segunda-feira, 6 de julho de 2009

Trova XXXVIII

Nestor Vítor (Poesias Avulsas)


MORTE PÓSTUMA

Et vraiment quand la mort viendra que reste-t-il?
P. Verlaine


D'esses nós vemos: lá se vão na vida,
Olhos vagos, sonâmbulos, calados;
O passo é a inconstância repetida,
E os sons que têm são como que emprestados.

— Dia de luz. – Respiração contida
Para encontrá-los despreocupados,
Aí vem a morte, estúpida e bandida,
Rangendo em seco os dentes descarnados.

Mas embalde ela chega, embalde os chama:
Ali não acha nem de longe aqueles
Grandes assombros que aonde vai derrama!

E abre espantada os cavos olhos tortos:
Vê que se eles têm os olhos vítreos, que eles...


Do livro: "Transfigurações" (1902)
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DUETO DE SOMBRAS

Ah! descuidosa Ofélia, é o irresistível que me está chamando,
Mas não te deixarei abandonada ...
A coroa de rosas desfolhando,
Não pela doida correnteza,
— Mãos esguias de cera enregelada —,
Irás, mas docemente, aos meus dois braços presa,
Teu olhar, a sorrir, no meu olhar fitando.

— Mas como é frio este caminho!
— Abriga-te em meu manto de loucura!
— Estás tão alto! Não alcanço o teu carinho...
Eu era mais feliz com a paz que há na planura ...

— Sobe! - Subirei, que te amo!
— Sobe, sofrendo embora! Leva para o alto a fé!
Lá em cima de uma árvore nova pende um ramo
(Palma? Loureiro? - áureo_e viril) que não se sabe para quem é.


Turris eburnea (1900)
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OS VERSOS

Versos ... são candelabros que se tocam
Tirando estrelas do cristal ferido ...
Óleo de que perfumes se deslocam .
Estranhos, num vapor vago e fluido...

Bergantins marchetados de ouro e prata
A balouçar num mar sonoro e ardente,
Que todo em nenúfares se desata
E em ilhas verdes, infinitamente ...

Versos ... largas cadeias de diamante,
Lançadas de um extremo a outro da Terra
Para pô-la risonha e soluçante,
— Áureas grilhetas de amorosa guerra ...

Flores do Desespero, doloridas,
Lírios feitos de sangue, transmudados,
Sob o ardor das insônias homicidas
Qual um punch a luz verde germinados ...

Versos! que alma sonora e tumultuosa
— Céu em que os astros chocam-se cantando —
Que alma grande, alma nobre, alma ansiosa
Não vos anda risonha procurando.

Dos Eleitos vós sois os mensageiros!
Canta, por eles, florescente rima,
Por eles mergulhais, filtros traiçoeiros,
As almas numa embriaguez opima.

Adernando-vos leves e graciosos
É que o Poeta arrebata e nos transporta
Para aqueles países fabulosos
Do Sonho, abrindo ao Infinito a porta.

Não pode alguém se libertar dos laços
Sob os quais o tenhais escravizado
Enquanto lhe ritmar, sonora, os passos
A grilheta de um verso terso e ousado.

Ah! toda esta ânsia que nos arde ao seio,
Todo este fogo que nos queima a boca,
Se revela das formas neste anseio,
Nesta sofreguidão absurda e louca.

Porém, se nós pudéssemos apenas
Abrir os olhos, dominar o Mundo,
E em atitudes nobres e serenas
Mostrar-lhe todo o nosso estranho fundo ...

Se em palavras se dissesse tudo,
Num ardor, num cantar vivo e direto,
Fora melhor que se ficasse mundo:
Era mais simples e era mais completo ...

Transfigurações (1902)
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Nestor Vítor (12 Abril 1868 -13 Outubro 1932)



(Paranaguá, 12 de abril de 1868 — Rio de Janeiro, 13 de outubro de 1932) . Poeta, contista, ensaísta, romancista, crítico e conferencista. Foi amigo e estudioso da obra de Cruz e Sousa. Autor de uma vasta obra, assim também um divulgador da literatura estrangeira, em particular da francesa. Nestor Vítor dos Santos.

Fez parte do grupo simbolista carioca e deu apoio ao grupo Festa. Foi o pioneiro, no Brasil, a dissertar sobre Ibsen, Emerson e Novalis, em quem, num artigo de 1899, percebeu a "genealogia" de Mallarmé. Apontou assim o neo-romantismo dos simbolistas, seu privilégio da imaginação, como apontou também seus limites em terras brasileiras. Tem um livro de poemas e outros de ficção e ensaios.

Obras
Paris, 1911
A Crítica de Ontem, 1919
Prosa e Poesia, 1963

Fontes:
Wikipedia
Antonio Miranda

Anita Philipovsky (Poesias)


NOITE FRIA EM ALTO MAR

Que vento tão forte!
Que vento tão frio!
Vem das geleiras
Esse sopro do Norte,
Esse vento gelado
Esse vento bravio.
Soturnos, plangentes
Os mastros rouquejam...
Parece um queixume
Esse rangido assim.
E queixa-se em vão
A madeira cativa
Ao ar impassível
Ao ar fugidio.
As velas flambelam
Ansiadas crepitam
Com a força incessante
De um tatalar a fio...
E lá bem em cima,
Que é que se passa?
O vento que se escoa
No cesto da gávea
Inventa e emite
Vozes de assobio.
Estalam as velas...
E marouços tontos
Vêm e se despedaçam
De encontro ao navio.

Vem das geleiras.
Vem de muito longe
Esse vento teimoso,
Esse vento bravio.

Que voz é essa agora,
Que anda chorando?
Que vai e que vem
Com o vento erradio?
Náufragos?... E os mortos?
São eles que choram:
São eles que gemem:
_ Que frio!...ai que frio...
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OS POENTES DA MINHA TERRA

A Stefan Kujavski


( Stefan, não sei onde te achas atualmente. Mas tenho a esperança de que possas ler estes versos que fiz pensando no teu fino espírito, que tanto aprecia tudo o que de belo nos oferece a Natureza! )

Os poentes da minha terra
São belos,
Tão belos,
Mas tão belos
Como ninguém viu fora daqui.
Uns são roxos . . . outros amarelos . . .
Outros de bronze com pedrinhas de rubi . . .
E os cor de opala, então ?
Lembram a palheta de algum pintor flamengo
As nuanças leves de um pôr-de-sol assim.
E os de seda cor-de-rosa ?
E os poentes de verão ?
Às vezes o poente de verão
É todinho borrado de carmim.

Há os de nuvens frágeis, esgarçadas.
Tocadas de luz desfalecente.
E a essas nuvens leves,
E luz desfalecente,
A gente olha e pensa . . .
Fica pensando que o ocidente sonha
Sonhos de renda, de gaze e nostalgia,
Sonha saudades para magoar a gente.

Patéticos . . . Uma rima de saudade,
Um verso do poema – nostalgia . . .
Tonalidades de exótica poesia,
De poesia apenas pressentida
Através do tempo e através do espaço. . .
Patéticos. Legendários. Quase irreais . . .
Estes poentes às vezes são assim.
Neles canta, e numa voz que ninguém ouve,
Um noturno . . .
Canta inaudível a alma de Chopin.

Sentimentais . . . muito sentimentais,
Estes poentes às vezes são assim.
E às vezes . . ah! são exaltados !
De cariz violento. Rubros ! De tragédia !
Esbraseados . . .
São chamas ! . . .
Vede então – o ocaso pegou fogo !
Há um grande incêndio onde termina o céu.
E logo mais:
Feitos de chumbo, azinhavre e de zarcão,
Com faíscas medrosas de safira.
E nesses dias,
Que colorido onde entra o Sol!

Que cores fortes !
E do contraste agressivo dessas tintas,
Furiosas e terríveis,
O Sol se esquiva: o Sol vai fugindo,
O Sol se escapa como quem delira.
Poentes extravagantes !
Poentes indescritíveis !
Até parece que o céu enloqueceu.

Agora vede:
Negro e de sangue . . . de tragédia, um dia,
E outro dia,
Um pôr-de-sol suave e dolente,
Que a alma da gente veste de cisma,
E que veste de cisma a alma da gente.

Poentes extravagantes !
Poentes indescritíveis !

Sobre a magia desses coloridos
Expressou-se arrebatado certa vez
Um espírito vibrante de estesia.
Era sem saber que o era – um poeta.
Mas falou:
“Nesta terra é assim:
Quando termina o dia,
U’a mão invisível, misteriosa,
Pinta onde acaba o céu,
E com as tintas que quer,
Pinta tudo o que há de emocionante,
Na essência emocionante da poesia.”

Assim expressou-se embevecida, um dia,
Uma alma vibrante de estesia.

E o poente de hoje, não vistes ?
Foi imponente. Foi egrégio.
O rei dos astros quando foi-se embora.
Deixou no céu o lindo manto seu .
Era de púrpura, que eu sei,
Com franjas de ouro, e bordados de ouro,
Mesmo um manto de rei.
Portanto esse presente foi um presente régio.
Afinal Ponta Grossa pode usar,
Como usa, e muitas vezes usa,
Na hora crepuscular,
O ouro e as púrpuras das galas reais.
Porque – quem não sabe da sua nobreza ? –
Ela é princesa.
É soberana.
E os seus domínios ?
É toda a terra dos Campos Gerais.
E por isso ela tem a regalia
De usar a púrpura das galas reais.

Estes ocasos . . .
Cada um tem sua beleza peculiar, eu acho.
Os outros . . . não sei que pensam, nem o que dirão.
Mas para mim o pôr-do-sol mais sugestivo
E emotivo,
É o pôr-do-sol lilás.
Quando faz fundo para uma paisagem campesina,
É de tão grande beleza,
E de tristeza tal,
Que a impressão que causa, não há quem a defina,

Na lomba da coxilha há um pinheiro isolado,
Forte e dorido na sua solidão.
Altivo. Sobranceiro. Algo de audaz . . .
Esse pinheiro sobranceiro,
O vento embate-o. Ele resiste.
Luta com o elemento hostil, ele sozinho,
Deslembrado na verde imensidão
Do campo sem fim.
Na lomba da coxilha há um pinheiro isolado . . .
E por detrás,
Muito atrás
Da curva da coxilha,
O céu a agonizar em cor lilás.
Só lilás ?
Não. Bem pertinho do horizonte,
Há uns fiapinhos de nuvens enxofradas,
Cloróticas. Agoniadas.
Parecem doentes essas nuvens fininhas.
Isto bem pertinho do horizonte.
O mais é só amaranto. É só lilás.
É tarde. É o fim de um dia que não teve sol.
A gente olha isso tudo, e fica olhando.
Fica cismando em tanta coisa . . .
A dor da ausência fica doendo mais.
Um fim de tarde assim,
Como faz sentir !
Como faz pensar !
Faz pensar nas almas incompreendidas,
Esmagadas de incerteza e de pesar,
Essa árvore sozinha, tão sozinha !
E o céu a agonizar clorótico e lilás.
Mais uma nota triste, nesse quadro:
Lá longe há um aterro.
E nesse aterro,
Um cavalo sacoleja um cincerro.
A gente olha ainda:
O dia se desfaz
Doente e lilás
O campo é triste !
O pinheiro é triste !
[ O cincerro é triste ! ]
Meu Deus onde vai parar essa tristeza ?
E essa beleza ?
Ouvi ! Andam soluços soluçando no ar . . .
A gente olha, e tem vontade de chorar.

