania, obsessão, delírio. Tornou-se estudioso. Consagrava todas as horas de lazer ao seu objetivo único. Esqueceu-se de viver, absorveu-se e foi absorvido pelos caracteres mágicos que o enfeitiçavam.

Foram anos a fio de dedicação, em casa e na livraria. Era com impaciência que atendia os fregueses cada vez mais raros. Comprou livros, pesquisou na internet, fez contatos com sábios do outro lado do mundo. Assinou revistas especializadas. À medida em que prosseguia naquela viagem sem volta, os indícios de que o manuscrito dizia a verdade se avolumavam. Citações milenares, pistas criptográficas, as peças do imenso quebra-cabeças iam se encaixando. Seus olhos adestrados passaram a ver, em coisas aparentemente desconexas, relações profundas e sutis. No final de nove anos de estudos, sentiu que estava a um passo de dar o grande salto, de penetrar enfim a grande porta que guardava o Mistério.

Foi por esse tempo que o Seu Eleutério morreu, exatamente ao meio-dia, sentado na espreguiçadeira, o jornal dobrado nos joelhos. Como o velho fosse viúvo, e não tivesse filhos ou parentes conhecidos, Epaminondas, herdeiro presuntivo, organizou o velório. A casa do velho ficava num bairro afastado, onde grandes árvores ladeavam as ruas largas, enchendo de sombras e silvos os espaços da noite. Pôs-se a velar, sozinho, o morto. Quase madrugada, a fome o levou a abandonar a câmara mortuária, onde as velas tristes eram a sua única companhia.

Encaminhou-se a uma churrascaria, onde fez um lanche breve, biscoitos e guaraná. Pediu ainda um sanduíche, para fazer o desjejum, quando o dia nascesse.

Ao voltar para casa, o susto foi enorme. Rodeando o caixão, quatro de cada lado, oito anciãos, vestidos de preto, murmuravam palavras estranhas em uma língua extinta. E mais ainda aumentou seu espanto quando, trêmulo e suando frio, viu o antigo patrão erguer-se e, lenta e solenemente, pronunciar, com uma voz alta e cheia de vitalidade:

— Caríssimo Epaminondas, é nossa obrigação agradecermos; o Segredo do Manuscrito é nosso, meu e dos meus oito companheiros, há muitos milênios. Realmente, ele nos dá a imortalidade e nos cumula de incalculáveis riquezas. No entanto, tudo tem um preço. E o preço que o manuscrito exige é o sangue de uma pessoa que por nove anos completos se dedique à tarefa de decifrá-lo, vencendo todos os obstáculos e tendo chegado às raias de desvendá-lo. De cem em cem anos repetimos este ritual, e tantas vezes já o fizemos que perdi a conta.

Então Epaminondas Pitágoras da Cunha sentiu que garras aduncas rasgavam-lhe as vestes e a pele, e enquanto a escuridão se apossava dos seus olhos, uma lâmina fria penetrou no seu ventre, atingindo-lhe o coração, rasgando-lhe as vísceras, perfurando-lhe o pulmão, ao som de litanias e imprecações sussurradas naquela língua arcaica e quase que completamente esquecida.

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D'A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza, CE: Imprece, 2008.

Glauber Rocha (Poemas Eskolhidos)



Kapital Song

o pássaro sagrado é velho feio
doente e fraco
o pássaro sagrado que vive
dentro de um ouro no alto da
árvore que entra nas nuvens
Com as penas da coroa deste pássaro
se faz a coroa da eternidade

Pássaro
Este passaro atrai Cocteau. Águia de
2 cabeças

Galos
cantar galos auroras moventes
galos de lorca galos de luz
galo pedrês galo gullar
galo de festa galo caribe
galos daqueles carajos dourados
galo espora galo esporra
galo terreiro na rinha feroz
galos galinhas na boca do dia
cantando brigam galos de guerra.

Roma, fevereiro de 1973
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Querido Tom

Dentro de mais um mês lhe faço uma carta porque tenho um projeto genial que precisamos fazer juntos.
No momento, depois de ter chorado algumas vezes ouvindo matita perê, aqui vai meu agradecimento

Saudade
nas horas tristes de exílio
me consolo com Antonio Carlos Jobim
Norte Sul Leste Oeste
eu pra você
você pra mim
ave do paraíso
Tom Jobim

os sonhos de Villa Lobos
deságuam do piano
nas veredas do violão
Antão Carlos toca e canta
mata a morte
viva paixão
Antonio Carlos Jobim
meu companheiro de sertão

nas horas tristes de exílio
me consolo com Tom Jobim
Norte Sul Leste Oeste
eu pra você
você pra mim
ave do paraíso
Tom Jobim

o sopro de Vinicius a voz de João
desintegram dissonantes velhas estações
renascem da floresta ao litoral
gemidos pios assovios sons notas cantos
da bossa cada sempre cada vez mais nova
da marcha da valsa do samba da roda
do frevo do choro do coco do baião
do romanceiro do maracatu
do cantochão
das sinfonias das terras do sem fim
do silêncio eterno dos espaços infinitos
do verso
da prosa
do amor
da flor
de Nara
de Norma
de Lara
d'eu pra você
de você para mim
Sabiá do Brasil
Antonio Carlos
Tom Jobim.

Glauburu*

(PS - o Eu pra você/Você pra mim é roubado de Oswald de Andrade mas na natureza nada se perde, nada se cria, tudo se transforma na prática eterna do materialismo histórico e dialético). Roma, agosto de 1973

*apelido do Glauber.
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Desejo

Queria você
Profundamentaberta
Num beijapaixonado
Sem memória
E futuro

Queria
O prazer desintegrado
No infinitamor
De nossos corpos
Desconhecidos

Queria um rio negro
Outro branco
Contanto a Vytoria
De uma tragycomedia morta

Queria o maramoroso
De tua pele viva
E a poesia da madrugada

Los Angeles, março 1976
G G G G G G
Fonte:

Glauber Rocha (1939 - 1981)


Glauber de Andrade Rocha (Vitória da Conquista, BA, 14 de março de 1939 — Rio de Janeiro, RJ, 22 de agosto de 1981)

Filho de Adamastor Bráulio Silva Rocha e de Lúcia Mendes de Andrade Rocha, Glauber Rocha nasceu na cidade de Vitória da Conquista, hoje um dos centros regionais mais importante na Bahia.

Foi criado na religião da mãe, que era convertida ao presbiterianismo por ação de missionários americanos da Missão Brasil Central.

Alfabetizado pela mãe, estudou no Colégio do Padre Palmeira - instituição transplantada pelo padre Luís Soares Palmeira de Caetité (então o principal núcleo cultural do interior do Estado).

Em 1947 mudou-se com a família para Salvador, onde seguiu os estudos no Colégio 2 de Julho, dirigido pela Missão Presbiteriana, ainda hoje uma das principais escolas da cidade.

Ali, escrevendo e atuando numa peça, seu talento e vocação foram revelados para as artes performativas. Participou em programas de rádio, grupos de teatro e cinema amadores, e até do movimento estudantil, curiosamente ligado ao Integralismo.

Começou a realizar filmagens (seu filme Pátio, de 1959, é o primeiro curta-metragem da Bahia) , ao mesmo tempo em que ingressou na Faculdade de Direito da Bahia (hoje da Universidade Federal da Bahia, entre 1959 a 1961), que logo abandonou para iniciar uma breve carreira jornalística, em que o foco era sempre sua paixão pelo cinema. Da faculdade foi o seu namoro e casamento com uma colega, Helena Ignez.

