sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Monteiro Lobato (Emília no País da Gramática) Capítulo VIII: No acampamento dos Verbos

— Agora iremos visitar o Campo de Marte onde vivem acampados os VERBOS, uma espécie muito curiosa de palavras. Depois dos Substantivos são os Verbos as palavras mais importantes da língua. Só com um Nome e um Verbo já podem os homens exprimir uma idéia. Eles formam a classe militar da cidade.

— Mas que é um Verbo, afinal de contas? — perguntou Pedrinho.

— Verbo é uma palavra que muda muito de forma e serve para indicar o que os Substantivos fazem. A maior parte dos Verbos assumem sessenta e oito formas diferentes.

— Nesse caso são os camaleões da língua — observou Emília. — Dona Benta diz que o camaleão está sempre mudando de cor. Sessenta e oito formas diferentes! Isso até chega a ser desaforo. Os Nomes e Adjetivos só mudam seis vezes — para fazer o Gênero, o Número e o Grau.

— Pois os senhores Verbos até cansam a gente de tanto mudar — disse o rinoceronte. — São palavras políticas, que se ajeitam a todas as situações da vida. Moram aqui em quatro grandes acampamentos, ou campos de CONJUGAÇÃO.

Os quatro acampamentos ocupavam todo o Campo de Marte. Cada um trazia letreiro na entrada. Emília leu o letreiro mais próximo — Acampamento dos Verbos da PRIMEIRA CONJUGAÇÃO. Em letras menores vinha um aviso: "Só é permitida a entrada aos Verbos de Infinito terminado em Ar".

— Que quer dizer Infinito? — indagou Narizinho.

— É uma das sessenta e oito formas diferentes dos Verbos, e a que dá nome a toda a tribo.

O acampamento imediato era o da SEGUNDA CONJUGAÇÃO, para os Verbos terminados em Er. O acampamento seguinte era o da TERCEIRA CONJUGAÇÃO, para os Verbos terminados em Ir. Os meninos viram um acampamento mais novo, anexo ao acampamento dos Verbos da Segunda Conjugação.

— Vamos começar nossa visita por aquele — disse Emília —, só porque ele é mais novinho e menor do que os outros.

Dirigiram-se todos para lá, mas o desapontamento foi grande. Encontraram apenas o Verbo Pôr e sua família.

— Ora essa — disse Emília. — Explique, Quindim, o que faz aí esse coruja? Por que não está no acampamento grande junto com os outros?

Quindim suspirou e começou:

— Antigamente Pôr pertencia à Segunda Conjugação e chamava-se Poer. Mas o tempo, que tanto estraga e muda os Verbos, como tudo mais, fez que apodrecesse e caísse o E de Poer. Ficou Pôr, como está hoje. Os gramáticos então criaram uma nova conjugação para ele e seus parentes Compor, Depor, Propor, Dispor, Antepor, Supor e outros. Depois outros gramáticos acharam que não estava bem criarem uma conjugação inteira para um Verbo só, e trouxeram o pobre Pôr e sua família para este anexo da Segunda Conjugação e lhe deram o nome de Verbo ANÔMALO, que quer dizer Verbo Anormal da Segunda Conjugação.

— Que complicação! Seria muito mais simples fabricarem um E novo de pau para substituir o que apodreceu — lembrou Emília.

— Parece simples mas não é. Os gramáticos mexem e remexem com as palavras da língua e estudam o comportamento delas, xingam-nas de nomes rebarbativos, mas não podem alterá-las. Quem altera as palavras, e as faz e desfaz, e esquece umas e inventa novas, é o dono da língua — o Povo. Os gramáticos, apesar de toda a sua importância, não passam dos "grilos" da língua.

— Nesse caso — insistiu Emília —, em vez de xingá-lo de Anômalo, podiam ter posto um letreirinho no pescoço do Verbo: "Ele é Poer; se está Pôr é porque o E apodreceu e caiu". Mas vamos sair do anexo e ver o acampamento da Segunda Conjugação.

Lá estava coalhado de Verbos, a ponto dos meninos nem poderem andar. O momento era bom. O batalhão do Verbo Ter, que é dos mais importantes, ia desfilar. Uma cometa soou e o desfile teve começo.