Minha terra tem cada poente !
É um dom que igual, nenhuma terra tem.
Muitas vezes ao findar do dia,
Na horinha em que vai baixando o Sol
Entre nuvens leves como véu,
É só ver:
Aperta o coração da gente, uma saudade !
Uma saudade diferente . . . não sei como,
Não é saudade de nada desta vida.
É coisa incompreendida
Talvez seja a nostalgia indefinida

Que a gente tem do céu.
Poentes da minha terra !
Quando longe de vós, para vós é a minha saudade. . .
Poentes da minha terra, que fazeis pensar !
Poentes da minha terra, que fazeis sonhar !
Poentes da minha terra, que fazeis chorar !

(Ponta Grossa – Janeiro de 1936.)
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Fontes:
– SANTOS, Luisa Cristina dos. SANTOS, Nelson Rodrigues dos. Escritoras Brasileiras do Século XIX (Antologia de Textos Representativos). In BONNICI, Thomas (org.). Anais do XIII Seminário do CELLIP (Centro de Estudos Linguísticos e Literários dos Paraná). Campo Mourão: 21 a 23 outubro de 1999. Maringá: Universidade Estadual de Maringá, 2000. CD-Rom.
A Mulher na literatura.

Anita Philipovsky (2 Agosto 1886 – 30 Março 1967)

Anita Philipovsky, filha do austríaco Carlos Leopoldo Philipovsky e de Maria do Nascimento Branco Philipovsky, nasceu em Ponta Grossa (PR), a 2 de agosto de 1886.

A sede da fazenda da família era distante da cidade, por isso sua educação e a de seus irmãos se processou basicamente através de professores contratados, quase sempre estrangeiros, que passavam a residir na fazenda. Coube a eles, não só o ensino básico, como o de línguas estrangeiras (alemão e francês), e também foram os responsáveis por seus estudos de artes, particularmente, de música e pintura. A jovem Anita era muito apegada a seu pai, homem inteligente e de grande cultura, possuidor de nobre caráter e de elevados sentimentos. Foi seu incentivador maior nas letras, quer na prosa ou verso; assim como na pintura.

Anita Philipowski foi a primeira poetisa de Ponta Grossa, membro do Centro Cultural Euclides da Cunha. Publicou o livro Poentes da minha terra (1936)

Obra

Quer como contista, poetisa ou novelista, desenvolveu extraordinária atividade intelectual, notadamente no período de 1910 a 1930, colaborando assiduamente em numerosos jornais e revistas da época. Fez parte do grupo das primeiras animadoras das letras femininas do Paraná, ladeada por Mariana Coelho, Mercedes Seiler, Maria da Luz Seiler, Zaida Zardo, Annette Macedo e Myrian Catta Preta.

“Os poentes da minha terra” é seu poema mais divulgado, publicado pela primeira vez em Curitiba, em edição individual e integral, pela “Prata de Casa”, em 1936. Mais de duas décadas depois, em 1959, o mesmo texto saiu impresso, com pequenas modificações, em antologia realizada pelo Centro Paranaense Feminino de Cultura. O texto, tal como o apresentamos agora, obedece a essa edição, que deve, muito provavelmente, ter recebido aprovação definitiva da escritora.

Anita Philipovsky faleceu em 30 de março de 1967, em Ponta Grossa (PR).

Pode-se, com relativa facilidade, vislumbrar em sua produção suas mais prováveis leituras, o legado cultural herdado de Gonçalves Dias, Olavo Bilac, Baudelaire, Raimundo Correia, Rimbaud, Cruz e Sousa, Castro Alves, entre outros. Tal proliferação acaba revelando como a autora se posiciona em face da tradição literária.

Fontes:
- SANTOS, Luisa Cristina dos. SANTOS, Nelson Rodrigues dos. Escritoras Brasileiras do Século XIX (Antologia de Textos Representativos). In BONNICI, Thomas (org.). Anais do XIII Seminário do CELLIP (Centro de Estudos Linguísticos e Literários dos Paraná). Campo Mourão: 21 a 23 outubro de 1999. Maringá: Universidade Estadual de Maringá, 2000. CD-Rom.
- A Mulher na Literatura.

Lucie Lavall (Por quê?)


Por que vens perturbar a minha solidão
Com o prolongado olhar dos teus olhos ideais,
Tu que já me ensinaste (ah! terrível lição!)
Que o amor se já murchou não floresce jamais.

Habituada a iludir, passa por mim e então
Tua boca que amei abre em risos joviais.
Por quê? Se esta incerteza atroz ao coração
Me diz sempre: - Ele mente, ah! não o creias mais.

Por que é que tua voz, se acaso estou a escuta-la,
Torna-se, ela também, triste quando me fala?
Por quê? Se agora o amor com seus longos tormentos,

Já me dá a esperança alegre de outros dias
E não revive mais passadas alegrias,
Por que vir despertar antigos sofrimentos?

[tradução de Rodrigo Junior, publicado em O Progresso de 23 de fevereiro de 1915]
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Fonte:
- SANTOS, Luisa Cristina dos. SANTOS, Nelson Rodrigues dos. Escritoras Brasileiras do Século XIX (Antologia de Textos Representativos). In BONNICI, Thomas (org.). Anais do XIII Seminário do CELLIP (Centro de Estudos Linguísticos e Literários dos Paraná). Campo Mourão: 21 a 23 outubro de 1999. Maringá: Universidade Estadual de Maringá, 2000. CD-Rom.

Lucie Laval (19 Abril 1895 – 21 Janeiro 1914)

Lucie Laval nasceu em Dakar, Senegal, em 19 de abril de 1895, filha de Maurício Laval e Alix Laval. Nascida na África do Norte, quando seu pai ali estava no desempenho de suas funções de diplomata francês, Lucie voltou à França para receber instrução primária. Deixou o seu país em 1908, aos 13 anos de idade, vindo para o Brasil. Com seus pais, residiu algum tempo em Minas Gerais, para, em 1911, fixar residência em Curitiba, onde viveu três anos incompletos, no entanto repletos de fulgurantes lampejos de sua criação poética.

A menina inteligente, só aqui, aos 17 anos, encontrou sua alma de poetisa, e o livro “Dans l’ombre”, com os seus quarenta e nove poemas, foi escrito de um jato, de abril a outubro de 1913, em Curitiba, e publicado postumamente no Rio de Janeiro em 1924.

A sua descobridora foi a intelectual Georgina Mongruel que, acompanhada pela moça, compareceu a uma reunião do Centro de Letras do Paraná.

Morreu, no dia 21 de janeiro de 1914, em Curitiba, vítima de moléstia cardíaca, aos 19 anos, “pedindo ao médico, já às portas da morte, que a salvasse, porque ela queria viver, queria cantar todas as estações da vida e a sua página única era apenas uma primavera cheia de tempestades”.
Obra:

Em Curitiba, colaborou nos jornais e revistas da época (Gazeta do Povo, Diário da Tarde, Revista do Centro de Letras do Paraná, Álbum do Colégio Renascença, Senhorita). Em Ponta Grossa, seus inspirados poemas enriqueceram algumas páginas do Diário dos Campos, periódico que, tempos depois, critica o Centro de Letras do Paraná pelo injusto esquecimento da obra de Lucie Laval.

Lucie Laval, nos três anos em que viveu no Paraná, particularmente nos sete meses (abril a outubro de 1913) em que descobriu a sua alma de poetisa, conquistou para sempre um lugar entre os bons poetas paranaenses. Apesar da pálida luminosidade física, legou-nos o brilhantismo da poesia triste, porém consoladora. A palavra, artifício do existir ilimitado, foi (re)construída na busca de traçar na convulsão interior de sentimentos um caminho de reflexão e entendimento de usa própria essência.

Ressonâncias melancólicas, estrofes diáfanas de versos sem alegria, mas indisfarçadamente belos. Num abismo de contrastes de percepções e encantos a mergulhos solitários nos momentos – silêncio. A poesia de Lucie Laval despetala-se em instantes de sedutor lirismo físico a contatos profundos com o “eu”, desnudando-o na ausência do humano, em confissões apenas temerosas da majestade dos céus.

A solidão, a tristeza, a amargura na percepção do outro tornam-se, nas linhas poéticas de Lucie Laval, sentimentos ternos e fogem de sua acepção negativa ao revelarem o perfil de uma alma sofredora e de uma aparência frágil.

Em sua poética, a solidão justifica, não é justificada. Preferindo a ausência aos momentos de presença, o que perturba e “agita” o eu-lírico é aquilo que o faz perceber-se, sentir-se e envolver-se no outro. A solidão é exposição de sentimentos dolorosos, mas saudáveis. A presença vem causar a esse equilíbrio um sofrimento tumultuado, uma ilusão, uma percepção falsa.

A sensibilidade da emoção jovem aliada à capacidade de elaboração de poemas em atmosferas de melancólica ternura e esperançada tristeza tornam Lucie Laval poeta de sutil criatividade e incontestável harmonia sentimental.

Fontes:
– CENTRO Feminino de Cultura. Um século de poesia: poetisas do Paraná. Curitiba: Imprensa Oficial do Estado do Paraná, 1959.
– SANTOS, Luísa Cristina dos. “Lucie Laval”. Ponta Grossa: Diário da Manhã, 17 de junho de 2001.
Luisa Cristina dos Santos.

domingo, 5 de julho de 2009

Trova XXXVII

Trova sobre charge de Márcio Diemer

Lupe Cotrim Garaude (Cristais Poéticos)


SAUDADE

(a Guilherme de Almeida)

A saudade é o limite da presença,
estar em nós daquilo que é distante,
desejo de tocar que apenas pensa,
contorno doloroso do que era antes.

Saudade é um ser sozinho descontente
um amor contraído, não rendido,
um passado insistindo em ser presente
e a mágoa de perder no pertencido.

Saudade, irreversível tempo, espaço
da ausência, sensação em nós premente
de ser amor somente leve traço

num sonho vão de posse permanente.
Saudade, desterrada raiz, vida
que se prolonga e sabe que é perdida.
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Ó QUE IMENSO DISSIPAR

Ó que imenso dissipar
por assim gostar de tudo.

Com o meu ser estendido,
tenso ao apelo do mundo,
pulsando seu movimento
vou erguendo esta prisão.

Os pés retidos, imóveis,
pelos choques de atração
com a alma paralisada
contendo tanta largueza
e aspectos de vastidão.

Por que ter tantos sentidos,
o sentimento tão apto
e o coração vulnerável?

