quinta-feira, 1 de abril de 2010

Astrid Cabral (Amazonas Poético)


SORVETERIA

Dia de verão qualquer
no labirinto dos shoppings
os homens tomam sorvete.
Alguns engolem vorazes
receosos de que o mormaço
lhes arrebate a porção.
Outros, lentos, não acertam
com o creme fugaz o ritmo
da fome. Morrem na fonte.
Poucos os que se deleitam
fruindo o açúcar e a neve
sem dúvidas sobre a dádiva.
Existe quem torça a cara
às iguarias servidas
imaginando outras raras.
E quem enfeite o bocado
de caldas extras, perfume
de licores, nozes finas.
Todos um dia qualquer
terão suas taças vazias
lábios imóveis, mãos frias

MÃOS

No deserto da insônia
a mão, triste, me acena
nua de anéis e luvas.
Dedos gesto de adeus
anunciam o abandono
da matéria efêmera.
Dos campos do sono
a mesma mão me chama
cintilante de estrelas.
Tento alçar-me da cama
no encalço do convite
mas a carne me amarra.
E enquanto o corpo dura
fico entre a dor da perda
e o desejo do encontro.

POR TODA PARTE O RIO

Por toda a parte o rio
solta serpente a rojar-se
na paisagem da planície
cobra domada à força por
barrancas e algemas de pontes
ou cativo fragmento no pote
na palma côncava do púcaro
no copo translúcido e mínimo
leite a pojar o seio das cuias.
Em águas batismais comungo
e mergulho o arcaico corpo de
remotíssimo passado anfíbio
nós todos tão sáurios tão
irmãos de peixes e quelônios
e espelho o rosto em fuga por
águas igualmente fugitivas
e comigo vai o rio rente rindo
roendo ruindo riando submim
num subsolo de sonhos.

NO COLO DO ANJO

Empoleirado
na torre do meu sonho
um anjo resplandece.
Cílios cintilantes
estrelas nos olhos
ele me acena com plumas
e me abraça com asas.
Juntos vagamos
entre rastros de astros
a cavalgar nuvens
por planícies etéreas
até que me sinto serena.
É como se mudo dissera
não temas véus ou névoas
qualquer neblina passa.
Mas eis que então fala:
Não sejas cega, menina.
O olhar de Deus tudo abarca.
Só os homens têm pálpebras.

ÁGUA DOCE

A água do rio é doce.
Carece de sal, carece de onda.
A água do rio carece
da vândala violência do mar.
A água do rio é mansa
sem a ameaça constante das vagas
sem a baba de espumas brabas.
A água do rio é mansa
mas também se zanga .
Tem banzeiro, enchente
correnteza e repiquete.
Pressa de corredeira
sobressalto de cachoeira
traição de redemoinho.
A água do rio é mansa
corre em leito estreito..
Mas também transborda e inunda
também é vasta, também é funda
também arrasta, também mata.
Afoga quem não sabe nadar.
Enrola quem não sabe remar.
A água do rio é doce
mas também sabe lutar.
A água doce na pororoca
enfrenta e afronta o mar.
Filha de olho d'água e de chuva
neta de neve e de nuvem
a água doce é pura
mas também se mistura.
Tem água cor de café
tem água cor de cajá
tem água cor de garapa
tem água que nem guaraná.
A água doce do rio
não tem baleia nem tubarão
tem jacaré, candirú, piranha
puraquê e não sei mais o quê.
A água doce não é tão doce.
Antes fosse.

LÍRICO E LÚBRICO

Lírico e lúbrico
o amor brota lírios
e trinca a polpa de frutos.
De luz cintila o encontro
em que nos provamos a fundo
curvas de carne e matos de pêlo.

Além, avulso o tempo
rola expulso do céu
que no chão conquistamos.

E nos sentimos pássaros
em que plumas de nuvens
sobre o dorso pousassem.

E nos provamos raízes
investigando a terra
em seu segredo de barro.

E encarceirados somos
entre próximos cristais
de estrelas e rios.

Desastres de Amor

Mulher bule de louça
deixa-se pegar pela alça
e verte suor e sangue
em quantia exata.
Dei com o nariz
na porta do teu coração.
Foi sangria desatada
e a porta do pronto-socorro
também encontrei fechada.

Eu disse a meu coração:
Sossega pois tudo passa.
O nada não é perdição
mas estado de graça.

Desde que o mundo é mundo
a sina:
o amor, centelha
que faz o incêndio
e a cinza.
______________

Fonte:

Jornal de Poesia

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