Esse batalhão compunha-se de sessenta e oito praças, ou PESSOAS, distribuídas em companhias, ou MODOS, e em pelotões, ou TEMPOS. Abria a marcha o MODO INDICATIVO, com trinta e seis soldados repartidos em seis Tempos. Na frente de todos vinha o TEMPO PRESENTE, composto de seis soldadinhos, cada qual com um Pronome no bolso. Os Verbos não sabem andar sós; vivem ligados a alguém ou alguma coisa, que é o SUJEITO; e quando o Sujeito não está presente, botam em lugar dele um Pronome.

Os nomes dos seis soldadinhos do Tempo Presente eram Tenho, Tens, Tem, Temos, Tendes e Têm, e os Pronomes que traziam no bolso eram Eu, Tu, Ele, Nós, Vós e Eles. Seis soldadinhos vivos e enérgicos, que marchavam muito seguros de si.

— Bravos! — gritou Emília. — Pelo jeito de marchar a gente vê que eles têm mesmo. . .

Em seguida veio o Segundo Tempo, cujo nome era PRETÉRITO IMPERFEITO; tinha igual número de soldadinhos, ou Pessoas, embora menos jovens e com caras menos vivas.

Chamavam-se Tinha, Tinhas, Tinha, Tínhamos, Tinheis e Tinham.

— Esses não têm: tinham!. . . — observou Pedrinho. — Por isso estão meio jururus.

Depois veio o Terceiro Tempo, chamado PRETÉRITO PERFEITO, composto igualmente de seis soldados de olhos no fundo, amarelos, magros, com expressão de medo na cara. Eram eles Tive, Tiveste, Teve, Tivemos, Tivestes e Tiveram.

— Estou vendo! — comentou Emília. — Tiveram, já não têm mais nada, os bobos. Bem feito! Quem manda. . .

— Quem manda o quê, Emília? — indagou Narizinho.

— Quem manda perderem o que tinham? Agora agüentem.

Depois desfilou o Quarto Tempo, chamado PRETÉRITO MAIS-QUE-PERFEITO. Eram também seis soldados — Tivera, Tiver as, Tivera, Tivéramos, Tiver eis e Tiveram.

Depois passou o Quinto Tempo, chamado FUTURO DO PRESENTE, e foram recebidos com palmas por serem soldadinhos dos mais alegres e esperançosos — Terei, Terás, Terá, Teremos, Ter eis, Terão.

— Estes são espertos — disse Pedrinho. — Sabem contentar a todo mundo. Viva o Futuro!. . .

Estava terminado o desfile do Modo Indicativo, que exprime o que é, ou a realidade do momento.

Houve um pequeno descanso antes de começar o desfile do MODO IMPERATIVO, que era orgulhosíssimo. Compunha-se apenas de cinco soldados carrancudos, com ar mais autoritário que o do próprio Napoleão. Eram eles o Tem, Tenha, Tenhamos, Tende, Tenham.

— Só fazem isso — explicou Quindim. — Mandam que o pessoal tenha.

— Tenha que coisa? — indagou Emília.

— Tudo quanto há. Quando o Imperativo diz para você, com voz de ditador: Tenha juízo, Emília!, ele não está pedindo nada — está mandando como quem pode, ouviu?

— Fedorento!... — exclamou a boneca com um muxoxo de pouco-caso.

Depois desfilou o MODO SUBJUNTIVO, com três Tempos, de seis Pessoas cada um. O Primeiro Tempo, de nome PRESENTE, trazia os soldados Tenha, Tenhas, Tenha, Tenhamos, Tenhais e Tenham.

Em seguida desfilou o Segundo Tempo, de nome PRETÉRITO IMPERFEITO, com os seus seis soldados — Tivesse, Tivesse s, Tivesse, Tivéssemos, Tivésseis e Tivessem. E por fim desfilou o Terceiro Tempo, o FUTURO, com os seus seis soldados — Tiver, Tiveres, Tiver, Tivermos, Tiverdes e Tiverem. E pronto! Acabou-se o Modo Subjuntivo, que é o Modo que indica alguma coisa possível.

— Qual o que vem agora? — perguntou o menino.

— Vai desfilar agora o MODO INFINITIVO — respondeu Quindim. — Esse Modo só tem dois Tempos — o PRESENTE IMPESSOAL, com um soldado único — Ter; e o PRESENTE PESSOAL, com seis soldados — Ter,

Teres, Ter, Termos, Terdes e Terem.