Sempre controvertido, escreveu e pensou cinema. Queria uma arte engajada ao pensamento e pregava uma nova estética, uma revisão crítica da realidade. Era visto pela ditadura militar que se instalou no país, em 1964, como um elemento subversivo.

No livro 1968 - O ano que não terminou, Zuenir Ventura registra como foi a primeira vez que Glauber fez uso da maconha, decepcionando a todos - bem como o fato de, segundo Glauber, esta droga ter seu consumo introduzido na juventude como parte dos trabalhos da CIA (Agência Americana de Inteligência) no Brasil.

Em 1971, com a radicalização do regime, Glauber partiu para o exílio, de onde nunca retornou totalmente. Em 1977, viveu seu maior trauma: a morte da irmã, a atriz Anecy Rocha, que, aos 34 anos, caiu em um fosso de elevador. Antes, outra irmã dele morreu, aos 11 anos, de leucemia.

Glauber faleceu vítima de septicemia, ou como foi declarado no atestado de óbito, de choque bacteriano, provocado por broncopneumonia que o atacava há mais de um mês, na Clínica Bambina, no Rio de Janeiro, depois de ter sido transferido de um hospital de Lisboa, capital de Portugal, onde permaneceu 18 dias internado. Residia há meses em Sintra, cidade de veraneio portuguesa, e se preparava para fazer um filme, quando começou a passar mal.

O Cineasta

Antes de estrear na realização de uma longa metragem (Barravento, 1962), Glauber Rocha realizou vários curtas-metragens, ao mesmo tempo que se dedicava ao cineclubismo e fundava uma produtora cinematográfica.

Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), Terra em Transe (1967) e O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro (1969) são três filmes paradigmáticos, nos quais uma crítica social feroz se alia a uma forma de filmar que pretendia cortar radicalmente com o estilo importado dos Estados Unidos da América. Essa pretensão era compartilhada pelos outros cineastas do Cinema Novo, corrente artística liderada inegavelmente por Rocha.

Glauber Rocha foi um cineasta controvertido e incompreendido no seu tempo, além de ter sido patrulhado tanto pela direita como pela esquerda brasileira. Ele tinha uma visão apocalíptica de um mundo em constante decadência e toda a sua obra denotava esse seu temor. Para o poeta Ferreira Gullar, "Glauber se consumiu em seu próprio fogo".

Com Barravento ele foi premiado no Festival Internacional de Cinema da Tchecoslováquia em 1963. Um ano depois, com 'Deus e o diabo na terra do sol, ele conquistou o Grande Prêmio no Festival de Cinema Livre da Itália e o Prêmio da Crítica no Festival Internacional de Cinema de Acapulco.

Foi com Terra em Transe que tornou-se reconhecido, conquistando o Prêmio da Crítica do Festival de Cannes, o Prêmio Luis Buñuel na Espanha e o Golfinho de Ouro de melhor filme do ano, no Rio de Janeiro. Outro filme premiado de Glauber foi O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro, prêmio de melhor direção no Festival de Cannes e, outra vez, o Prêmio Luiz Buñuel na Espanha.

O Poeta

Polemista, espírito arrebatado. Pouca gente sabe que deixou também poemas de sua lavra fértil e vertiginosa, com a fluidez nervosa com que também movia a câmera, no turbilhão agitado de suas idéias. Os poemas surgiram oportunamente com o título sugestivo de Poemas Eskolhidos De Glauber Rocha, numa edição da Alhambra (1989) organizada por Pedro Maciel, em Brasília.

Fontes:
http://www.antoniomiranda.com.br
http://pt.wikipedia.org

Teatro de Ontem e de Sempre

Da esquerda para a direita: Eugênio Kusnet (Capitão MacLean),
Milton Moraes (Capitão Fisby) e Fregoilente (Cel. Purdy III)

A Casa de Chá do Luar de Agosto

20/ 2/ 1956 - São Paulo/SP
Teatro Brasileiro de Comédia

Primeira encenação de Maurice Vaneau para o Teatro Brasileiro de Comédia, grande sucesso de crítica e público.

A peça de John Patrick é simples, bem construída e gira em torno de um tema exótico e momentoso: a ocupação militar do Japão, logo após a Guerra. Transformada em filme hollywoodiano de sucesso, presta-se a tratar com graça um tema que poderia ser espinhoso.

Dois militares norte-americanos são destacados pelo Pentágono para instalar uma escola na ilha de Tobiki mas, diante da resistência passiva dos nativos, acabam sendo levados a abrir uma casa de chá e a explorar a aguardente local. Furioso, o coronel Purdy manda destruir tudo. Mas, através de uma contra-ordem do Pentágono, a iniciativa é louvada como incentivo ao livre comércio e tanto a casa de chá quanto a destilaria são imediatamente recuperadas pelos tobikineses, terminando tudo em clima festivo.

O encenador Maurice Vaneau conduz sua numerosa equipe com garra e sensibilidade para a comédia, num rumo acertado, valorizando as interpretações e os momentos de humor do texto. Os cenários de Mauro Francini aliam-se à beleza dos figurinos de Clara Heteny, envolvendo um elenco em que ganham destaque: Ítalo Rossi, no papel de Sakini, o mestre-de-cerimônias; Mauro Mendonça, Ambrósio Fregolente, Milton Moraes, Eugênio Kusnet, Nathália Timberg, Erika Falken, Célia Biar, Oscar Felipe, além de numerosos figurantes.

Miroel Silveira, crítico nem sempre favorável ao TBC, comenta: "A Casa de Chá do Luar de Agosto se inscreve entre as melhores encenações do TBC, em todos os tempos, ao nível de suas mais perfeitas realizações. (...) A força do espetáculo, aclamado diariamente desde sua primeira apresentação, reside apenas no texto e na maneira rigorosa pela qual é executada a vontade da direção. Uma peça de conjunto, um espetáculo inteiramente de equipe, como deve ser e é o teatro realmente bom".1

Notas
1. SILVEIRA, Miroel. "A revelação de Vaneau", In A outra crítica. São Paulo. Editora Simbolo: 1976, p. 188.
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Carlos Cotrin (Charley), Paulo Monte (Happy), Roberto Duval (Biff),
Silvio Soldi (Bernard) e Norma de Andrade (Linda)
A Morte do Caixeiro Viajante
1951 - Rio de Janeiro/RJ
Teatro Glória