Por que o sentir sem repouso
num sentir que é um rapto,
exausto de comunhão?

Um pobreza qualquer,
pobreza em voz, em beleza,
em querer, em perceber,
uma pobreza qualquer
onde eu possa enriquecer.
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DE PEDRA

— Eu sou de pedra, me dizias,
a defender tua distância.

E esquecias o musgo,
essa tua epiderme de ternura,
e o teu corpo de carinhos,
num horizonte de água e terra,
a te envolver na vida.

— Eu sou de pedra — insistias.
— Pesado. Denso. Inalterável.
De estofo eterno.
Apenas estou, não sofro;
se algum gesto me ferir,
eu sou duro;
quebrarei o gesto sem sentir.

E esquecias
que és pouso de borboletas,
alicerce de flores,
abraço de raízes,
vulnerável em tudo
do que em ti pertence
e minha mão possui, acaricia.

— Eu sou de pedra.
E esquecias, esquecias.
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DESTINO MINERAL

Sou feita de uma carne perecível
futuro de outra carne, sem nenhuma
eternidade. A rocha é uma invencível
parte da terra; que ela me resuma

no seu mesmo destino mineral.
A solidez ausente que tortura
nossa matéria frágil, no final
se renderá: serei de pedra dura.

Nunca mais chorarei nessa passagem
de poesia. Com nítida certeza,
recorto nas montanhas minha imagem

mais que raiz, expressa na beleza.
Pela terra em que não me desfiguro,
hei de surgir um dia em cristal puro.
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AO AMOR

O que desejas de mim
nunca o dará o lampejo de um momento,
a conquista de um dia da montanha.

Meu corpo — para ti somente —
deve emergir a cada gesto 1ímpido
e profundo deve ser meu futuro
para reter-te e recriar-te permanente.

Sei que em mim te estenderás, não mais disperso,
em desejo e em procura de teu filho
e que todo movimento de meu ser
será o rumo de teu universo.

E por isso temo. No meu sentimento
sofro por ti. Receio
ser larga a hesitação de meu caminho,
ser um mito a conquista da montanha,
ser pobre e fugaz o meu espaço
na extensão que reduz teu infinito.
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DE MAR
III

A chuva cai, sem figura,
mantendo espaços vazios
na sua própria textura:
é uma água desfiada.

Diante dela o mar contido
É superfície compacta.
Nele tudo é preenchido,
indo pela mesma água.


Não tem vão ou intervalo
a carne crespa do mar,
mas paredes maleáveis,
bem lisas de penetrar.

A chuva que estende ao mar
os seus dedos insistentes
é uma presença molhada
de tanto se derramar:

o mar guarda uma secura
de quem sabe repetir
em si mesmo seus desígnios;

é seco porque perdura.

Embora suas franjas leves
se esparramem pela areia
toda maré lhe garante
a forma guardada e cheia.

No seu tempo passageiro
mesmo de raio ou trovão
a chuva é o que escorre,
não tem corpo ou duração.

Diante de sua água estreita,
só de perfil, vertical,
o mar estende a planície
tramada em fôrça de sal

e germina suas águas
em permanência e conquista:
sustenta sua espessura
e mantém entranhas vivas.
======================

DE AMOR
(entreato)

POSSE II

Ele — Seduzir o cotidiano pelo corpo.
Penetrá-lo deste brilho longo,
compacto,
onde o cansaço não é tédio
mas úmido intervalo.

A paisagem não sustenta
mais os olhos; estrelas
despojaram-se dos monólogos,
a flor voltou a si, não mais
dizer exausto, a primavera guardou
sua intimidade no discurso
das árvores, e o amor,
esgarçado de imagens,
procurou outro equilíbrio
além da frase, de um silêncio
a outro.

Nem sempre a paz levou-nos
a suas tácitas paragens:
a liberdade aspirou um ser estranho,
em que de novo nos olhássemos.

No corpo prosseguimos
onde o amor parava.
E inventamos. Sem palavras
tornamos nossa a carne da manhã,
a exaurir o tempo, sem fidelidade
alguma, no dia imprevisível,
além do nosso invento.
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MONÓLOGO IV

Ele — É o tempo meu receio, não o amor,
que este perdura. Por novos desígnios
refaz em outro aquilo que não for
mais seu momento: trama outro domínio.
Esta brisa entre nós, este sossego
agudo de desejo, esta presença
alerta, esta carne toda apego
certo se apagam: tempo algum sustenta
ou seduz uma solta intensidade.
É a hora que me assusta: o amanhã
do íntimo ser neutro, e a unidade
uma palavra a mais na posse vã.
O futuro só nasce de um invento:
nós dois, amor, nós somos este tempo.
========================
Fonte:
Antonio Miranda

Lupe Cotrim Garaude (16 Março 1933 — 18 Fevereiro 1970)


Maria José Lupe Cotrim Garaude Gianotti (Lupe é uma palavra formada pela junção das primeiras sílabas dos nomes de seus pais — Lourdes e Pedro) nasceu em São Paulo (SP), em 16 de março de 1933.

Filha de Maria de Lourdes Lins Cotrim e de Pedro Garaude, médico.

Vive por alguns anos em Araçatuba (SP), onde seu pai clinica, e ainda menina transfere-se com a mãe para o Rio de Janeiro, onde estuda no colégio Bennett.

Volta mais tarde a residir em São Paulo para estar mais próxima do pai e integra-se no meio literário paulista. Conclui os estudos secundários no Colégio Des Oiseaux. Forma-se nos cursos de Cultura Geral e de Biblioteconomia no Sedes Sapientiae e estuda línguas e canto lírico em São Paulo

Lança o primeiro livro de poemas, Monólogos do afeto, em 1956, e a seguir Raiz Comum (1959) e Entre a flor e o tempo (1961). Em 1961, faz um programa de TV, que a projeta publicamente.

Inicia em 1963 o curso de Filosofia na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, onde conhece José Arthur Gianotti, com que viria a se casar. Neste ano publica o quarto livro de poesias, o bestiário Cânticos da terra. Sua quinta coletânea de poemas, O poeta e o mundo, aparece em 1964.

Em 1965 viaja com seu marido, o filósofo José Arthur Giannotti, a Santiago do Chile, onde conhece Pablo Neruda. No ano seguinte forma-se em Filosofia. Em 1967 publica o sexto livro de poesia, Inventos, e passa a integrar o corpo de professores colaboradores da recém-fundada Escola de Comunicações Culturais da USP (hoje ECA), onde leciona Pensamento Filosófico e Estética.

Seu sétimo livro, Poemas ao outro, ainda inédito, recebe por unanimidade o prêmio Governador do Estado em outubro de 1969, ao qual concorriam vários dos mais relevantes poetas brasileiros da época.

Em fevereiro de 1970 escreve um de seus mais graves poemas, “Aceitação à velhice” (ou “A morte é hoje”).

Faleceu prematuramente, em Campos do Jordão (SP), em 18 de fevereiro de 1970.

Domingos Carvalho da Silva citava-a sempre por sua beleza e pela formalidade e clareza de seus poemas.

Teve dois filhos: Lupe Maria Ribeiro Lima e Marco Garaude Giannotti.

Bibliografia: Raiz Comum (1955); Monólogos do Afeto (1956); Entre a Flor e o Tempo (1961); Cântico da terra (1963); O poeta e o Mundo (1964); Inventos (1968); Poemas ao outro (1970); Encontro (1984), antologia pela Ed. Braziliense.

Fontes:
Instituto de Estudos Brasileiros da USP
Antonio Miranda

Jean Cocteau (5 Julho 1889 – 11 Outubro 1963)



Jean Maurice Eugène Clément Cocteau (Maisons-Lafitte, 5 de julho de 1889 — Milly-la-Forêt, 11 de outubro de 1963) foi um poeta, romancista, cineasta, designer, dramaturgo, ator e encenador de teatro francês. Em conjunto com outros Surrealistas da sua geração (Jean Anouilh e René Char, por exemplo), Cocteau conseguiu conjugar com maestria os novos e velhos códigos verbais, linguagem de encenação e tecnologias do modernismo para criar um paradoxo: um avant-garde clássico. O seu círculo de associados, amigos e amantes incluiu Jean Marais, Henri Bernstein, Édith Piaf e Raymond Radiguet.

As suas peças foram levadas aos palcos dos Grandes Teatros, nos Boulevards da época parisiense em que ele viveu e que ajudou a definir e criar. A sua abordagem versátil e nada convencional e a sua enorme produtividade trouxeram-lhe fama internacional.

Nascido numa pequena vila próximo a Paris, Jean Cocteau foi um dos mais talentosos artistas do século XX. Além de ser diretor de cinema, foi poeta, escritor, pintor, dramaturgo, cenógrafo e ator e escultor.

Atuou ativamente em diversos movimentos artísticos, nomeadamente o conhecido Groupe des Six (grupo dos seis) cujo núcleo era Georges Auric (1899–1983), Louis Durey (1888–1979), Arthur Honegger (1892–1955), Darius Milhaud (1892–1974), Francis Poulenc (1899–1963), Germaine Tailleferre (1892–1983). Além destes, outros também tomaram parte, como Erik Satie e Jean Wiéner.

Foi eleito membro da Academia Francesa em 1955.

Homossexual, não escamoteou sua orientação sexual. Manteve estreita amizade com Jean Marais, seu ator preferido. Dentre seus amigos destaca-se Edith Piaf, Jean Genet, etc.

Cocteau realizou sete filmes e colaborou enquanto argumentista, narrador em mais alguns. Todos ricos em simbolismos e imagens surreais. É considerado um dos mais importantes cineastas de todos os tempos.

É famoso pela frase: "Não sabendo que era impossível, foi lá e fez"
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Biografia

Cocteau nasceu em Maisons-Laffitte, uma pequena vila perto de Paris, filho de Georges Cocteau e de Eugénie Lecomte, uma família parisiense proeminente. O seu pai era advogado e pintor amador, que se suicidou quando Cocteau tinha nove anos. Cocteau começou a escrever aos dez anos e aos dezasseis já publicava suas primeiras poesias, um ano depois de abandonar a casa familiar. Apesar de se distinguir em virtualmente todos os campos literários e artísticos, Cocteau insistia que era fundamentalmente um poeta e que toda a sua obra era poesia. Em 1908, com dezanove anos, publicou o seu primeiro livro de poesia, La lampe d'Aladin. O seu segundo livro, Le prince frivole ("O princípe frívolo")), editado no ano seguinte, daria origem à alcunha que tinha nos meios Boémios e nos círculos artísticos que começou a frequentar e em que rapidamente ficou conhecido. Por esta altura conheceu os escritores Marcel Proust, André Gide, and Maurice Barrès. Edith Wharton descreveu-o como um homem "para quem todos os grandes versos eram um nascer-do-sol, todos os por-do-sol a fundação para a Cidade Celestial..."

