quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Machado de Assis (Análise dos Contos de “Várias Histórias”: 5. A Desejada das Gentes)


Análise realizada por Cristiane Teixeira de Amorim, sob o título Máscaras do Desejo em “A Desejada das Gentes”, De Machado De Assis
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O conto na íntegra se encontra em http://singrandohorizontes.blogspot.com/2008/10/machado-de-assis-desejada-das-gentes.html
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O conto “A desejada das gentes” foi publicado pela primeira vez em 1886. Em 1896, passa a integrar a coletânea Várias histórias.

A narrativa sustenta-se sobre um diálogo no qual um dos personagens, o Conselheiro, assume tom memorialista e nostálgico ao expor, para o amigo, seu passado – reminiscências do ano em que conhecera Quintília (1855) ao ano de sua morte (1859) – em uma seqüência quase integralmente cronológica (não fosse a referência inicial à própria morte), intercalada com reflexões, sobre fatos e comportamentos apresentados, provenientes do distanciamento temporal.

O texto deixa entrever que o diálogo já havia iniciado antes da narrativa, como se o autor tivesse feito um corte seletivo na conversa entre amigos – tipo de recurso recorrente na estética literária contemporânea.

A primeira “fala” pertence ao interlocutor que manifesta uma crítica ao estilo romanesco do Conselheiro: “Ah! Conselheiro, aí começa a falar em versos.” (p. 125). A nuance de teor sentimentalista se mantém na réplica: “Todos os homens devem ter uma lira no coração.” (p. 125). Em seguida, as razões para os “versos” e para a “lira no coração” são expostas. O espaço exterior exuma o passado; traz à tona não o real que jaz noutro tempo, mas a representação deste real, contraditoriamente assassinado e ressuscitado (embora nasça outro) no processo de rememoração. Durante o passeio pela Glória, o Conselheiro faz reviver a exuberante Quintília, ou melhor, sua imagem representativa, distanciada do real (que, em verdade, sob quaisquer circunstâncias, jamais é plenamente apreensível), embora mantenha com o mesmo certo grau de parentesco. Ela faz jus ao epíteto de deusa, ao se imortalizar através da memória, ainda que esta tenha sido orientada pela “lira que ressoa” e pela “imaginação” (p. 125).

O outeiro é apontado e, diante dele, há uma casa. A casa onde, o texto sugere, morou a “desejada das gentes”. A ironia machadiana se aproveita dos espaços. Aquela que nunca ambicionou se casar e com a qual todos cobiçavam se unir em matrimônio residia diante do altar.

O Conselheiro, ainda em réplica à fala inicial do interlocutor, questiona: “Sabe por que é que lhe pareço poeta, apesar das ordenações do Reino e dos cabelos grisalhos?” (p.125). A pergunta suscita algumas inferências: ao mencionar que o personagem possui cabelos grisalhos, o texto presta indiretamente a informação que um longo tempo se passara entre o presente do enunciado e o presente da enunciação, considerando que ele era mais novo que Quintília e que ela morrera com trinta e três ou trinta e quatro anos. O “parecer poeta”, o “falar em verso” e a “lira no coração” compõem uma tríade inicial que situa o personagem no âmbito da estética romântica. Ao mesmo tempo, o Conselheiro crê que as “ordenações do Reino” e os “cabelos grisalhos” constituem empecilhos para tais acessos romanescos.

O poeta, portanto, deveria ser jovem e não possuir nenhuma ligação com o sentido prático da existência. O autor inicia o processo de construção de seus personagens elásticos, que ocupam todas as esferas e a elas se contrapõem. No decorrer da narrativa, o interlocutor faz duas interrupções à fala do Conselheiro para criticar seu tom romantizado que será, através desta oposição e das reminiscências do discurso e do comportamento de Quintília, freqüentemente corroído. O ridículo se aproxima do Conselheiro e o riso que brota dos lábios da “desejada das gentes” parece estampado na face machadiana.