— Hum!... — exclamou Emília quando viu passar, muito teso e cheio de si, o soldadinho Ter, do Presente Impessoal. — Este é o tal Infinito, pai de todos e o que dá nome ao Verbo. Um verdadeiro general. Merece parabéns pela disciplina da sua tropa.

Fechava a marcha do Modo Infinito o GERÚNDIO, composto do soldado Tendo, seguido logo depois do PARTICÍPIO, composto também dum só soldado, um veterano muito velho, com o peito cheio de medalhas — Tido.

— Parece o Garibaldi — asneirou a boneca. — Escangalhado, mas glorioso.

Estava finda a revista do Verbo Ter. O rinoceronte perguntou aos meninos se queriam assistir a outras.

— Não — respondeu Narizinho. — Quem vê um Verbo, vê todos. Só quero saber que história é essa de Verbos REGULARES e IRREGULARES. Estou notando ali uma cerca que separa uns de outros.

— Verbos Regulares são os bem-comportados — explicou Quindim —, os que seguem as regras muito direitinhos. Verbos Irregulares são os rebeldes, os que não se conformam com a disciplina. Este Senhor Ter, por exemplo, é Irregular, visto como não segue o PARADIGMA da Segunda Conjugação.

— Que Paradigma é esse agora? — indagou Pedrinho.

— Cada Conjugação possui o seu Regulamento, ou Paradigma, a fim de que todos os Verbos Regulares formem as suas PESSOAS sempre do mesmo modo.

— Que Pessoas, Quindim?

— Os soldadinhos são as Pessoas dos Verbos, creio que já expliquei. Tenho, Tens, Tem, Temos, Tendes e Têm, por exemplo, são as seis Pessoas do Tempo Presente do Modo Indicativo.

— Com que então o tal Ter é irregular, hein? Não parecia.

— E além de Irregular é AUXILIAR. Os Verbos Ter, Ser, Estar e Haver são chamados Verbos Auxiliares porque além de fazerem o seu serviço ainda ajudam outros Verbos. Quando alguém diz: Tenho brincado muito, está botando o Verbo Ter como auxiliar do Verbo Brincar.

— E que outras qualidades do Verbo há?

— Muitas. Verbo é coisa que não acaba mais. Há Verbos DEFECTIVOS, uns coitados, com falta de Modos, Tempos ou Pessoas.

Há os Verbos PRONOMINAIS, que não sabem viver sem um Pronome Oblíquo adiante ou atrás, como Queixar-se. Sem esse Se, ou outro Pronome, ele não se arruma na vida.

Há os Verbos ATIVOS, que dizem o que o Sujeito faz; e há os Verbos PASSIVOS, que dizem o que fizeram para o Sujeito. A frase: Eu comi o doce está com um Verbo Ativo. A frase: O doce foi comido por mim está com um Verbo Passivo (Foi Comido).

Se formos falar tudo, tudo, a respeito de Verbos, ficaremos aqui o dia inteiro. Gentinha que muda de forma como eles fazem, dá pano para mangas! E são exigentíssimos. Uns não sabem viver sem um COMPLEMENTO adiante, e por isso se chamam Verbos TRANSITIVOS. Outros dispensam o Complemento, e por isso se chamam INTRANSITIVOS. Queimar, por exemplo, é Transitivo, porque exige Complemento. Se alguém diz: O fogo queimou, a frase fica incompleta; e quem ouve pergunta logo o que é que o fogo queimou. Essa coisa que o fogo queimou, seja mato, lenha ou carvão, constitui o Objeto Direto de Queimou.

— E os Intransitivos?

— Esses não pedem Complemento, como eu já disse. O Verbo Morrer, por exemplo, é Intransitivo. Quando a gente diz: O gato morreu, a frase está perfeita e ninguém pergunta mais nada. — Eu pergunto! — gritou Emília. — Pergunto de que morreu, e quem o matou e onde jogaram o cadáver.

Quindim coçou a cabeça.
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Continua ... Capítulo IX: Emília na casa do Verbo Ser
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Fonte:
LOBATO, Monteiro. Emília no País da Gramática. SP: Círculo do Livro. Digitalizado por http://groups.google.com/group/digitalsource

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