Durante a Primeira Guerra Mundial, Cocteau prestou serviço na Cruz Vermelha como condutor de ambulâncias. Neste período conheceu o poeta Guillaume Apollinaire, os pintores Pablo Picasso e Amedeo Modigliani e numerosos outros escritores e artistas com quem mais tarde viria a colaborar. O empresário russo de ballet, Sergei Diaghilev, desafiou Cocteau a escrever um cenário para um novo bailado - "Surpreende-me", teria dito Diaghilev. O resultado foi Parade, que seria produzido por Diaghilev em 1917, com cenografia de Picasso e música de Erik Satie.

Expoente importante do Surrealismo, teve enorme influência na obra de outros artistas, incluindo o grupo de amigos de Montparnasse, que ficou conhecido Les Six. O termo "Surrealismo" foi criado por Guillaume Apollinaire no prólogo de Les mamelles de Tirésias , uma obra começada em 1903 e completada em 1917, menos de um anos antes da sua morte. "Se não fora Appolinaire fardado", escreveu Cocteau, "com a cabeça rapada, uma cicatriz na testa e uma ligadura `volta da cabeça, as mulheres ter-nos-iam arrancado os olhos com alfinetes".

Amizade de Raymond Radiguet

Em 1918 conheceu o poeta francês Raymond Radiguet. Colaboraram extensivamente, socializaram e viajaram de férias imensas vezes. Cocteau ficou isento de prestação de serviço militar graças a Radiguet. Como prova de admiração pela poesia do amigo, Cocteau divulgou a sua poesia no seu círculo artístico e promoveu a publicação pela editora Grasset de Le Diable au corps]] (um romance fortemente autobiográfico sobre uma relação adúltera entre uma mulher casada e um homem mais novo) que seria premiado com o prêmio literário "Noveau Monde". Alguns contemporâneos de Cocteau e, posteriormente vários biógrafos e comentadores, especularam sobre a componente romântica desta amizade. Cocteau estava ele próprio consciente desta percepção e esforçou-se sinceramente por desmentir qualquer caráter sexual na sua relação com Radiguet: "Monsieur, acabei de receber a sua carta e tenho que responder apesar do meu desgosto de não conseguir explicar o inexplicável. É possível que a minha amizade com o seu filho e a minha profunda admiração dos seus talentos (que começam a ser cada vez mais óbvios) são de uma intensidade fora do comum, e que visto de fora é difícil compreender até que ponto chegam os meus sentimentos. O seu futuro literário é de importância fundamental para mim: ele é um prodígio. Qualquer escândalo estragaria toda esta fresca inovação. Não pode acreditar por um segundo que eu não a tento evitar por todos os meios ao meu alcance".

Não existe acordo em relação à reação de Cocteau à morte súbita de Radiguet, em 1923. Alguns pensam que teria ficado devastado e se teria abandonado ao vício do ópio. Outros pensam que não o teria afetado indicando que não foi ao funeral do amigo (geralmente Cocteau não ia a funerais) e que imediatamente deixou Paris com Diaghilev para uma apresentação de Les Noces com os Ballets Russes em Monte Carlo. O próprio Cocteau caracterizaria mais tarde a sua reação como de "estupor e nojo". Ter-se viciado em ópio, comentou, foi pura coincidência e deveu-se a um encontro com Louis Laloy, o administrador da Ópera de Monte Carlo. O consumo de ópio e os seus esforços para deixar esta droga afetaram profundamente o seu estilo literário. O seu livro mais famoso, Os meninos diabólicos, foi escrito numa semana durante uma dolorosa tentativa de abandonar o ópio. Em Ópio, diário de uma desintoxicação, narra a experiência da sua recuperação do vício em 1929. O seu relato, que inclui vívidas ilustrações a tinta, alterna entre as suas experiências diárias de ressaca da droga e os seus comentários sobre a sociedade e os acontecimentos do mundo.

A voz humana

As experiências de Cocteau com a voz humana tiveram o seu apogeu na peça de teatro A voz humana. Nela, uma mulher só em palco, fala ao telefone com o seu (invisível e inaudível) amante perdido, que a deixou para casar com outra mulher. O telefone mostrou ser o perfeito adereço que permitiu a Cocteau explorar as suas ideias, sentimentos e "álgebra" da comunicação humana de realidades e sentimentos. A voz humana é enganadoramente simples - apenas uma atriz em palco durante uma hora, falando ao telefone. Na realidade, está repleto de referências dramáticas às experiências Vox Humana dos dadaístas do pós Primeira Guerra Mundial, a La Voix Humaine de Alphonse Lamartine (parte da sua obra Harmonies Poétiques et Religieuses) e aos efeitos produzidos pelo mestres organistas de finais do século XVI que tentaram sintetizar a voz humana, mas que nunca conseguiram mais que imitar um coro masculino à distância.

Cocteau reconheceu, na introdução ao manuscrito, que a peça era motivada, em parte, pela queixas de actrizes de que as suas obras privilegiavam o escritor/encenador, não permitindo que os atores explorassem os seus talentos. A voz humana foi escrita, na realidade, como uma extravagante homenagem a Madame Berthe Bovy. Antes disso havia escrito Orphée, que seria mais tarde um dos seus mais bem sucedidos filmes; depois escreveu La Machine Infernale, provavelmente a sua obra de arte melhor conseguida.

A crítica do seu tempo foi mista, mas a peça representa em resumo o estado de espírito de Cocteau e os seus sentimentos em relação aos seus atores por essa altura: por um lado queria mimá-los e agradar-lhes; por outro, saturado dos seus tiques de "diva", estava pronto para se vingar. É também verdade que nenhuma outra obra de Cocteau inspirou tantas outras criações: a ópera homônima de Francis Poulenc, a ópera buffa de Gian Carlo Menotti, Le Telephone, e a versão em filme de Roberto Rosselini, com Anna Magnani, L'Amore (segmento: Il Miracolo) de 1948. Esta obra tem vindo a atrair um conjunto de grandes actrizes, incluindo Simone Signoret, Ingrid Bergman e Liv Ullmann (em teatro) e Julia Migenes (em ópera).

Segundo Frederick Brown, Cocteau inspirou-se no dramaturgo Henri Bernstein: "Quando, em 1930, a Comédie-Française produziu a sua A voz humana [...] Cocteau desagrou tanto a direita como à esquerda literária, como que dizendo Estou tão à direita como Bernstein, no seu próprio lugar, mas é apenas uma ilusão de óptica: a vanguarda é esferóide e eu terminei mais à esquerda que qualquer outro".

Maturidade

Na década de 1930, Cocteau teve um surpreendente caso com a Princesa Natalie Paley, a linda filha de um Grão Duque da família Romanov, uma modelo, por vezes atriz, anteriormente casada com o costureiro Lucien Lelong. Natalie ficou grávida mas, com grande perturbação para Cocteau e desgosto para ela própria, abortou. As relações mais prolongadas de Cocteau foram com os atores franceses Jean Marais e Edouard Dermit, que Cocteau adoptou formalmente. Cocteau utilizou Marais como ator nos seus filmes L'Éternel Retour ("O Eterno Regresso") (1943), La Belle et la Bête ("A Bela e o Monstro") (1946), Ruy Blas (1947) e Orphée ("Orfeu") (1949).

Em 1940, Le Bel Indifférent, a peça de teatro que Cocteau escreveu para Édith Piaf, teve um tremendo sucesso. Trabalhou também com Pablo Picasso em diversos projetos e fez amizade com inúmeros artistas europeus. Lutou contra o seu vício de ópio por toda a sua vida adulta e foi abertamente gay, embora tenha tido breves e complexos romances com várias mulheres, para além de Paley. Publicou um considerável número de ensaios criticando a homofobia.

Os filmes de Cocteau, que na sua maioria foram escritos e realizados por ele mesmo, fora particularmente importantes para a introdução do Surrealismo no Cinema francês, e influenciaram até um certo grau, o futuro género Nouvelle Vague. Os seus filmes mais conhecidos são Les parents terribles (1948), La Belle et la Bête, (1946) e Orpheus (1949).

Cocteau morreu de enfarte do miocárdio na sua mansão de Milly-la-Foret, em 11 de Outubro de 1963, com a idade de 74 anos, apenas algumas horas depois de saber da morte da sua grande amiga Édith Piaf. Está sepultado na Capela de Saint Blaise des Simples em Milly-la-Foret, em Essone, na França. O epitáfio da sua pedra tumular indica: "Fico entre vós".

Prêmios e distinções

Em 1955, Cocteau foi eleito membro da Académie française e da Académie royale de Belgique. Foi agraciado com o grau de comandante da Legião de Honra (França), membro da Academia Mallarmé, da Academia alemã (Berlim) da Academia americana Mark Twain, presidente honorário do Festival de Cinema de Cannes e da Associação de Amizade França-Hungria, e presidente da Academia de Jazz e da Academia do Disco.

Obra literária
Poesia
La Lampe d'Aladin (1909)
Le Prince frivole (1910)
La Danse de Sophocle (1912)
Ode à Picasso - Le Cap de Bonne-Espérance (1919)
Escale. Poésies (1917-1920)
Vocabulaire (1922)
La Rose de François - Plain-Chant (1923)
Cri écrit (1925)
L'Ange Heurtebise (1926)
Opéra (1927)
Mythologie (1934)
Énigmes (1939)
Allégories (1941)
Léone (1945)
La Crucifixion (1946)
Poèmes (1948)
Le Chiffre sept - La Nappe du Catalan (em colaboração com Georges Hugnet) (1952)
Dentelles d'éternité - Appoggiatures (1953)
Clair-obscur (1954)
Paraprosodies (1958)
Cérémonial espagnol du Phénix - La Partie d'échecs (1961)
Le Requiem (1962)
Faire-Part (póstumo) (1968)

Romance
Le Potomak (1919, edição definitiva: 1924)
Le Grand écart - Thomas l'imposteur (1923)
Le Livre blanc (1928)
Les Enfants terribles (1929)
La Fin du Potomak (1940)

Teatro
Parade, ballet (música de Erik Satie, coreografia de Léonide Massine) (1917)
Les Mariés de la tour Eiffel (música de Georges Auric, Arthur Honegger, Darius Milhaud, Francis Poulenc e Germaine Tailleferre) (1921)
Antigone (1922)
Roméo et Juliette (1924)
La Voix humaine (1930)
La Machine infernale (1934)
L'École des veuves (1936)
Edipe-roi. Les Chevaliers de la Table ronde (1937)
Les Parents terribles (1938)
Les Monstres sacrés (1940)
La Machine à écrire (1941)
Renaud et Armide. L'Épouse injustement soupçonnée (1943)
L'Aigle à deux têtes (1944)
Le Jeune Homme et la Mort, ballet de Roland Petit (1946)
Théâtre I et II (1948)
Bacchus (1951)
Nouveau théâtre de poche (1960)
L'Impromptu du Palais-Royal (1962)
Le Gendarme incompris (póstumo, em colaboração com Raymond Radiguet) (1971)

Filmografia
Le Sang d'un Poète (Sangue de um Poeta) (1930)
L'Eternel Retour (1943)
La Belle et la Bête (A Bela e a Fera) (1946)
L'Aigle à Deux Têtes (A Águia de Duas Cabeças) (1947)
Les Parents Terribles (1948)
Les Enfants Terribles (1950) (não creditado)
Coriolan (1950)
Orphée (pt.: Orfeu)(1950)
La Villa Santo Sospir (A Vila Santo-Sospir) (1952) (documentário)
8x8: A Chess Sonata in 8 Movements (1957) Co-director, Experimental)
Le Testament d'Orphee (O Testamento de Orfeu) (1959)

Fonte:
Wikipedia

Isabel Cristina Cordeiro (A Importância do Ato de Ler)


Resumo

O ato de ler é um processo de compreender o mundo, por isso requer mais atenção por parte dos professores de língua portuguesa que, de certa forma, ainda privilegiam a gramática e a interpretação textual puramente literal e descontextualizada. Este trabalho tem por objetivo mostrar como ocorre o processo de leitura, apresentando algumas estratégias que podem ser utilizadas pelo leitor no ato de ler e discutir alguns fatores de relevância para que a leitura seja eficiente e, consequentemente, o leitor seja maduro.