É tentador apontar a morte da estética romântica na produção da segunda fase do “bruxo do Cosme Velho”. Seria, no entanto, uma abordagem equivocada. Ela não sucumbe, ainda que se mantenha apenas para fazer contraponto a uma nova maneira de o homem ver o mundo e de se ver diante do mundo. Valentim Faciolli ao abordar, na análise do texto machadiano, “as formas artísticas”, afirma que elas são “capazes de captar o movimento social de forma contínua: a decomposição das formas velhas e, no interior destas, o nascimento das novas, com a convivência delas em tensão permanente, como movimento de contradições, dialético.” (1982, p. 39). Embora não se refira diretamente a questão aqui exposta, o autor parece corroborar a tese de que Machado não aniquila nenhuma fonte, abastece-se em todas, mesmo que tenha o aparente intuito de negá-las. Nada morre no texto machadiano; tudo vive em tensão permanente.

Ainda no início do diálogo, surgem as primeiras caracterizações de Quintília: “divina”, “linda”, “a mais bela”, “magra”, “alta”. Uma mulher que reúne atrativos que a tornam objeto de desejo. Seu nome, contudo, sugere a impossibilidade de apreensão deste objeto: o parônimo “quintilha” significa, de acordo com o Aurélio, “estrofe de cinco versos” e tem origem na combinação etimológica “quinto + ilha”, indicando, portanto, algo cercado e simultaneamente isolado. O termo “quintilho” oferece também sua contribuição: “Erva ornamental (...) de (...) flores solitárias e (...) vistosas”. A imagem do belo desabitado que brota das nomenclaturas parece autenticar a visão da personagem apresentada no decorrer do conto.

O anúncio da morte da “desejada das gentes” é feito no princípio da narrativa. Morreu em 20 de abril de 1859, durante a estação em que as flores perecem. O Conselheiro, que a conhecera em 1855, quanto ela tinha então trinta anos, faz questão de frisar que “não os parecia”. Relembra, posteriormente, que uma amiga de Quintília dizia que ela “não passava dos vinte e sete”, apenas para “diminuir-se a si própria” (p.125), já que ambas nasceram na mesma data. Inicia-se com sutileza o jogo machadiano de aparência versos essência: atitudes de feições inocentes (ou beneméritas) mascaram sempre o egocentrismo humano. O que está por traz das ações e das palavras, o não-dito, o não-confessado surge pelos espaços que a dissimulação não consegue encobrir: os personagens sempre arrastam uma barra de algodão.

O Conselheiro dá continuidade à descrição de Quintília:
(...) tinha os olhos, como eu então dizia, que pareciam cortados da capa da última noite, mas apesar de noturnos, sem mistérios nem abismos. A voz era brandíssima, um tanto apaulistada, a boca larga, e os dentes, quando ela simplesmente falava, davam-lhe a boca um ar de riso. Ria também, e foram os risos dela, de parceria com os olhos, que me doeram muito durante certo tempo. A “desejada das gentes” é inapreensível. Primeiro, porque as informações sobre ela são fornecidas através da memória, da imagem representativa e dos interesses daquele que conduz a narrativa. Segundo, porque a oposição de Quintília aos ideais femininos de sua época – que a torna fascinante em razão do distanciamento do comportamento comum – não é esclarecida ao logo do conto. No século XIX, as mulheres se casavam jovens e consideravam o casamento projeto central de vida. Permanecer solteira era motivo de infinitas tristezas, como esclarece Ingrid Stein em sua obra Figuras femininas em Machado de Assis: “O casamento representava, no quadro da época, a aspiração modelar da maior parte das moças. (...) As moças casavam muito cedo, com treze ou catorze anos. Se entrassem na casa dos vinte sem pretendente já podiam ser consideradas ‘solteironas’.” (1984, p. 31). Verifica-se, portanto, dois posicionamentos antagônicos em relação ao período: Quintília não quer se casar e os homens desejam se unir em matrimônio a uma mulher que já passara dos trinta anos!