Uma obra-prima do realismo psicológico de Arthur Miller, A Morte do Caixeiro Viajante, de Arthur Miller, é encenada pela companhia de Jaime Costa, expoente de atores-empresários que constroem o espetáculo em torno do próprio carisma, apostando na espontaneidade de seu trabalho e em seu talento nato, desenvolvido no embate com as platéias.
A peça enfoca o personagem Willy Loman, esmagado por um drama de ordem social e outro de origem familiar, que o levam a uma trajetória descendente até o suicídio. O velho caixeiro viajante, criado num mundo em que a amizade se sobrepunha às regras econômicas, vê seus valores perderem lugar justamente no momento em que, desempregado, procura ajuda. No âmbito pessoal, a trama se adensa quando o filho o flagra com uma amante, gerando o bloqueio das relações entre ambos. Arthur Miller propõe uma crítica social ao mesmo tempo que constrói sua história sobre um conflito psicológico e moral. Trata-se, no fundo, de um conflito de Willy consigo mesmo, entre o que ele é e o que imagina ser.
O texto propõe dois planos de ação: aquele que mostra na vida presente de Willy Loman e aquele que dá conta de sua imaginação. O programa da peça esclarece que, por esse motivo, o autor sintetiza sua obra como "conversações íntimas em três atos". A interpretação de Jaime Costa merece entusiasmados elogios da crítica. Jota Efegê escreve:
"Várias vezes criticamos nesta coluna a displicência com que Jaime Costa nos apresentava muitos dos seus papéis, arrancando da primeira à última cena todas as falas no 'ponto'. E, agora, aqui estamos para louvar a correção com que ele fez a figura de Willy Loman pondo nela todo o seu vigor de intérprete, tornando-se, verdadeiramente, magistral".1
O sopro da modernidade que se vinha fazendo sentir em diversas montagens desde os primeiros anos da década de 1940 chegava até a platéia do velho teatro brasileiro, como prova uma advertência da companhia no programa do espetáculo. Sob o título de "Este Teatro Não Tem Claque" lê-se em texto assinado por Jaime Costa:
"Abolir a claque é moralizar o teatro. Só o aplauso espontâneo tem valor e conforta o artista. Se gostar do espetáculo, aplauda. Se não gostar, vaie ou silencie. Qualquer manifestação será por nós respeitosamente acatada".2
No programa, o crédito ao trabalho de Esther Leão está dividido entre direção e mise en scène, termo emprestado do francês e usado na época para definir as opções de encenação, ainda encaradas como novidade, contra o uso antigo da função do diretor, mais ligado ao ensaiador e ao coordenador do elenco. No entanto, Décio de Almeida Prado observa que: "Ester Leão praticamente não dirigiu a peça, no sentido de orientação psicológica dos atores: cada um está como sempre esteve, com as qualidades e vícios já conhecidos, com as inflexões e gestos de costume, Jaime Costa representando para o papel, para a peça, comovendo pela evidente sinceridade, os outros representando para o público".3
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Notas
1. EFEGÊ, Jota. 'A Morte do Caixeiro Viajante'. Jornal dos Sports, Rio de Janeiro, 8 ago. 1951.
2. COSTA, JAIME. Este Teatro Não Tem Claque. In: A MORTE DO CAIXEIRO VIAJANTE. Direção Esther Leão; texto Jaime Costa. Rio de Janeiro, 1948. 1 folder. Programa do espetáculo, apresentado no Teatro Glória em 1948.
3. PRADO, Décio de Almeida. Apresentação do teatro brasileiro moderno. São Paulo: Perspectiva, 2001, p. 170.
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Fonte:
http://www.itaucultural.org.br/

Teatro Épico



O teatro épico é produto do forte desenvolvimento teatral na Rússia, após a Revolução Russa de 1917, e na Alemanha, durante o período da República de Weimar, tendo como seus principais iniciadores o diretor russo Meyerhold e o diretor teatral alemão Erwin Piscator. Nesse tempo, as cenas épicas alemãs recebiam o nome de cena Piscator, dado o extensivo uso de cartazes e projeções de filmes nas peças dirigidas por Piscator. No entanto, o grande propagandista do teatro épico foi Bertolt Brecht.

Embora elementos da linguagem épica existam no teatro desde os seus primórdios, o Teatro Épico surge com o trabalho prático e teórico de Bertolt Brecht. Trata-se do resgate de um termo antigo para conceituar uma nova linguagem cênica. Essa é substancialmente organizada a partir de textos que abordam os conflitos sociais sob uma leitura marxista, encenados pelo método do Distanciamento.

Bertolt Brecht aprofunda seus primeiros escritos sobre o teatro épico no prefácio à montagem de Ascenção e Queda da Cidade de Mahagonny (Aufstieg und Fall der Stadt Mahagonny, em alemão). Mahagonny é uma sátira política em forma de ópera, com músicas de Kurt Weill e texto de Bertolt Brecht, cuja estréia ocorreu em Leipzig, em 9 de março de 1930, e depois em Berlim, em dezembro de 1931.

No prefácio a esta ópera, Brecht monta um quadro comparativo sobre as diferenças entre o teatro dramático e o teatro épico, destacando que eles não são antagônicos. Isso pode ser comprovado em algumas de suas peças posteriores, nas quais o dramático predomina, como em Os Fuzis da Senhora Carrar.

Ao longo do seu exílio, no período nazi-fascista da Alemanha e na II Guerra Mundial, ele aprofunda suas teses sobre o teatro épico, que, segundo Brecht, teria em Charles Chaplin um modelo de interpretação épica, com sua personagem Carlitos.

O próprio Brecht afirma que sempre existiu teatro épico, seja na intervenção do coro no teatro da Grécia Clássica, seja na Ópera Chinesa, e até mesmo no Dadaísmo, conforme tese bastante desenvolvida por Anatol Rosenfeld em seu Teatro Épico.

O teatro épico consiste em uma forma de composição teatral que polemiza com as unidades de ação, espaço e tempo e com as teorias de linearidade e uniformidade do drama, fundamentadas em determinada compreensão da Poética de Aristóteles elaborada na França renascentista. A catarse perde seu espaço na concepção teatral épica. Não cabe envolver o espectador em uma manta emocional de identidade com o personagem e fazê-lo sentir o drama como algo real, mas sim despertá-lo como um ser social. Segundo Brecht, a catarse torna o homem passivo em relação ao mundo e o ideal é transformá-lo em alguém capaz de enxergar que os valores que regem o mundo podem e devem ser modificados.

Efeito V

Um dos pressupostos do teatro épico é o efeito de distanciamento ou de estranhamento (Verfremdungseffekt ou V-Effekt, em alemão) por parte do espectador. O ator não busca identificação plena com a personagem. O cenário expõe toda sua estrutura técnica, deixando claro que aquilo é teatro, e não a realidade. O enredo se desenvolve sem um encadeamento linear cronológico entre as cenas, de modo a poder misturar presente e passado, procurando evitar o envolvimento do ator e do espectador na trama, sempre com o intuito de provocar a reflexão e de despertar uma visão crítica do que se passa, sem levar ao desfecho dramático e natural. "Estranhar tudo que é visto como natural", segundo Brecht.

Teatro épico e teatro dramático

Em 1930, no prefácio de Ascenção e Queda da Cidade de Mahagonny, Brecht desenvolve seu entendimento sobre o teatro épico, descrevendo 18 distinções entre a forma épica e a forma dramática. Ressalta, porém, que esse esquema não pretende impor contraposições absolutas, mas somente "deslocamentos de acentuações". Assim, Brecht destaca que, dentro de um processo de comunicação, pode-se dar preferência ao que se sugere por via do sentimento (dramático) ou ao que se persuade através da razão (épico).

Definindo o fundamental de sua poética, Brecht afirma que, no teatro, há que se renunciar a tudo que pretenda provocar uma tentativa de hipnose e que pretenda provocar êxtase e obnubilação.

Brecht defende que se deve conceder à música, como parte da cena, maior independência, propondo que ela comente o texto e tome posição dentro da obra, não apenas como forma de realce do texto, ilustração ou formadora de uma situação psicológica da cena.

O Teatro Épico no Brasil

A primeira montagem de um texto de Brecht no Brasil ocorre na Escola de Arte Dramática - EAD, com A Exceção e A Regra, em 1956. A primeira encenação profissional dá-se com A Alma Boa de Set-Suan, 1958, pelo Teatro Maria Della Costa - TMDC. Seguem-se Os Fuzis da Senhora Carrar, 1962, pelo Teatro de Arena, O Círculo de Giz Caucasiano, 1963, pelo Teatro Nacional de Comédia - TNC, e A Ópera dos Três Vinténs, 1964, pelo Teatro Ruth Escobar.