1 – O ato de ler

O ato de ler é um processo de compreender o mundo. A leitura deve ser geradora de novas experiências para o indivíduo, já que facilita o surgimento da reflexão e da tomada de posição, como sugere SILVA ( 1991).

A leitura pressupõe recriação do significado e, através desta reflexão, o indivíduo toma sua posição perante o texto.

A leitura não se configura como um processo passivo (...) Por exigir descoberta e re-criação, a leitura coloca-se como produção e sempre supõe trabalho do sujeito-leitor (...), então o leitor, além de partilhar e re-criar referenciais de mundo, transforma-se num produtor de acontecimentos, em função do aguçamento da compreensão e de sua consciência crítica”. (SILVA, 1991: 25)

A leitura deve, então, ser funcional, pois o leitor constrói um sentido para o texto.

Como sugere SMITH (1989 – apud Fulgêncio & Liberato, 1992:13), “a leitura não é uma atividade meramente visual (...) é o resultado da interação entre o que o leitor já sabe e o que ele retira do texto”.

O leitor utiliza na leitura o que ele já sabe, o conhecimento prévio ou informação não-visual, adquirido ao longo de sua vida. A leitura é, portanto, o resultado da informação visual ( IV) e informação não-visual ( InV).

LER = IV + InV

É mediante a interação de diversos níveis de conhecimento ( lingüístico, textual e de mundo), que o leitor alcança um sentido para o texto. E porque o leitor utiliza diversos níveis de conhecimento que interagem entre si, a leitura é considerada um processo interativo.

O ato de ler pode ser considerado, então, um jogo que se processa entre autor/texto/leitor; através destes elementos é que se atribui um significado ao texto.

O texto, neste sentido, faz a mediação para a comunicação entre dois contextos: o do autor e o do leitor. Sendo o texto o ponto de partida para o processo da construção do significado, cabe a ele o papel de atuar sobre os esquemas cognitivos do leitor, ativando uma série de ações na mente deste.

Como afirma KLEIMAN (1989:28): “a leitura é uma atividade cognitiva, tem caráter multifacetado, multidimensionado sendo um processo que envolve percepção, processamento, memória, dedução, inferência”.

Num texto há muito mais de implícito, de modo que ao leitor cabe o papel de captar as intenções do autor. É exatamente neste ponto que as inferências suprem as lacunas de um texto tornando-o mais significativo e compreensível.

Por inferência compreende-se, então, “uma operação cognitiva que permite ao leitor construir novas proposições a partir de outras já dadas”. ( MARCUSCHI, 1984)

Veja um exemplo de exercício de inferência:

a) Leia o texto abaixo e descubra onde Karen está passando o Natal.

Querida mamãe:
Aqui é muito bonito. O clima está agradável e temos passeado muito.
Ontem visitei o Coliseu. Feliz Natal! Logo estarei com vocês.
Karen

Após a leitura sugere-se que os alunos (leitores) discutam entre si sobre as inferências de cada um. Em seguida chega-se à resposta adequada.

Onde Karen está? Uma única palavra é a pista deixada pelo autor: Coliseu.

Supõe-se que ela esteja na Itália, mais especificamente em Roma. Esta inferência será feita a partir do momento em que o leitor partilhar este conhecimento de mundo com o autor.

2 – Processamento de texto

Muitas teorias tentam explicar de que forma um leitor apreende informações de um texto escrito embora, basicamente, todas elas possam ser classificadas em três grupos: o modelo de processamento ascendente ( bottom-up ), o modelo descendente ( top-down ) e o modelo interacionista de leitura. ( CORTE, 1991:5)

No modelo ascendente, a ênfase se dá sobre o estímulo visual. O leitor, durante a leitura, aborda o texto com visão “bottom-up”, exclusivamente, em que somente o texto leva conhecimento e informação a ele, e este, por sua vez, não utiliza seu conhecimento prévio.

Tal leitor é incapaz de ler nas entrelinhas visto que é vagaroso, pouco fluente e tem dificuldade em sintetizar as principais idéias do texto.

Por outro lado, o modelo descendente “ top-down”, é aquele em que o leitor leva para o texto todo o conhecimento prévio de que dispõe. O modelo descendente enfatiza o papel do processo cognitivo que gera hipóteses de significado, baseado, primeiramente, na informação contextual.

Dessa forma, o leitor, quando está em processo de leitura, busca diretamente o significado através de estratégias de predição e inferência. É um leitor fluente e veloz, capaz de ler nas entrelinhas do texto e alcançar o significado deste.

Por fim, o modelo interacionista descreve a leitura como um processo em que o leitor utiliza ambos processamentos (top-down e bottom-up) no ato da leitura.

(...) o leitor usa e integra tanto informações gráficas como contextuais para extrair o significado do texto escrito”. ( CORTE, 1991: 6 ).

Sendo a leitura um processo interativo em que o leitor e autor interagem entre si, ambos com suas cargas de conhecimentos, parece que este último modelo é o mais utilizado pelos leitores maduros e eficientes, tendo em vista que tais leitores sabem monitorar sua leitura e são capazes de escolher o tipo de processamento adequado à solução de seus problemas.

3 – Sugestões para viabilizar a compreensão da leitura

a) Os professores devem ensinar leitura aos seus alunos, ou seja, ensiná-los estratégias de leitura que viabilizem a compreensão textual;

b) Os alunos devem buscar um aprimoramento de seus conhecimentos prévios, lendo e questionando;

c) Deve-se elaborar materiais de leitura que facilitem a aquisição de estratégias de leitura por parte dos alunos;

d) O leitor deve utilizar-se das pistas fornecidas pelo texto de forma adequada e satisfatória;

e) O leitor deve conhecer seu objetivo de leitura ( antes de fazê-la ) e saber aplicar adequadamente as técnicas de leitura para obter um resultado satisfatório.

São inúmeras as sugestões que cabem aqui para que não haja a tão famosa frase: “ os alunos não sabem ler”. Os alunos estão caminhando lentamente rumo à criticidade; estão deixando de ser passivos e neutros. Os professores lentamente estão alterando suas metodologias e práticas de ensino. Não há “culpado” neste processo, visto que ambas as partes têm suas deficiências e dificuldades. O importante é começar a construir um conceito novo diante do processo de leitura.
Ler não é decodificar e exige que haja interação entre leitor/texto/emissor, para que ocorra a compreensão por parte de quem lê. Uma vez que o conceito começa a ser questionado e, principalmente, transformado, não resta dúvida de que possa existir, um dia, 100% de alunos-leitores preparados, críticos e aptos a discutir, dialogar, debater, criticar e transformar a sociedade em que vivem.

Fonte:
BONNICI, Thomas (org.). Anais do XIII Seminário do CELLIP (Centro de Estudos Linguísticos e Literários dos Paraná). Campo Mourão: 21 a 23 outubro de 1999. Maringá: Universidade Estadual de Maringá, 2000. CD-Rom.

Dicionário do Folclore (Letra Q)


QUADRA. Espaço que as escolas-de-samba cariocas destinam para a realização dos ensaios de suas alas quando é cobrada uma pequena importância para fazer face às despesas com sua manutenção.

QUADRADO. Diz-se de quem não acompanha os costumes da época em que estamos vivendo.

QUADRÃO. Oitava de poesia popular, cantada, na qual os três primeiros versos rimam entre si, o quarto com o oitavo e o quinto, o sexto e o sétimo também entre si, usado pelos cantadores do Nordeste.

QUADRILHA. Dança palaciana francesa do século XIX e que se popularizou no Brasil depois que os mestres da orquestra Millet e Cavalier trouxeram-na para o Rio de Janeiro onde causaram muito sucesso. A quadrilha era executada em cinco partes, gritadas pelo marcador, bisadas, aprendidas até nos sertões brasileiros. Hoje é uma dança que desapareceu, menos nos festejos juninos quando, ao som de sanfonas, instrumentos de corda, de sopro e de percussão, ainda permanece no gosto popular. Da quadrilha apareceram, no Brasil, várias modalidades: 1. A quadrilha caipira, no interior paulista; 2. O baile sifilítico, na Bahia e Goiás; 3. A saruê (derivação de soirée), no Brasil Central; 4. A mana-chica e suas variantes, em Campos, RJ.

QUANDO-O-DIABO-NÃO-VEM-MANDA-O-SECRETÁRIO. Diz-se quando as pessoas aparecem nos momentos inoportunos, causando transtornos, confusão.

QUANTOS CAJUS? Pergunta que se faz a alguém quando se quer saber sua idade. É um costume herdado dos índios que, de cada safra de caju, guardava uma castanha para saber a idade dos filhos.

QUATRAGEM. É uma dança popular do interior de Minas Gerais. Formada por um grupo de quatro pessoas (daí o nome) é a dança preferida pelos tropeiros depois de um dia de trabalho. Os grupos sapateiam, batem palmas, ao som de adufes e tambores.

QUEBRA-BUNDA. É uma dança muito antiga, de Goiás, também conhecida por dança dos velhos, na qual apenas os homens participavam, usando barbas tingidas, vestidos de fraque e cartola, ao som de sanfona. Em dado momento, cantando versos, os homens, de costas uns para outros, batiam com as nádegas.

QUEBRA-PANELA. Brincadeira que é feita nos aniversários de crianças e que consiste em vendar os olhos do menino com um pano preto, a quem se dá um bastão para que ele acerte em uma panela, cheia de bombons e chocolates, que está pendurado por um fio. Antes do menino começar a dar golpes para atingir e quebrar a panela, fazem-no dar várias voltas para ele não saber mais ou onde a panela está dependurada.

QUEBRA-QUEIXO. Doce de coco bem ligado; todo doce que fica ligado demais; doce japonês. Todo doce que exige, para sua mastigação, bons dentes e um bom par de queixos para acioná-los.