A descrição dos olhos da personagem encerra a seguinte questão: Como possui olhos sem mistérios a mulher que constitui um enigma? Parece certo afirmar que a visão do Conselheiro é equivocada, já que ele declara em seguida: “Tanto não os tinha (mistérios) que cheguei ao ponto de supor que eram as portas abertas do castelo (...)” (p. 126). Quintília nunca “abriu as portas” a seu pretendente.

Seu olhar, misterioso ou não, encobria uma personalidade inatingível. O que desejava Machado: chacotear seu “narrador” ou sugerir nas entrelinhas que os olhos não são dignos de confiabilidade? Facioli, ao analisar a problemática do ponto de vista no texto machadiano, conclui:

(...) o próprio narrador é contestado continuamente em sua versão dos “fatos” narrados, sendo desmistificado pelos outros ou por seu próprio discurso. A verdade do texto é uma questão de ponto de vista e, portanto, sempre determinada pelos “interesses em jogo”.

O leitor estará diante dos movimentos de uma verdade sempre ambígua e instável. (Facioli, 1982, p. 40-1)

Em seguida, a descrição se foca no “ar de riso” da “desejada das gentes” que confere a sua face um tom permanentemente irônico. Quintília ri diante do discurso romântico do Conselheiro. Seu riso é pontiagudo e se dirige não apenas ao personagem, mas ao leitor habituado às paixões romanescas. Os demais leitores Machado convida a rir também. Não um riso frouxo, intenso, incontido, e sim um sutil e cáustico distender de lábios.

O Conselheiro passa a explicitar a origem de seu desejo. Ela era bela, mas não fora a beleza o chamariz da vontade. O interesse é despertado apenas quando ouve “um grupo de moços que falavam dela, como de uma fortaleza inexpugnável” (p. 126). Quintília se torna objeto de conquista valorizado pelo desejo do Outro e pela dificuldade de apreensão do próprio objeto.

Camille Dumouliè, professor de Literatura Comparada na Universidade de Paris X-Nanterre, em sua obra O desejo, reúne autores ao longo da filosofia e da psicanálise que tentaram compreender o universo deste afeto. Ao apresentar a contribuição lacaniana, assinala, tendo como foco o “seio da mulher”: Para se tornar causa do desejo, é necessário que tenha sido objeto do desejo de Outro, visto que, segundo a fórmula de Lacan, o desejo do homem é o desejo do Outro (2005, p. 110).

Embora a psicanálise alcance a concepção de desejo intrínseca no conto, a raiz deste tipo de aspiração possui um viés mais schopenhauriano e, por conseguinte, mais machadiano. Querer o que o Outro deseja centra-se não na mimese, mas na vaidade. Ao alcançar o que todos almejam, ganha-se a admiração (ou a idolatria) dos olhos da opinião. A vaidade mascarada por outros sentimentos é recorrente na obra de Machado e não são poucos os críticos que apontam a influência da doutrina do filósofo alemão. Ambos ambicionavam dissecar a alma humana e acreditavam nas aparências que camuflam verdades:

No trato humano, as pessoas fazem como a Lua e os corcundas, isto é, mostram apenas a metade; e cada um é dotado do talento inato de compor o rosto com habilidade mímica, de modo a parecer rigorosamente aquilo que devera ser; e como a máscara é feita adrede para ele, assenta-lhe tão bem, que a ilusão é completa. (Schopenhauer, 1956, p. 179)

A “cena” do grupo de moços que, feridos em seu orgulho, apontavam, sem pudor, razões para as negativas de Quintília diante de tantas propostas, se passa “entre dois atos dos Puritanos”. Machado mantém o tom irônico ao aproximar literariamente a malícia da pureza moral.