O Teatro Épico utiliza uma série de instrumentais diretamente ligados à técnica narrativa do espetáculo, onde os mais significativos são: a comunicação direta entre ator e público, a música como comentário da ação, a ruptura de tempo-espaço entre as cenas, a exposição do urdimento, das coxias e do aparato cenotécnico, o posicionamento do ator como um crítico das ações da personagem que interpreta, e como um agente da história. Tais ingredientes estão em algumas importantes montagens dos anos 60. Os espetáculos Arena Conta Zumbi e Arena Conta Tiradentes, por exemplo, inauguram o sistema coringa, desenvolvido por Augusto Boal no Teatro de Arena, onde as soluções brechtianas são aclimatadas e empregadas em indisfarçável chave brasileira. A existência de um narrador distanciado (o coringa) opõe-se à existência do protagonista (criado à maneira realista) e o coro (que pode ora pender para um lado, ora para outro). O emprego da música como comentário, a constante troca de papéis entre os atores e os saltos no desenvolvimento da trama são alguns dos recursos mais utilizados.

O Teatro Oficina realiza encenações históricas de textos de Brecht: Galileu Galilei, em 1968, alterna cenas efetivadas ao estilo brechtiano mais ortodoxo com a cena do carnaval em Veneza, onde recursos tropicalistas surgem com desenvoltura. Na Selva das Cidades, em 1969, texto do autor prévio à teorização épica é, entretanto, encenado como uma arqueologia da cultura contemporânea, perpassado na violência dos conflitos urbanos, criando inúmeras conexões com a contracultura e o pós-tropicalismo. José Celso Martinez Corrêa, diretor das duas encenações, declara ao jornal O Estado de S. Paulo, anos antes: "O teatro épico, tendo um caráter demonstrativo, usa muitos elementos visuais e não só literários, o que o torna mais comunicativo para o público moderno, acostumado ao cinema e à tevê. O teatro épico é gostoso como um filme" (CORREA, José Celso Martinez, 22 jan. 1966). Em visita ao Berliner Ensemble, companhia fundada por Brecht na Alemanha, José Celso descobre o humor da atriz Helena Weigel e da linguagem do grupo.

Nos anos 70, o conjunto das propostas brechtianas passa por um redimensionamento entre os grupos brasileiros. O Pessoal do Cabaré, que desenvolve uma linguagem própria, promove uma reimpostação do teatro épico e também do sistema coringa. Valoriza-se o conjunto do grupo como autor e a especificidade de cada integrante: os atores cantam, tocam e falam de si. Não é mais o teatro épico brechtiano - mas guarda, dessa descendência, a teatralidade como o prazer de ser e se mostrar como teatro. Essa consciência de si não pode mais ser ignorada: o teatro puramente dramático está, ao que parece, enterrado.

O Teatro do Ornitorrinco, nos anos 70 e 80 em São Paulo, sob a liderança de Cacá Rosset e Luiz Roberto Galízia, realiza um amplo trabalho sobre Brecht. Desde um recital de poemas e canções como Ornitorrinco Canta Brecht até a encenação de Mahagonny Songspiel, uma versão curta e bastante livre da ópera originalmente criada pelo dramaturgo e Kurt Weill. Ubu, Folias Physicas, Pataphysicas e Musicaes é um espetáculo inteiramente brechtiano, lido pelo ângulo cáustico do deboche, da irreverência e do humor negro.

Na década de 90, o dramaturgo Luís Alberto de Abreu desenvolve uma sólida atualização dos conceitos e técnicas brechtianas a partir de um projeto de investigação de uma nova Comédia Popular Brasileira. Junto ao diretor Ednaldo Freire e a Fraternal Companhia de Arte e Malas-Artes, encenam uma série de comédias escritas por Abreu, destinadas, originalmente, a um circuito de trabalhadores e sindicatos.

Também nos anos 90, a crise de dramaturgia, que na década anterior levara os encenadores a mergulhar nos clássicos, dá origem a uma proliferação de montagens realizadas a partir de contos e romances. Em A Mulher Carioca aos 22 Anos, realização exemplar nesse sentido, Aderbal Freire Filho encena na íntegra uma obra de João de Minas, fazendo as personagens assumirem as falas do narrador. A quebra da identificação entre o intérprete e seu papel e a assimilação, explícita ou não, da figura do narrador, permite um outro desdobramento do teatro épico que deixa de ser um mero recurso para se tornar opção de linguagem: a montagem de uma peça com muitos personagens por um elenco reduzido, o que obriga o diretor a lançar mão de signos-chaves para identificar os personagens. Não é mais o gestus brechtiano - mas recria a desvinculação ator/personagem.

Fontes:
http://www.itaucultural.org.br/
http://pt.wikipedia.org

Itaú Cultural (Eventos)



Na próxima quarta-feira, 4 de fevereiro, o Itaú Cultural inicia suas atividades em 2009 com a ampliação da Enciclopédia Itaú Cultural de Teatro. Lançada em 2004, a obra de referência virtual já apresenta dados sobre a produção teatral de São Paulo e do Rio de Janeiro; agora, entram no ar verbetes sobre artistas, companhias, movimentos e espetáculos de Belo Horizonte, de Porto Alegre e do Recife.

E, para celebrar a ocasião, os grupos Os Fofos Encenam e Giramundo apresentam, respectivamente, o processo de criação da peça Memória da Cana (inspirada na leitura de obras de Nelson Rodrigues e Gilberto Freyre) e o espetáculo de bonecos As Relações Naturais (montado com base em texto do dramaturgo gaúcho Qorpo Santo). A programação traz, ainda, debate com parte da equipe responsável pela enciclopédia, no qual será abordada a história do teatro mineiro, gaúcho e pernambucano.

quarta 4 de fevereiro

19h apresentação da enciclopédia e debate
com Antonio Cadengue, Clóvis Massa, Fátima Saadi, Fernando Mencarelli e Johana Albuquerque
Sala Vermelha (90 lugares)

20h espetáculo As Relações Naturais
com Giramundo
Não recomendado para menores de 18 anos - Sala Itaú Cultural (200 lugares)

quinta 5 a domingo 15 de fevereiro*

processo de criação do espetáculo Memória da Cana
com Os Fofos Encenam
Não recomendado para menores de 16 anos - Primeiro Mezanino (100 lugares)

* quintas e sextas 20h e sábados e domingos em dois horários 17h e 20h

entrada franca - ingresso distribuído com meia hora de antecedência

Itaú Cultural Avenida Paulista 149 - Paraíso - São Paulo SP [próximo à estação Brigadeiro do metrô]
informações 11 2168 1777 www.itaucultural.org.br
GGGGGGG
Fonte:
Convite enviado pela entidade

Edgar Allan Poe (O Retrato Oval)



O castelo em que o meu criado se tinha empenhado em entrar pela força, de preferência a deixar-me passar a noite ao relento, gravemente ferido como estava, era um desses edifícios com um misto de soturnidade e de grandeza que durante tanto tempo se ergueram nos Apeninos, não menos na realidade do que na imaginação da senhora Radcliffe. Tudo dava a entender que tinha sido abandonado recentemente. Instalamo-nos num dos compartimentos menores e menos suntuosamente mobiliados, situado num remoto torreão do edifício. A decoração era rica, porém estragada e vetusta. Das paredes pendiam colgaduras e diversos e multiformes troféus heráldicos, misturados com um desusado número de pinturas modernas, muito alegres, em molduras de ricos arabescos doirados. Por esses quadros que pendiam das paredes - não só nas suas superfícies principais como nos muitos recessos que a arquitetura bizarra tornara necessários -, por esses quadros, digo, senti despertar grande interesse, possivelmente por virtude do meu delírio incipiente; de modo que ordenei a Pedro que fechasse os maciços postigos do quarto, pois que já era noite; que acendesse os bicos de um alto candelabro que estava à cabeceira da minha cama e que corresse de par em par as cortinas franjadas de veludo preto que envolviam o leito. Quis que se fizesse tudo isto de modo a que me fosse possível, se não adormecesse, ter a alternativa de contemplar esses quadros e ler um pequeno volume que acháramos sobre a almofada e que os descrevia e criticava.