QUEBRANTO. Veja MAU OLHADO

QUEBRAR-A-CABEÇA. Ter dificuldades para resolver qualquer problema, qualquer situação difícil.

QUEBRAR-CATOLÉ. Diz-se quando a arma (de fogo) nega fogo, isto é, depois de acionado o gatilho ela não dispara. Diz-se também, da moça que quando passa por um rapaz, fica olhando para trás.

QUEBRAR-SE-O-PAU-NAS-COSTAS. Diz-se de quem paga sozinho pelo ato que foi cometido por várias pessoas, conjuntamente.

QUEDA-DE-BRAÇO. É uma luta usada para medir a força de duas pessoas, homens ou meninos, que, sentados a uma mesa, se davam as mãos direitas e depois do sinal, cada qual fazia o possível para encostar a mão do parceiro sobre a mesa. Quando um dos participantes é mais forte do que o outro, o mais forte permite que o mais fraco use a mão esquerda (mão e cambão) para reforçar sua força. As pessoas que estão assistindo, às vezes, fazem apostas a dinheiro.

QUEIJO. 1. É a base de madeira ou de material plástico, de forma redonda e que serve de palco ao destaque de uma escola-de-samba; 2. É a virgindade conservada muito tempo.

QUEIJO-DO-CÉU. Diz o povo que, no céu, existe um bolo bem grande e gostoso que só pode ser comido pelos maridos que, depois do casamento, foram fiéis às suas esposas. É uma tradição portuguesa. Na Beira, é um presunto ou um queijo; no Minho, é uma broa. Nas procissões de Cinzas do Recife, de Olinda e de Salvador, no andar dos santos São Lúcio e Santa Bona – os bem casados, figurava o queijo-do-céu

QUEIMA. Há uma diferença entre as lapinhas e os pastoris. É que as lapinhas eram representadas diante dos presépios. Os pastoris podiam dispensar a lapinha. A queima acontece no final das representações dos pastoris, quando as pastoras faziam uma pequena fogueira de gravetos. A queima das lapinhas está quase desaparecendo. Consistia num grupo de moças conduzindo palhas de coqueiro usadas no presépio e que saíam em procissão pelas ruas da cidade acompanhadas de orquestra composta de instrumento de sopro. Feita a fogueira, as pastorinhas cantavam: -"A nossa lapinha/Já se queimou.../E o nosso brinquedo/Já se acabou".

QUENTÃO. O quentão é uma bebida do interior de São Paulo e Minas Gerais. É cachaça, fervida com açúcar e gengibre.

QUERERÊ. É uma comida feita com as vértebras dorsais e o grosso intestino do peixe pirarucu, preferida pelos caboclos da Amazônia.

QUERMESSE. Bazar, feira beneficente, leilão de prendas muito comum nas cidades do interior. O padre arrecada as prendas (bolos, galinhas, carneiros, perus, cabritos, frutas, etc.) que são arrematadas na quermesse por quem oferecer melhor preço. O produto das quermesses geralmente é destinado às obras ou conservação das igrejas.

QUERO-MANA. É uma dança popular do Rio Grande do Sul, Paraná, e São Paulo. É sapateada, valsada e acompanhada por violas e palmas.

QUERO-QUERO. No Estado do Rio de Janeiro, o quero-quero é uma ave agourenta. Seu canto parece dizer "quero-quero", parecendo, segundo acredita o povo, querer levar a alma da pessoa.

QUIBANO. É, no estado do Rio de Janeiro, uma peneira feita com taquara, num traçado bem fechado, que serve para peneirar o arroz, separando os grãos maduros e pesados, dos grãos chochos.

QUIBEBE. Papa ou purê de jerimum (abóbora) ou de banana com paçoca; na Bahia, de carne ou outra comida; ou com farinha de mandioca. Na cidade de Campos, RJ., é usado o quibebe de banana, água e sal, para comer com ensopado.

QUICÉ. Resto de faca de mesa quando quebrada ou gasta por ser muitas vezes amolada, ficando pequena.

QUILOMBO (A DANÇA DOS). A dança dos quilombos é uma sobrevivência dos Quilombos dos Palmares que, a partir do século XVII, se estabeleceram na Serra da Barriga, no local onde hoje está situada a cidade de União dos Palmares. Os componentes, índios ou caboclos, usam tangas, cocares, braceletes, perneiras de penas ou capim, sobre calções e camisetas tinturados de vermelho, pintam-se de ocre e carregam arcos e flechas. Os negros trajam calças curtas de mescla azul, camiseta branca sem manga, chapéu de palha de ouricuri, pintam-se de fuligem e carregam foices de madeira como armas. Os reis – um dos negros e outro dos índios ou caboclos - usam calções, manto, blusas de cetim vermelho ou azul, meias compridas, guarda-peito enfeitado de espelhos, coroa de ouropel, aljôfan e areia brilhante. Como armas, os reis empunham antigas espadas. A Rainha é uma menina de 5 a 10 anos, e usa vestido branco comprido, com guarda- peito de espelhos, capa de cetim, enfeitada de espiguilha e diadema de papelão pintado. A dança conta, ainda, com outros personagens: a Catirina (homem vestido de escrava negra, carregando um boneco nos braços), o Papai Velho, de barbas brancas e um cajado nas mãos, o Espia dos Caboclos num traje mais rico e vistoso de índio e o Vigia dos Negros, com chapéu enfeitado de espelhinhos e uma espingarda a tiracolo. A dança tem três etapas: Roubo da Liberdade, o Roubo e o Batuque e A Luta e a Prisão dos Negros. É uma dança que se prolonga durante horas.

QUIBANDA. É o sacerdote nos candomblés de procedência banta. O mesmo que Umbanda ou Embanda.

QUIMANGA. É a refeição que os pescadores levam quando vão pescar em alto mar. Uns dizem que quimanga é o cabaço em que são guardados os alimentos; outros dizem que quimanga é a refeição conduzida, como acontece com o bode. Veja BODE.

QUIMBEMBÉ. É uma bebida feita com milho fermentado. O mesmo que aluá.

QUIMBEMBEQUES. Figas e medalhas presas a um fio, colocadas no pescoço da crianças.

QUIMBETE. É uma dança de origem africana, em Minas Gerais.

QUINAS (CAFÉ DE QUATRO). É o café adoçado com rapadura, como se toma na zona dos engenhos do Nordeste.

QUINDIM. 1. Quindim é uma dança da cidade de Campos, RJ., do baile mana-chica; 2. No plural, quindins é um doce; 3. Também são os requebros de uma menina ou moça.

QUINTA. É a corda mais fina da viola.

QUIPATA. É em Pernambuco, uma porção de peixes que os pescadores dão aos seus companheiros que nada pescaram ou não puderam ir pescar.

QUISIBIU. É um prato da culinária baiana, que consiste em milho verde debulhado, misturado com quiabos verdes, temperados com torresmo e cozinhados até se tornarem uma papa. O quisibiu deve ser comido com carne-de-sol assada na brasa.

QUITÃ. O mesmo que MUIRAQUITÃ, a pedra da felicidade.

QUIZILA. É a antipatia, aborrecimento, rixa, que se tem por determinada pessoa.

QUIZUMBÊ. Canto e dança popular da região do São Francisco.

QUIZUQUI. É, na Bahia, o cuscuz feito com milho mais pra seco do que pra verde. Não leva nenhum tempero. Come-se com manteiga ou com feijoada.
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O Dicionário completo pode ser obtido em http://sites.google.com/site/pavilhaoliterario/dicionario-de-folclore
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Fontes:
LÓSSIO, Rúbia. Dicionário de Folclore para Estudantes. Ed. Fundação Joaquim Nabuco
Imagem = http://www.terracapixaba.com.br/

Palavras e Expressões mais Usuais do Latim e de de outras linguas (Letra M)



made in
Inglês: Feito em. fabricado em Locução aposta ao nome do lugar onde se fabricou ou industrializou um produto comercial.

magister dixit
Latim: O mestre falou. Com esta expressão os escolásticos referiam-se a Aristóteles cuja opinião encerrava qualquer discussão. Ainda hoje se aplica para citar alguém tido como mestre em determinada matéria.

magnae spes altera Romae
Latim: A segunda esperança da grande Roma. Virgílio falava do filho de Enéias. Aplica-se à segunda autoridade de uma nação ou região.

magni nominis umbra
Latim: A sombra de um grande nome. Verso de Lucano que se aplica à pessoa que teve sua hora de glória, caindo depois na obscuridade.

major e longinquo reverentia
Latim: Maior reverência ao que está distante. Refere-se Tácito à reverência que temos por aqueles que se acham afastados de nós no tempo e no espaço.

majores pennas nido
Latim: Asas maiores do que o ninho. Horácio visava àqueles que, nascidos de condição humilde, tentam melhorar a posição social.

malgré ceci
Francês: Apesar disto.

malgré cela
Francês: Apesar daquilo.

malgré lui
Francês: A seu pesar; contra a sua opinião.

malgré tout
Francês: Apesar de tudo.

malo mori quam foedari
Latim: Antes morrer do que desonrar-se. Divisa da Sicília.

mane, thecel, phares
Latim: Contado, pesado, dividido. Palavras que, segundo o livro de Daniel, apareceram na parede da sala onde o Rei Baltasar promovia uma festa sacrílega.

manibus date lilia plenis
Latim: Dai lírios às mãos cheias. Passagem de Virgílio (Eneida, VI, 883), em que Anquises pede flores para o túmulo de Marcelo.

man spricht Deutsch
Alemão: Fala-se alemão. Palavras colocadas nas vitrinas para indicar que no estabelecimento alguém fala alemão.

manu militari
Latim Direito: Pela mão militar. Diz-se da execução de ordem da autoridade, com o emprego da força armada.

marche aux flambeaux
Francês: Marcha das tochas. Concentração popular por motivo de regozijo ou homenagem, em que cada pessoa desfila com uma tocha acesa.

margaritas ante porcos
Latim: Pérolas diante dos porcos. Passagem evangélica em que Cristo aconselha que não se atirem pérolas aos porcos (Mt. VII, 6). Não tratar de coisas santas com ímpios e blasfemos.

materiam superabat opus
Latim: O trabalho excedia a matéria. Aplica-se nos casos em que a forma literária seja superior ao tema.

mea culpa
Latim: Por minha culpa. Locução encontrada no ato de confissão e se aplica nos casos em que a pessoa reconhece os próprios erros.

medice, cura te ipsum
Latim: Médico, cura a ti próprio. Provérbio citado por Cristo e diz respeito àqueles que, esquecidos dos próprios defeitos, desejam corrigir os alheios.

medio tutissimus ibis
Latim: Irás seguríssimo pelo meio. Deves evitar os extremos.

memento, homo, quia pulvis es et in pulverem reverteris
Latim: Lembra-te, homem, que és pó e em pó te tornarás. Palavras pronunciadas pelo sacerdote enquanto impõe cinza na cabeça de cada fiel, na quarta-feira de cinzas.