O Conselheiro e o amigo advogado João Nóbrega, que já conheciam a “desejada das gentes” e a consideravam belíssima, mas nunca pensaram em namorá-la, decidem, calcados no desejo do Outro e na dificuldade de apreensão do objeto (ela era a “fortaleza inexpugnável”), conquistá-la. Fazem, então, uma aposta e Nóbrega lembra que Quintília não era apenas bela. Era rica. Nenhum traço romântico, portanto, os impulsiona à aventura.

Um fato novo muda o rumo dos acontecimentos: os amigos, “violentamente enfeitiçados” pela “desejada das gentes”, perdem o controle da situação. A espécie é, então, responsabilizada: “(...) o homem põe e a espécie dispõe” (p. 127). Essa concepção, nitidamente schopenhauriana, coloca a Vontade da espécie, que visa sua perpetuação através da reprodução dos seres, sobreposta à vontade do indivíduo. De acordo com o filósofo, o amor constitui um “ardil da natureza” para obter seu único fim: “a combinação da próxima geração” (Schopenhauer, 1969, p. 16). Independente de a teoria alemã surgir no conto para ser reverenciada ou depreciada, o desejo nova mente aparece dissimulado. Os sentimentos dos personagens por Quintília espelham, nesta abordagem, a Vontade da espécie.

O Conselheiro e João Nóbrega se desentendem ao se tornarem rivais. A disputa pelo mesmo objeto (a “ação comum”) conduz à separação. O “narrador” afirma que “ou por desengano verbal que ela (Quintília) lhe desse, ou por desespero de vencer” (p. 127), o ex-amigo desistira da disputa. A utilização de orações alternativas põe em xeque as causas apresentadas. Em seguida, o Conselheiro assevera que Nóbrega morrera “apaixonado como um simples Werther”. (p. 127). O exagero próprio do estilo romântico é criticado na réplica do interlocutor: “Menos a pistola.” O “narrador” desconhece os motivos que levaram ao afastamento do advogado; apenas suposições são apresentadas. No texto, também não há nenhum indício de manutenção do contato entre estes personagens. Aparentemente a tendência romanesca do Conselheiro o induz a acreditar que Nóbrega falecera em decorrência do veneno exalado do amor de Quintília.

O desejo, pouco a pouco, ganha outra face. Ele já não é apenas desejo do Outro, mas o desejo narcísico de ser desejado (o desejo pelo desejo do Outro). A vaidade se mantém como a mola propulsora das vontades. Dumoulié, ao abordar esta questão, cita o pensamento de Hegel segundo Kojève:
(...) na relação entre o homem e a mulher, por exemplo, o Desejo só é humano se um deseja não o corpo, mas o Desejo do outro, se quer “possuir” ou “assimilar” o Desejo tomado enquanto Desejo, ou seja, se quer ser “desejado” ou “amado” ou então ainda: “reconhecido” no seu valor humano (...). (Hegel apud Dumoulié, 2005, p.125)

O Conselheiro afirma que “Quintília não deixava ninguém estar só em campo.” (p.128). A sentença faria o interlocutor (e o leitor) desconfiar de que “a desejada das gentes” saboreava seu lugar de “objeto de desejo”. Para evitar essa acepção, ele apressa-se por dizer:
“não digo por ela, mas pelos outros”. A imagem de sedutora mordaz rui para dar lugar a da mulher justa e piedosa. Em seguida, conclui a descrição: “(...) tinha essa espécie de olhos derramados que não foram feitos para homens ciumentos.” (p.128). O que significaria “olhos derramados” senão os que se projetam sobre o Outro, os que se alastram até tudo abarcar? Machado criou mais uma de suas personagens enigmáticas, que o “narrador” se esforça por decifrar inutilmente porque prisioneiro de seu próprio olhar. Ao leitor, resta um ponto de vista oscilatório, frágil, duvidoso. Quintília se deleitava com o desejo que incitava ou era apenas uma mulher bela a se esquivar com gentileza da cobiça alheia?