Por muito, muito tempo estive a ler, e solene e devotamente os contemplei. Rápidas e magníficas, as horas voavam, e a meia-noite chegou. A posição do candelabro desagradava-me, e estendendo a mão com dificuldade para não perturbar o meu criado que dormia, coloquei-o de modo a que a luz incidisse mais em cheio sobre o livro. Mas o movimento produziu um efeito completamente inesperado. A luz das numerosas velas (pois eram muitas) incidia agora num recanto do quarto que até então estivera mergulhado em profunda obscuridade por uma das colunas da cama. E assim foi que pude ver, vivamente iluminado, um retrato que passava despercebido. Era o retrato de uma jovem que começava a ser mulher. Olhei precipitadamente para a pintura e ato contínuo fechei os olhos. A principio, eu próprio ignorava por que o fizera. Mas enquanto as minhas pálpebras assim permaneceram fechadas, revi em espírito a razão por que as fechara. Foi um movimento impulsivo para ganhar tempo para pensar - para me certificar que a vista não me enganava -, para acalmar e dominar a minha fantasia e conseguir uma observação mais calma e objetiva. Em poucos momentos voltei a contemplar fixamente a pintura. Que agora via certo, não podia nem queria duvidar, pois que a primeira incidência da luz das velas sobre a tela parecera dissipar a sonolenta letargia que se apoderara dos meus sentidos, colocando-me de novo na vida desperta.

O retrato, disse-o já, era de uma jovem. Apenas se representavam a cabeça e os ombros, pintados à maneira daquilo que tecnicamente se designa por vinheta - muito no estilo das cabeças favoritas de Sully. Os braços, o peito, e inclusivamente as pontas dos cabelos radiosos, diluíam-se imperceptivelmente na vaga, mas profunda sombra que constituía o fundo. A moldura era oval, ricamente doirada e filigranada em arabescos. Como obra de arte, nada podia ser mais admirável que o retrato em si. Mas não pode ter sido nem a execução da obra nem a beleza imortal do rosto o que tão subitamente e com tal veemência me comoveu. Tão-pouco é possível que a minha fantasia, sacudida da sua meia sonolência, tenha tomado aquela cabeça pela de uma pessoa viva. Compreendi imediatamente que as particularidades do desenho, do vinhetado e da moldura devem ter dissipado por completo tal idéia - devem ter evitado inclusivamente qualquer distração momentânea. Meditando profundamente nestes pontos, permaneci, talvez uma hora, meio deitado, meio reclinado, de olhar fito no retrato. Por fim, satisfeito por ter encontrado o verdadeiro segredo do seu efeito, deitei-me de costas na cama. Tinha encontrado o feitiço do quadro na sua expressão de absoluta semelhança com a vida, a qual, a princípio, me espantou e finalmente me subverteu e intimidou. Com profundo e reverente temor, voltei a colocar o candelabro na sua posição anterior. Posta assim fora da vista a causa da minha profunda agitação, esquadrinhei ansiosamente o livro que tratava daqueles quadros e das suas respectivas histórias. Procurando o número que designava o retrato oval, pude ler as vagas e singulares palavras que se seguem:

«Era uma donzela de raríssima beleza e tão adorável quanto alegre. E maldita foi a hora em que viu, amou e casou com o pintor. Ele, apaixonado, estudioso, austero, tendo já na Arte a sua esposa. Ela, uma donzela de raríssima beleza e tão adorável quanto alegre, toda luz e sorrisos, e vivaz como uma jovem corça; amando e acarinhando a todas as coisas; apenas odiando a Arte que era a sua rival; temendo apenas a paleta e os pincéis e outros enfadonhos instrumentos que a privavam da presença do seu amado. Era, pois, coisa terrível para aquela senhora ouvir o pintor falar do seu desejo de retratar a sua jovem esposa. Mas ela era humilde e obediente e posou docilmente durante muitas semanas na sombria e alta câmara da torre, onde a luz apenas do alto incidia sobre a pálida tela. E o pintor apegou-se à sua obra que progredia hora após hora, dia após dia. E era um homem apaixonado, veemente e caprichoso que se perdia em divagações, de modo que não via que a luz que tão sinistramente se derramava naquela torre solitária, murchava a saúde e o ânimo da sua esposa, que se consumia aos olhos de todos menos aos dele. E ela continuava a sorrir, sorria sempre, sem um queixume, porque via que o pintor (que gozava de grande nomeada) tirava do seu trabalho um fervoroso e ardente prazer e se empenhava dia e noite em pintá-la, a ela que tanto o amava e que dia a dia mais desalentada e mais fraca ia ficando. E, verdade seja dita, aqueles que contemplaram o retrato falaram da sua semelhança com palavras ardentes, como de uma poderosa maravilha, - prova não só do talento do pintor como do seu profundo amor por aquela que tão maravilhosamente pintara.

Mas por fim, à medida que o trabalho se aproximava da sua conclusão, ninguém mais foi autorizado na torre, porque o pintor enlouquecera com o ardor do seu trabalho e raramente desviava os olhos da tela, mesmo para contemplar o rosto da esposa. E não via que as tintas que espalhava na tela eram tiradas das faces daquela que posava junto a ele. E quando haviam passado muitas semanas e pouco já restava por fazer, salvo uma pincelada na boca e um retoque nos olhos, o espírito da senhora vacilou como a chama de uma lanterna. Assentada a pincelada, e feito o retoque, por um momento o pintor ficou extasiado perante a obra que completara; mas de seguida, enquanto ainda a estava contemplando, começou a tremer e pôs-se muito pálido, e apavorado, gritando em voz alta 'Isto é na verdade a própria vida!', voltou-se de repente para contemplar a sua amada: - estava morta!

Fonte:
POE, Edgar Allan. Contos de Mistério, Suspense e Terror.

Aluisio de Azevedo (O Japão Crônica) final

Pintura de Isis Lucena
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5.o Capítulo

A ABERTURA

O leonino arreganho não produziu porém o efeito que esperava o leão, e as ovelhas acabaram por lhe fazer amargar um bem mau quarto de hora. Contavam sem dúvida os britânicos que as coisas se passariam como pouco antes na sua brutal e desumana expedição de Changai. — Quia nominor leo! mas os japoneses não eram chineses, não tremeram de medo com as ameaças da Soberana dos Mares, ao contrário, mal o Micado teve notícia da atrevida reclamação, expediu ostensivamente o seguinte manifesto aos trinta e seis mais importantes dos duzentos e sessenta e dois principais daimos do Império, no qual transparece toda a singela fortaleza de sua alma:

"Meus príncipes. As gentes desses navios de guerra ingleses; que por teima estão aí fundeados em Yokohama, pedem-nos contas pela morte de alguns de seus compatriotas assassinados em nosso país, e como satisfação querem não sei quais e quantas coisas, de que nem vale a pena tratar, porque nenhuma delas sem dúvida lhes será concedida. Mas, como a formal e desprezível recusa há de dar em resultado a guerra imediata, preparai-vos para ela com ânimo seguro. De minha própria mão vos envio Eu, Micado, este aviso para que estejais prontos no primeiro momento. A campanha será aberta por mim em pessoa."