memento mori
Latim: Lembra-te que hás de morrer. Pensamento cristão, usado como saudação entre os trapistas; também empregado em inscrições tumulares.

mendaci ne verum quidem dicenti creditur
Latim: Não se dá crédito ao mentiroso nem quando ele diz a verdade.

mens agitat molem
Latim: O espírito move a matéria. Frase virgiliana aproveitada pelos panteístas e estóicos, hoje empregada no sentido de que a inteligência domina a matéria.

mens legis
Latim Direito: O espírito da lei.

mens legislatoris
Latim: O pensamento, a vontade, a intenção do legislador.

mens sana in corpore sano
Latim: Espírito sadio em corpo são. Frase de Juvenal, utilizada para demonstrar a necessidade de corpo sadio para serviços de ideais elevados.

meta optata
Latim Direito: Fim colimado. O fim alcançado pelo agente do delito.

mettere la coda dove non va il capo
Italiano: Meter a cauda onde não cabe a cabeça. Mudar de tática, segundo as circunstâncias.

metteur-en-scène
Francês: Encenador. Nos teatros, pessoa encarregada de movimentar atores e cenários.

minima de malis
Latim: Os menores dentre os males. Provérbio de uma das fábulas de Fedro.

minus habens
Latim: Que tem menos. Serve para indicar pessoa pouco inteligente ou menos dotada.

mirabile dictu
Latim: Admirável de se dizer. Empregada como locução interjetiva.

mirabile visu
Latim: Admirável de se ver. Diz-se de qualquer espetáculo belo ou raro.

mise en scène
Francês: Encenação.

miserere mei, Deus
Latim: Deus, tende compaixão de mim. Palavras iniciais do Salmo 51, um dos salmos penitenciais.

missi dominici
Latim: Os enviados do senhor, isto é, os inspetores reais instituídos por Carlos Magno, os quais julgavam do procedimento dos duques e condes.

modus faciendi
Latim: Modo de agir.

modus vivendi
Latim Direito: Modo de viver. Convênio provisório entre nações, feito quase sempre através de permuta de notas diplomáticas.

more majorum
Latim: Conforme o costume dos antepassados: Na segunda defenestração de Praga, os protestantes da Boêmia declararam que agiram more majorum.

mors ultima ratio
Latim: Morte, razão final. A morte é o derradeiro argumento, o mais poderoso.

motu continuo
Latim: Com movimento perpétuo: A cabeça do doido andava num motu continuo.

motu proprio
Latim: Pela própria deliberação: espontaneamente. Diz-se de documentos pontifícios emanados diretamente do papa, e que tornaram obrigatórias para os católicos as disposições e doutrinas neles tratadas.

multa paucis
Latim: Muitas coisas em poucas palavras. Locução que pode servir de modelo aos escritores: dizer muitas coisas em poucas palavras.

multi sunt vocati, pauci vero electi
Latim: Muitos são chamados, porém, poucos escolhidos. Expressão usada por Cristo, referindo-se em parábola à salvação eterna, para a qual todos os homens são convidados, mas nem todos a conseguem (Mt. XX, 16 e XXII, 14).

mutatis mutandis
Latim: Mudando-se o que se deve mudar. Feitas algumas alterações.
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As outras letras:
LETRA A http://singrandohorizontes.blogspot.com/2008/10/palavras-e-expresses-mais-usuais-do.html
LETRA B http://singrandohorizontes.blogspot.com/2008/10/palavras-e-expresses-mais-usuais-do_07.html
LETRA C http://singrandohorizontes.blogspot.com/2008/10/palavras-e-expresses-mais-usuais-do_21.html
LETRA D http://singrandohorizontes.blogspot.com/2008/11/palavras-e-expresses-mais-usuais-do.html
LETRA E http://singrandohorizontes.blogspot.com/2008/11/palavras-e-expresses-mais-usuais-do_28.html
LETRA F http://singrandohorizontes.blogspot.com/2009/01/palavras-e-expressoes-mais-usuais-do.html
LETRA G-H http://singrandohorizontes.blogspot.com/2009/05/palavras-e-expressoes-mais-usuais-do.html
LETRA I http://singrandohorizontes.blogspot.com/2009/06/palavras-e-expressoes-mais-usuais-do.html
LETRA J-L
http://singrandohorizontes.blogspot.com/2009/06/palavras-e-expressoes-mais-usuais-do_21.html
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Fonte:
http://www.portrasdasletras.com.br/

sábado, 4 de julho de 2009

Trova XXXVI

Edson Jorge Badra (Poesias)


CONFISSÕES DE UMA ALMA DO INFERNO

Quando surgiu em mim, certa manhã de agosto,
Da regeneração a chama que tanto arde,
Embalou-me uma voz a me dizer com gosto:
- “Regenera-te, sim, mas deixa pra mais tarde!”

Deixei-me seduzir, mas estava disposto,
Quando o dia chegasse, a não bancar covarde.
Nova oportunidade. E, com grande desgosto.
Ouvi a mesma voz a me dizer: “Mais tarde!”

Um dia, abandonei o corpo em que habitava.
Enquanto lá no céu eu a entrada implorava,
Ouvi atrás de mim a voz de Satanás,
Dizendo, a gargalhar, bem cínico e medonho:
- “Não hás de alimentar agora nenhum sonho,
Porque, alma imbecil, já é tarde demais!”

Uma outra, carregada de humor em sua mensagem:
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CINISMO

- "Se não me amas, então por que mentiste?
Tão certa estavas do teu grande amor,
que mesmo quando um dia tu partiste
não foi assim tão grande a minha dor.

Imbecil e cretino! o que sentiste,
momentãnea paixão, falso calor,
deixou-me o coração magoado e triste,
que me acompanhará por onde eu for.

- "Que possa eu explicar-te neste instante?
Não desejava provocar-te o pranto,
tu que a mim te entregavas tão confiante!

Então menti. Pior: sofreste mais!
Tua desdita foi amar-me tanto
e o meu defeito foi ser bom demais.

Fonte:
Academia de Letras de Rondônia

Edson Jorge Badra (1934)



Nasceu em Guajará-Mirim, no dia 12 de junho de 1934, onde viveu toda sua infância.

Seus estudos foram feitos no Colégio Mackenzie, em São Paulo e Gamon, em Lavras-MG.
Concluiu o curso de Direito na Universidade Federal de Minas Gerais e Letras na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras.

Retornou a Guajará-Mirim onde advogou até 1972 e exerceu o cargo de Defensor Público, Promotor Substituto, Promotor Público e Procurador da Justiça. Foi professor de Língua Portuguesa e Literatura Brasileira durante 20 anos.

Emitiu opinião em diversos livros e prefaciou outros.

É membro fundador da União Brasileira dos Escritores de Rondônia, e da Academia Rondoniense de Educação. Foi nomeado por decreto governamental membro do Conselho Estadual de Cultura, chegando ao cargo de Presidente.

Atuou como Vice-Presidente da Academia de Letras de Rondônia, fazendo parte da primeira Diretoria, no biênio 1986/1987.

Possui duas obras publicadas:

"Literatura de Rondônia" - 1987 (ensaio), onde o poeta analisa, opina e traça paralelo sobre as publicações e produtores literários do Estado;e

"Sonhos Prosaicos e Poéticos", onde reúne prosa, poemas e hinos.

Sua obra poética vai do pitoresco ao lírico formal. A forma é original e inteligente; reflete a arte, o conhecimento e o amadurecimento poético do autor.

Fonte:
Academia de Letras de Rondônia

Cruz e Souza (A Borboleta Azul)


No alegre sol de então
De uma manhã de amor,
A borboleta solta no fulgor
Da luz, lembrava um leve coração.
Ia e vinha e a voar
Gentil e trêfega, azul,
Sonoramente a percorrer pelo ar,
Como um silfo tenuíssimo e taful.

Sobre os frescos rosais
Pousava débil, sutil,
Doirando tudo de um risonho abril
Feito de beijos e de madrigais.

Que doce embriaguez
O vôo assim seguir
Da borboleta azul, correndo, a vir
Do espaço pela Etérea candidez!

Fazendo, tal e qual,
O mesmo giro assim,
O mesmo vôo límpido, sem fim,
Nos mundos virgens de qualquer ideal.

Ir como ela também
Em busca das loucas
E tropicais e fulgidas manhãs
Cheias de colibris e sol, além...

Ir com ela na luz
De mundos através,
Sem abrolhos nas mãos, cardos nos pés,
Ó alma, minha, que alegria a flux!...

No alegre sol de então
De uma manhã de amor
A borboleta solta no fulgor
Da luz, lembrava um leve coração.

Fonte:
Domínio Público

sexta-feira, 3 de julho de 2009

Trova XXXV

Monteiro Lobato (Os dois Ladrões)


Dois ladrões de animais furtaram certa vez um burro, e como não pudessem reparti-lo em dois pedaços surgiu a briga.

- O burro é meu! – alegava um – o burro é meu porque eu o vi primeiro…

- Sim – argumentava o outro – você o viu primeiro; mas quem primeiro o segurou fui eu. Logo, é meu…

Não havendo acordo possível, engalfinharam-se, rolaram na poeira aos socos e dentadas.

Enquanto isso um terceiro ladrão surge, monta no burro e foge a galope.

Finda a luta, quando os ladrões se ergueram, moídos da sova, rasgados, esfolados…

- Que é do burro? Nem sombra! Riam-se – risadinha amarela – e um deles, que sabia latim, disse:

- Inter duos litigantes tertius gaudet.

Que quer dizer: quando dois brigam, lucra um terceiro mais esperto.

Fonte:
LOBATO, Monteiro. Fábulas. SP: Brasiliense, 1994.

Isaac Asimov (Versos na Luz)



A última pessoa deste mundo que alguém julgaria um criminoso era a sra. Avis Lardner. Viúva do grande mártir da Astronáutica, era filantropa, colecionadora de arte, uma extraordinária anfitriã e, todos concordavam, um gênio artístico. Acima de tudo, era o mais gentil e bondoso ser humano que se podia imaginar.

O marido, William J. Lardner, morreu, como todos sabemos, devido aos efeitos da radiaçío da luz solar, após ter deliberadamente permanecido no espaço, a fim de que uma espaçonave de passageiros pudesse levar seu veículo espacial em segurança à Estação Espacial n°5.

Por isso a sra. Lardner havia recebido uma generosa pensão, a qual investira bem e com muita sabedoria. Ao fim da meia-idade, estava rica.

Sua casa era uma espécie de exposição permanente, um verdadeiro museu, contendo uma coleção de lindas jóias, pequena, porém de extremo bom-gosto. De uma dúzia de diferentes culturas havia conseguido relíquias de quase toda peça de artesanato concebível que pudessem ser engastadas de jóias para servir à aristocracia daquela mesma cultura. Possuía um dos primeiros relógios de pulso, adornado de pedras preciosas, fabricado na América, uma adaga incrustada de pedras preciosas, procedente do Camboja, um par de óculos, decorado com jóias, vindo da Itália, e assim por diante, interminavelmente.