O que há de mais notável neste ato é o modo pelo qual o Imperador já se dirige diretamente aos daimos, a quem chama "Meus Príncipes", pondo assim inteiramente de lado a autoridade shogunal. E não pára aí a inesperada ação do ex-fantasma de Kioto: calculando este que o astucioso Shogun lhe poderia destruir a obra tão bem começada, trata de isolá-lo dos ministros estrangeiros e de evitar que entre eles se tramem novas maquinações contra os seus planos; manda chamá-lo com a máxima urgência, dizendo-lhe que lhe precisa fazer em segredo de Estado importantíssimas revelações. Iyemochi cai no laço e vai a Kioto. Declara-lhe o Micado, em confidência íntima, achar-se o país em crise, e que pois a capital do Imperador e os seus arredores devem ser defendidos pelas forças permanentes do Estado confiadas ao Shogun; e que decidida como está a expulsão dos estrangeiros, haverá guerra provavelmente e daí negociações e ajustes a fazer pelo competente Poder Executivo debaixo das vistas do Chefe da Nação; o que só pode ter lugar no porto de Osaka por ser o mais próximo da Corte Imperial (trinta e poucas milhas de distância); e mais que, declarada a guerra, competirá ao Shogun assumir o comando geral das forças e entrar logo em ação.

E, depois de uma pausa, em que o silêncio foi absoluto, o Micado acrescentou, franzindo levemente as sobrancelhas:

— Será essa ocasião, meu jovem Shogun, a de melhor patenteardes a lealdade devida ao vosso Imperador e de pordes em relevo a vossa dedicação pela causa pública, usando daquela mesma energia e veemência com que repelistes à mão armada o miserável bando de maltrapilhos e famintos que vos foi importunar em Yedo!

Iyemochi fingiu não compreender e disse com um meio sorriso:

— Mas... tenho então de abandonar o governo do país? ... Parece-me que...

- Não vos dê isso cuidado, príncipe, atalhou o Imperador, far-vos-ei substituir durante a guerra por pessoa competente. Cumpra cada qual o seu dever observando as minhas ordens e o resto ficará por minha conta, que também saberei cumprir com o meu. Na ocasião solene de assumirdes o comando das armas, confiar-vos-ei, de mão a mão, a mesma sacrossanta espada que o imortal fundador da vossa dinastia recebeu diretamente das divinas mãos do meu antepassado Goyo Zei, quando tiveram que repelir, em condições talvez piores que as de hoje, a primeira invasão ousada pelos bárbaros do Ocidente nesta nossa terra tão bem fechada dentro das "Cem Leis" por Tokugawa Ieiás, e a qual os descendentes deste pretendem agora abrir à cobiça e à sensualidade dos nossos inimigos! (Iyemochi tossiu sem levantar os olhos.) Aprontai-vos para a guerra seguro da vitória, Tokugawa Iyemochi! Hão de chegar-vos à boca o peixe e o sakê do triunfo! Com a espada de Goyo Zei não podereis sair senão vencedor; além de que, é minha intenção ajudar-vos pelo meu lado, suplicando ao poderoso espírito de meus avós que lá das sublimes alturas vos proteja diretamente na patriótica expedição. Confiai nisso! e ficareis satisfeito comigo, suponho eu, pois creio não ter regateado convosco as minhas graças.

Iyemochi curvou-se até poder olhar pela frente os seus próprios joelhos e respondeu:

— Satisfeitíssimo, Imperial Senhor! Longe de haverdes regateado as vossas mercês, confundistes o meu cabal imerecimento com tanta prodigalidade. Vou daqui, sem perda de um instante, dar todas as providências para que as vossas sagradas ordens sejam cumpridas à risca... Parto imediatamente para Yedo e...

— Não! contrapôs o Imperador. Convém aos interesses do Estado que vos quedeis em Kioto; dar-vos-ei parte quando for oportuno o tomardes à vossa capital. Por enquanto vos deterei amigavelmente ao meu lado e, para que nada vos falte aqui, vou mandar pôr à vosas disposição os domésticos de que houverdes mister e, além das gueichas e menestréis mais escolhidos do meu kókio (harém), uma guarda de honra na altura da vossa condição.

O Shogun baixou a cabeça sem responder palavra. Estava prisioneiro. O coração naturalmente lhe estalava de cólera, mas na sua fisionomia não transluziu dela o menor vislumbre, porque não era debalde que os chins durante muitos séculos tinham ensinado ao Japonês o segredo da inalterável compostura do gesto, a fria ciência búdica de governar com a vontade a expressão do rosto no meio das mais fortes comoções morais, anestesiando os nervos condutores e impedindo-lhes levarem ao semblante nem a menos lúcida centelha do oculto incêndio, tapando a tempestade interior com uma indecifrável máscara de cadáver; triste e amarela ciência que é bem da Ásia, e que só poderia ter sido refinada a tal extremo por uma raça velha, impassível e hipócrita como a raça chinesa.

Foi com o mais fino e perfeito sorriso nos lábios e com a mais airosa reverência que o galante chefe dos Tokugawas se afastou do seu carcereiro, a recolher aos principescos aposentos de papel de seda que lhe haviam destinado no chiro imperial.

E aqui tem o leitor como conseguiu o Micado fechar na mão a influência do Shogun. Produziu logo o fato grande escândalo nos paços de Sua Majestade; ninguém atinava como poderia funcionar daí em diante a administração pública, pois que o Imperador não haveria de ser ao mesmo tempo poder deliberativo e poder executivo. Qual então seria agora o seu intermediário para com os daimos, se o chefe dos príncipes ficava preso em Kioto? Iria o Monarca chamar à alçada do Trono as Cortes Shogunais de Yedo? Mas isso, — que lhes valesse Amateras! — daria uma balbúrdia de todos os diabos! rosnavam entre si, perplexos e formigantes os cortesãos imperiais, que nada entendiam de administração e viam periclitar muito a sério o seu doce e defumado ócio.

Entretanto Komei, sem consultar nenhum dos seus Conselhos, nomeia o prestigioso Owari para substituir em Yedo o Shogun durante a guerra; encarrega Nabeschima, daimo com direito à sua inteira confiança, de defender militarmente a vasta bacia de Kuanto, onde se acha aquela capital, e entrega ao príncipe de Hizen, de quem já conhece a lealdade, a direção das forças marítimas que devem proteger as duas baías de Suruga e Sagami e as costas da península de Izo. E a todos os daimos, cujos principados confinem com o litoral, ordena que se recolham às competentes províncias e que se provenham para a guerra.

Quanto à indenização inglesa, nada, nem a mais ligeira referência nos seus atos oficiais; apenas, entre as instruções secretas dadas a Owari, no momento da partida deste, recomenda-lhe que, a todas as perguntas do Ministro inglês sobre o caso, vá respondendo sempre que o Shogun, em razão de interesse público e ordem direta do Imperador, se acha, por tempo indeterminado, ausente da sua capital, e que só ele pessoalmente pode dizer qualquer coisa sobre o assunto, pois foi o Shogunato quem, lá por conta própria; engendrou essa pantominice dos tratados, da qual, como contrária que é às leis do pais, não cogita o Chefe da Nação, nem está disposto a cogitar; e mais que, se os ingleses impugnassem tais razões com ofensas graves, então prendesse o Ministro e todos os mais que pudesse da mesma nacionalidade, facultando-lhe todavia os meios de comunicarem à sua esquadra que serão irrevogavelmente enforcados na praia à primeira manifestação hostil partida de bordo para a terra.

Nada disso porém chegou a acontecer. Terminado o prazo dos vinte dias, quando a Nação, já disposta para a guerra, contava que o Almirante Kuper resolvesse lançar mão das tais medidas coercivas com que o Ministro a ameaçara, eis que este, à vista da ausência do Shogun, oferece um novo prazo de igual tamanho, e depois ainda outro, que naturalmente não seria o último, se um fato decisivo ocorrido em Yokohama, onde havia então o único settlement existente no Império, não viesse de modo imprevisto torcer o rumo da questão.

É que, enquanto no litoral se armavam as fortalezas e no interior as eminências das montanhas, e enquanto os Tokugawas, tendo à frente os príncipes Aidzu, Ongasawa e Joren In, recorriam a todos os meios para libertar o seu chefe das mãos do Imperador, começava em Yokohama a formar-se o vácuo em volta dos estrangeiros que aí residiam, em número maior do que era de esperar da má vontade dos donos da terra. Sem causa apreciável, sem nenhuma justificativa, nem o menor comentário, organizava-se, pela calada e metodicamente, a emigração do elemento indígena, de uma à outra ponta do settlement.

Que significaria isso?... Que novidade haveria?... Ninguém o explicava, e, um atrás do outro, lá se iam esgueirando os empregados do comércio e os serventes domésticos naturais do país, alguns até abandonando o saldo a receber, sem nenhum deles declarar ao patrão porque deixava o serviço, nem para onde se punha. Qual seria o motivo de tão estranha greve? Os operários largavam a obra ao meio, perdendo o que estava feito; desmanchavam-se ajustes vantajosos; retiravam-se compromissos e palavras; fechavam-se casas comerciais e particulares depois de absolutamente esvaziadas; cambistas, negociantes, corretores, bufarinheiros, kurumaias, kulis, todos enfim que constituíam o elemento nacional no settlement, desertavam silenciosamente, sem mostras de ressentimento, nem tristeza, carregados de trouxas e com a filharada às costas. Afinal, um ou outro retardatário, preso por interesses de alta monta, liquidava às pressas, sem olhar prejuízo, as últimas transações e, já com as bagagens e a carroça ou o barco à espera, despedia-se para sempre.

E então?

Os europeus, a olharem de boca aberta uns para os outros, sem atinar nenhum com a razão daquele súbito abandono, viram-se reduzidos aos seus recursos pessoais, porque já não havia quem os servisse; muito gentleman teve que escovar as próprias botas, e muita Iady que pôr o avental de cozinheira; e começaram logo a imaginar em iminência toda a sorte de perigos, acabando, como era natural, por apoderar-se deles o pânico, que ao fim de alguns dias tomava já as proporções de intolerável angústia.

E no meio desse sobressalto terrível, dessa expectação de uma desgraça que ninguém explicava, ou cada qual explicava a seu modo para maior ansiedade e desespero de todos, no meio dessa incógnita calamidade que ia rebentar sem se saber donde, nem quando, começaram a chegar, como um sopro de morte, as primeiras notícias de que as forças japonesas já se mobilizavam ganhando os litorais; que o Imperador havia marcado o dia definitivo para a expulsa-o dos estrangeiros, e que o "Bando dos Roninos", como chamavam eles aos agitados nativistas, já em fúria descia a estrada do Tokaido na direção de Yokohama para invadir e saquear.

Os ingleses, que eram os mais de perto ligados ao instante desastre e eram também os mais afligidos pelo terror, foram agarrar-se ao seu Ministro pedindo-lhe garantias de vida e de propriedade. Houve reunião de diplomatas, conselhos de autoridades navais, de chefes de corporação e companhias; trocaram-se notas entre as diversas legações presentes; e afinal o Ministro inglês comunica oficialmente aos seus compatriotas que "As forças reunidas nas águas japonesas sob o comando em chefe do Almirante Kuper não eram suficientes para proteger a colônia, garantir a existência e os bens dos súditos de Sua Majestade Britânica, residente no settlement de Yokohama, e que por conseguinte convidava os mesmos a tomarem até o dia 26 desse mês (julho de 1863) as medidas que lhes parecessem necessárias para se porem ao abrigo da guerra marcada para aquela data."

E esta?'

Foi pior que uma bomba explosiva tão inopinado ultimatum da Chancelaria inglesa, caindo em cheio sobre a ávida e orgulhosa colônia, cujos membros, justamente nesses dois últimos anos, tinham em grande número feito vir da Europa as competentes famílias para junto de si. E semelhante confissão de fraqueza por parte dos enviados oficiais da mais forte Potência marítima que ali se achava, punha, nem só os ingleses, mas todos os estrangeiros de Yokohama, em estreitíssimo apuro: se a Grã-Bretanha não podia proteger os seus súditos quanto mais os outros Estados!

E para onde diabo queria o Ministro inglês que fugissem os seus compatriotas? Para onde, se de um lado estavam as forças japonesas, aos milhares e assanhadas de ódio; e do outro o Oceano, sem um só navio que os abrigasse, pois os existentes eram todos indispensáveis para o combate? E como os ingleses, os mais se encheram de pavor; holandeses, russos, alemães, norte-americanos e franceses viam-se já encurralados no estreito setilement, com suas famílias e seus haveres, dentro de um círculo de fogo, exterminados até o último por uma guerra feroz e bárbara, feita a ponta de azagaia e bombas incendiárias como usavam os japoneses.

A agonia foi terrível. A cada momento contavam com o ataque do bando assolador. Então, nem era de esperar menos de tão superiores raças, acudiu ao alto espírito de todos os representantes estrangeiros as idéias filantrópicas e os deveres morais da civilização. Foram lembradas, na ardente eloqüência dos momentos críticos, todas as conquistas humanitárias feitas até esse ponto do nosso século de luz pelo Internacionalismo liberal e triunfante! "Para que a guerra? — pergunta oficialmente o Coronel Neale, em nome de todos os diplomatas residentes em Yokohama, no seu longo Manifesto de 19 de julho de 1863 dirigido ao Governador de Kanagawa e daquela cidade. — Para que a guerra, se o fim da Europa no formoso Oriente é a confraternização e a paz? Em vez de lutarmos, melhor será que nos entendamos e que nos amemos. O que por si impõe antes de mais nada, como indeclinável necessidade do progresso humano, é que o nobre, o corajoso Povo Japonês, a tantos títulos obrigado moralmente a compreender as nossas boas intenções, resolva por uma vez abandonar essa idéia de má vontade e resistência contra os povos amigos, contra os seus irmãos do Ocidente, que o procuram para a consorciação universal, e nos abra os braços e nos receba como nós outros em nossos países fazemos, nem só com os japoneses, mas com todo e qualquer indivíduo proveniente seja de que nação for."

O manifesto em que vinha este tópico de requentada ternura produziu o seu efeito, graças aos Tokugawas que trabalhavam ativamente contra a guerra. Desceu logo de Yedo uma Embaixada presidida pelo transator Sakai Ukio, ministro do Shogun e amigo dos estrangeiros, com o qual chegaram os ingleses à fala e logo entraram a negociar as pazes, ficando inteiramente de parte a pendência da indenização.