Tudo estava aberto ao público. As peças de artesanato não estavam no seguro, e não havia nenhuma providência comum no sentido de garanti-las. Não havia a necessidade de nada convencional, porquanto a sra. Lardner mantinha um corpo de auxiliares, constituído de robôs-servos, a cada um dos quais podia se confiar a guarda de cada um dos objetos, tendo eles imperturbável concentração, irrepreensível honestidade e irrevogável eficiência.

Todos sabiam da existência dos robôs e não há registro de ter algum dia ocorrido alguma tentativa de furto.

E havia também, é claro, sua escultura-luz.

Como a sra. Lardner descobriu seu próprio gênio para a arte, nenhum convidado de suas pródigas reuniões conseguia adivinhar. Contudo, em cada ocasião, quando a sra. Lardner abria a casa para os convidados, uma nova sinfonia de luz percorria os aposentos de um lado ao outro; curvas e sólidos tridimensionais, numa mescla de cores, algumas puras, outras difusas, em surpreendentes efeitos cristalinos que mergulhavam no assombro cada convidado, e que se ajustavam por si mesmos, de forma a embelezar os cabelos macios e azulados e o rosto de contornos pouco definidos da sra. Lardner.

Era por causa da escultura-luz, mais do que por qualquer outra coisa, que os convidados apareciam. Nunca era a mesma duas vezes, e nunca deixava de explorar novos enfoques da arte.

Muitas pessoas que podiam comprar consolo-luz preparavam esculturas-luz por diversão, mas ninguém chegava nem de longe a igualar a perícia da sra. Lardner. Nem mesmo aqueles que se consideravam artistas profissionais.

Ela mesma era encantadoramente modesta a respeito disso – Não, não – dizia ela, quando alguém ressudava lirismo. – Eu não a denominaria “poesia na luz”. Isto é ser bondosa demais. No máximo, eu diria que se trata de meros “versos na luz” – e todos sorriam da sutil tirada de espírito.

Embora fosse solicitada freqüentemente a fazê-lo, jamais criava “escultura-luz” em outras ocasiões, salvo em suas próprias festas.

- Seria comercialização – costumava dizer.

Contudo, não objetava à preparação de elaborados hologramas de suas esculturas, de forma que se tornassem permanentes e fossem reproduzidos em todos os museus do mundo. Tampouco nunca cobrou nada pelo uso que pudesse ser feito de suas “esculturas-luz”.

- Eu não teria coragem de cobrar um centavo – dizia ela, abrindo bem os braços. – É de graça para todos. Afinal de contas, eu mesma a uso durante pouco tempo.

Era verdade, ela nunca utilizava duas vezes a mesma “escultura-luz”.

Ela própria cooperava quando eram feitos os hologramas. Observando benignamente cada etapa, estava sempre pronta a mandar que os robôs ajudassem.

- Por favor, Courtney – quer ter a bondade de ajustar a escadinha?

Era o seu estilo. Sempre se dirigia aos robôs com a mais formal das cortesias.

Certa ocasião, há muitos anos, quase fora repreendida por um funcionário federal do “Bureau of Robots and Mechanical Men”:

- Não pode fazer isto – disse ele severamente. – Interfere na eficiência deles. São construídos para cumprir ordens e quanto mais claramente lhes der ordens, mais eficientes as cumprirão. Quando pede com elaborada polidez, compreendem com dificuldade que está sendo dada uma ordem. Reagem mais lentamente.

A sra. Lardner ergueu a aristocrática cabeça:

- Não exijo rapidez e eficiência – disse ela. – Peço boa vontade. Meus robôs me amam.

O funcionário poderia ter explicado que robôs não podem amar, mas murchou sob o olhar ofendido, ainda que meigo, dela.

Era fato conhecido de todos que a sra. Lardner jamais remeteu um robô à fábrica para ajustamentos. Seus cérebros positrônicos eram de enorme complexidade, e quando saem da fábrica, um em dez não está perfeitamente regulado. Às vezes o desajuste não se revela durante um período de tempo, mas sempre que um engano se manifesta, a “U. S. Robots and Mechanical Men Corporation” efetua a correção gratuitamente.

A sra. Lardner sacudiu a cabeça:

- A partir do momento em que o robô está em minha casa – disse – e cumpre com seus deveres, as excentricidades secundárias devem ser toleradas. Não permitirei que seja maltratado.

Era a pior coisa possível tentar explicar que um robô era apenas uma máquina. Ela dizia inflexivamente:

- Nada que seja tão inteligente como um robô pode ser apenas uma máquina. Trato-os como gente.

E pronto!

Ela conservava até mesmo Max, embora fosse quase inútil. Mal se podia compreender o que se esperava dele. Contudo, a sra. Lardner insistia:

- Absolutamente – dizia firmemente – ele é capaz de pegar e guardar chapéus e casacos perfeitamente. Segura objetos para mim. Sabe fazer muitas coisas.

- Mas por que não manda regulá-lo? – perguntou um amigo, certa ocasião.

- Oh, eu não teria coragem. Ele é ele mesmo. É muito amável, sabe? Afinal de contas, um cérebro positrônico é tão complexo que ninguém consegue saber onde está enguiçado. Se fosse ajustado para a perfeita normalidade, não haveria meios de recuperá-lo para a amabilidade que possui agora. E eu não quero desfazer-me dele.

- Mas, se ele está mal regulado – disse o amigo, olhando nervosamente para a sra. Lardner – não poderá ser perigoso?

- Nunca – a sra. Lardner deu uma risada. – Tenho-o há anos. É completamente inofensivo e é um amor.

Na verdade, ele tinha a mesma aparência de todos os outros robôs: liso, metálico, vagamente humano, mas inexpressivo.

Contudo, para a bondosa sra. Lardner, todos eram gente, pessoas, todos meigos, todos adoráveis. Ela era assim.

Como poderia cometer um crime?

A última pessoa que alguém esperaria que fosse assassinado seria John Semper Travis. Introvertido e de modos suaves, estava no mundo, mas não pertencia a ele. Possuía aquele peculiar talento para a Matemática que lhe tornava possível resolver mentalmente o complexo entrelaçamento de uma miríade de circuitos positrônicos cerebrais da mente de um robô.

Era o engenheiro-chefe da “U. S. Robots and Mechanical Men Corporation”.

Mas era também um entusiasmado amador em “escultura-luz”. Havia escrito um livro sobre a matéria, no qual tentava mostrar que o tipo de Matemática que utilizava para resolver problemas de circuitos de cérebros positrônicos poderia ser modificado para servir de guia na produção da estética da “escultura-luz”.

No entanto, sua tentativa de colocar a teoria em prática foi um fracasso desanimador. As esculturas que produziu, segundo seus princípios matemáticos, eram pesadas, mecânicas e sem interesse.

Era a única razão de infelicidade em sua vida tranqüila, introvertida e segura, no entanto era razão suficiente para sentir-se profundamente infeliz. Ele sabia que suas teorias eram corretas, se bem que não conseguisse pô-las em ação. Se não conseguisse produzir uma boa peça de “escultura-luz”…

Naturalmente, estava a par da “escultura-luz” da sra. Lardner. Ela era universalmente aplaudida como um gênio, muito embora Travis soubesse que era incapaz de compreender mesmo o mais simples aspecto da matemática dos robôs. Havia trocado correspondência com ela, mas ela recusava-se obstinadamente a explicar seus métodos, levando-o a perguntar-se se ela possuía mesmo algum. Não seria mera intuição? – mas mesmo a intuição pode ser reduzida à matemática. Finalmente, ele conseguiu receber um convite para uma das festas. Precisava avistar-se com ela a todo custo.

O sr. Travis chegou bem tarde. Havia feito uma última tentativa com uma peça de “escultura-luz”, que resultará num fracasso desa-lentador.

Cumprimentou a sra. Lardner com uma espécie de enigmático respeito e disse:

- Estranho aquele robô que pegou meu chapéu e casaco.

- Aquele é Max – disse a sra. Lardner.

- Está muito desregulado e é um modelo bem antigo. Por que razão não o manda para a fábrica?

- Oh, não – disse a sra. Lardner. – Seria demasiado trabalho.

- De modo nenhum, sra. Lardner – disse Travis. – A sra. ficaria surpresa com a simplicidade do trabalho. De vez que sou da U.S. Robots, tomei a liberdade de ajustá-lo pessoalmente. Não levou tempo e a sra. verá que ele está agora em perfeitas condições de funcionamento.

Uma estranha mudança ocorreu no rosto da sra. Lardner. A fúria estampou-se nele pela primeira vez em sua existência sossegada. Era como se os traços fisionômicos não soubessem qual posição tomar.

- Ajustou-o? – perguntou com voz aguda. – Mas foi ele que criou as minhas “esculturas-luz”. Foi o ajustamento defeituoso, o desajuste, que você jamais conseguirá restaurar… aquele…

Foi uma grande desgraça que ela estivesse mostrando sua coleção naquele momento e que a adaga com cabo cravejado com pedras preciosas, procedente do Camboja, estivesse sobre o tampo de mármore na mesa em frente dela.

A fisionomia de Travis também se distorceu:

- A sra. quer dizer que, se eu tivesse estudado o estranho cérebro positrônico dele, eu poderia ter aprendido…

Ela avançou com a arma com demasiada rapidez para alguém detê-la. Ele não tentou se esquivar ao golpe. Há quem diga que foi ao encontro dele – como se quisesse morrer.
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Conto do livro Nós, Robôs (The Complete Robot). É uma coletânea de 31 contos sobre os robôs publicados entre 1939 a 1977, inclusive as histórias reunidas na primeira coletânea, I, Robot(1950) (Eu, Robô).

Contém todas as histórias com a participação de Susan Calvin, e histórias, como por exemplo, 'O Homem Bicentenário', 'Pobre Robô Perdido' e 'Robbie'. 'Robbie' é a primeira história de robôs escrita por Asimov.
Os contos são:

Robôs não humanos
O melhor amigo de um garoto - Um garoto tem um robô cachorro
Sally - Um carro robô
Um dia - Um computador contador de Histórias

Robôs Imóveis

Contos com computadores

Ponto de vista
Pense!
Amor verdadeiro

Robôs Metálicos
Robô AL-76 extraviado
Vitória involuntária
Estranho no paraíso
Versos na luz
Segregacionista
Robbie

Robôs humanóides
Vamos nos Unir
Imagem Especular (Uma história com Elias Baley e Daniel)
O incidente do tricentenário

Powell e Donovan
Primeira Lei
Corre-corre
Razão
Pegue aquele coelho

Susan Calvin
Mentiroso
Satisfação garantida
Lenny
Escravo
O robozinho perdido
Risco
Fuga
Evidência
O conflito evitável
Intuição feminina

Dois clímax
...Para que vos ocupeis dele
O homem bicentenário

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Fontes:
ASIMOV, Isaac. Nós, Robôs. SP: Hemus Editora, 1982.
- Sobre o livro = Wikipedia