Entre os nativistas porém o efeito do manifesto foi bem diverso. Um deles chegou a litografar um violento libelo que fez espalhar por Yokohama e no qual, entre muitas coisas, dizia:

"Com que então esse Colosso Europeu, esse roncador atrevido, até aqui tão arrogante nas suas indevidas reclamações, encolhe-se agora diante do perigo, porque, diz ele, receia lhe matem a mulher e os filhos?! Mas não foi o perigo que os foi buscar à casa; foram eles que vieram buscar o perigo à casa alheia! Que se agüentem! se lhes é duro o transe, mais dura é a pedra em que a sua audácia nos converteu o coração! Tremem pela mulher, os filhos; e nós? nós acaso não teremos também família, que vivia feliz e tranqüila ao nosso lado, e agora se vê, talvez para sempre, privada do seu chefe que, em vez de cuidar dela; anda à aventura das armas para defender a outra sua família maior, que é a pátria?! Que é feito das tais medidas coercivas do famoso Almirante Kuper? Pois então, apesar de todo esse espetaculoso aparato de força; apesar dessas numerosas máquinas de guerra contra as quais só temos para opor o nosso brio nacional; apesar da tão celebrada ciência e tão decantada coragem desses orgulhos donos dos mares alheios; apesar dessas dragonas de ouro e desses chapéus de pluma que fizeram rebentar de medo o Imperador da China nas profundezas empedradas de Pekin; pois, apesar de tudo isso, nós, os japoneses, esparsos e mal disciplinados, sem outra arte na guerra mais do que a luta corpo a corpo e sem outra força além da própria coragem e da convicção patriótica, por tal modo os aterramos que, à primeira notícia de um ataque eventual, declaram-se impotentes para defender o território cinicamente ocupado contra a vontade do dono, e escondem-se atrás das saias da família, a pedir pazes com fementidas palavras de ternura?! Para que então gritaram tão alto?! Por que nos ofenderam, se não tinham coração para resistir?! Não! Nós, como o nosso Imperador, não queremos a paz, nem queremos amizade com estrangeiros! Guardem eles para si a sua civilização e os seus progressos e com eles se fartem para longe de que lhos não pediu! Resistiremos até o fim! Se os degenerados Tokugawas conseguirem reter os Daimos, não conseguirão jamais reter o nosso ódio mortal e a enorme sede de vingança que nos devora; e nós, que já não temos outro chefe, além dos deuses e do Micado, havemos de tapar com terra a boca que nos insultou!"

Quando subiu ao conhecimento do Imperador a proposta de paz, fez ele logo enviar, como resposta, a todos os representantes diplomáticos estrangeiros as seguintes singelíssimas palavras:

"Meu Povo não quer relações com estrangeiros. A cada momento a gente do país está matando ou está com vontade de matar ingleses, e a Inglaterra quer que se pague. O meu Governo fez já quanto pôde a ver se as coisas se acomodavam, nada porém conseguiu, nem conseguirá, em razão do entranhado ódio do meu Povo pelos estrangeiros; ódio que aperta de dia para dia que nem o sol do mês de agosto. Assim resolvi fechar definitivamente os portos e convidar por bem os estrangeiros a que se retirem do país para evitar novas questões."

Enquanto o Micado procedia deste modo, tão franco, tão superior e tão singelo, o Ministro inglês, de mãos dadas ao da França, obtinham ambos corresponder-se com o Shogun e, aproveitando a falsa posição política em que se achava este perante o Imperador e perante o povo, de um prisioneiro e do outro desprezado, propunham-lhe secretamente uma aliança ofensiva e defensiva, comprometendo-se a auxiliá-lo com as forças navais de que dispunham, caso ele quisesse readquirir o alto poder que lhe havia escapado das mãos.

Este fato não precisa comentários; basta dizer que é um caso histórico corrente em todas as crônicas japonesas, mas que nenhum europeu ou norte-americano o narra de modo claro e positivo nos seus livros.

Compreende-se que aos estrangeiros não conviesse de maneira alguma o aniquilamento do Shogun, principalmente depois que o Imperador declarara não cogitar dos tratados lá entre eles feitos; compreende-se ainda que, conhecendo aqueles um pouco melhor agora o mecanismo da política japonesa e reconhecendo ter pisado em falso, quisessem a todo custo salvar de modo airoso a própria situação; mas o que se não compreende é que essa gente civilizada não tivesse um pouco de consciência ou de escrúpulo em urdir o mal, que estava a tramar contra a paz e os direitos desse pobre povo, a quem pediam pazes em nome da filantropia e do amor universal. Positivamente tinham os japoneses razão em chamar-lhes bárbaros! E note-se que, se por um lado os diplomatas estrangeiros se mostravam desumanos, por outro se revelavam inábeis, porque pretender destronar o Micado era pisar muito mais em falso ainda do que ter tomado o Shogun pelo Imperador do Japão como fizeram na primeira descaída. Seria mais fácil arrasar o Fuji Yama ou transladar para a Califórnia o Daibutsu, como diligenciaram os yankees na sua impertinente megalomania, do que pôr abaixo o divino espectro de Kioto do místico pedestal em que havia dois mil e duzentos anos imperava. Tentando semelhante coisa, o que conseguiriam os estrangeiros havia de ser, e com efeito foi, ensangüentar a presa que acossavam e agravar a desgraça dos Tokugawas, a quem aliás deviam gratidão por serem esses no país a única força ativa que os não desprezava, nem odiava. Verá depois o leitor em que espécie pagou o Inglês aos descendentes de Ieiás essa excepcional proteção, sem a qual todavia não teriam penetrado no sedutor arquipélago, senão depois de arrasá-lo com a sua civilização de grande alcance forjada na universidade de Krupp.

O Shogun, coitado! acolheu com as duas mãos a proposta que solicitamente lhe levavam os dois civilizadores ministros; mas, ao aconchegá-la reconfortado ao peito, picou-se logo num espinho que ia dentro dissimulado no embrulho, era o ultimatum da indenização.

— Ah! isso era sagrado! explicou o inglês; antes de mais nada, convinha satisfazer Sua Majestade Britânica a respeito daquelas belas cento e tantas mil libritas reclamadas. Sem isso não havia negócio feito!

E o que a isto se seguiu é inacreditável. O Shogun que, apesar de tudo, dispunha ainda do Tesouro público e era por si mesmo e sua família imensamente rico, entrou com o Ministro inglês no seguinte acordo. Pagava as cento e cinqüenta e cinco mil libras esterlinas, mais que fossem, porque a questão não era de dinheiro; pagava, com uma condição porém — o Ministro inglês havia de comprometer-se, sob palavra de honra, a guardar segredo, de modo que o fato não transpirasse dentro do Japão e que jamais, em nenhuma hipótese, fosse sabido pelo Micado, nem pelo povo.

O Inglês aceitou. Pudera! E a indenização foi efetivamente paga em segredo, às quatro horas da madrugada do dia 24 de agosto de 1863. O dinheiro foi levado à Legação da Inglaterra em carretas de mão e dentro de cunhetas abarrotadas de muito boa moeda de prata e ouro.

Vergonhas de parte a parte. Ah! mas o Japão heróico e brioso não tinha morrido com a família Tokugawa. Enquanto essas baixezas se mercadejavam no balcão da Chancelaria londrina com um indigno descendente de Ieiás, o destemido Mori, o príncipe de Nagato, em cujas veias corria o mesmo sangue de Mito, ao saber do ocorrido,. corre às fortalezas do litoral, denuncia o revoltante caso e toca com os seus três frágeis navios para as águas de Chimonoseki na entrada do Mar Interior, onde se ostentavam vasos de guerra de todos os Estados ocidentais com pretensões no Japão, e aí, cercado de seus samurais intransigentes e protegido pelas baterias de terra, lavrou o protesto da honra nacional, cuspindo balas sobre aqueles, do primeiro ao último, ao mesmo tempo, sem medir forças, nem escolher bandeiras. Bombardeou o navio inglês Euryalus, os franceses Kien-Chan, Tancrêde, os norte-americanos Pembroke e Wyoming, o alemão Semiramis, e o holandês Medusa, que ficou incendiado, a arder no meio daquelas águas profanadas, com a triunfante pira do patriotismo, ali acesa por um raio vingador para iluminar a eterna desafronta.

Agora, que vencessem os estrangeiros! só venceriam já esbofeteados!
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