O lugar daquele que deseja é expresso por uma “voz” nada confiável, embora permita vislumbrar, pelas fendas na máscara, parte do que se encontra camuflado. A estética machadiana se assemelha a uma capa repleta de pequenos orifícios por onde escapam verdades” que os personagens ambicionavam encobrir. A narrativa se estrutura em discursos sobrepostos: o primeiro propositalmente falho, porque deixa entrever, mesmo que de forma precária, o subjacente que se ansiava por manter à sombra.

Mas quanto à nebulosa Quintília? Ela não tem “voz” e sua constituição ao longo do texto, como já referido, parte da imagem representativa do Conselheiro. Curiosamente a obra de Dumoulié, O desejo, também não aborda o tema sob a perspectiva do desejado, mas daquele que deseja, constituindo uma lacuna no entendimento desta relação.

O “narrador” sente ciúmes de sua “amada”. É tomado, portanto, por outro tipo de aspiração: o desejo de exclusividade. Ele não quer apenas que ela o deseje; ele quer que ela não deseje mais ninguém. Quintília, procurando se desvencilhar de seus pretendentes, faz uso, de acordo com o Conselheiro, da opinião contrária (e interesseira) do tio ao seu casamento. As ações dos personagens estão sempre voltadas para benefício próprio. Vale ressaltar que o Conselheiro se espanta com o fato de “uma pessoa tão amiga de bailes e passeios, de valsar e rir, fosse (...) tão severa e grave.” (p. 128). O trecho faz crer que Quintília, embora corrobore com o estereotipo da mulher da Corte, dada às futilidades e trivialidades sociais, possui uma essência contrária à aparência.

Pouco a pouco o estilo romantizado toma conta do “narrador”. Ele teme se declarar e escreve cartas que não envia. Seu pai morre e, em seguida, o tio da “desejada das gentes” adoece. O Conselheiro, então, vislumbra a felicidade frente à iminência da morte: “(...)a afeição principal ia-se embora e nessa transição da vida presente à vida ulterior podia eu alcançar o que desejava.” (p.129). Machado brinca sarcasticamente com o leitor: quando este se torna complacente com a angústia do personagem diante do desejo por Quintília, é posto frente a frente com a sordidez humana. No texto machadiano, bem e mal não constituem absolutos; encontram-se liquefeitos no íntimo dos seres.

Enfim, o Conselheiro decide pedir Quintília em casamento. O tom melodramático do “narrador” contrasta com a réplica seca da “desejada das gentes”: “Casar pra quê?” (p.129). Diante de uma reposta carregada de sentimentalismo exacerbado, ela ri. Quintília mais uma vez ri do ideário romântico. Após o relato da briga entre os amigos advogados, ela pergunta: “Mas então é um delírio?” (p.130). Posteriormente, ele declara que ela o olhava “como se olha para uma pessoa cujas faculdades pareciam transtornadas.” (p. 130). A obsessão, a idéia fixa, recorrente na ficção machadiana, invade os personagens e os conduz ao desvario. Como assinala Brás Cubas “(...) é ela a que faz os varões fortes e os doudos.” (Assis, 2001, p. 23).

Quintília jura que jamais se casará e o Conselheiro conclui: “Éramos dois sócios, que entravam no comércio da vida com diferente capital: eu, tudo o que possuía; ela, quase um óbulo.” (p.130). Aquele que deseja se mostra, portanto, obcecado pelo objeto a ponto de por ele se sacrificar.

A “desejada das gentes” adoece e, com a proximidade, o “amigo” encontra uma chave para a compreensão de sua alma: “escutando as suas leituras vi que os livros puramente amorosos achava-os incompreensíveis, e, se as paixões aí eram violentas, largava-os com tédio.” (p. 131). Quintília assume definitivamente uma postura anti-romântica, tornando-se personagem-símbolo da consolidação de uma nova estética.

Diante da finitude, ela se mostra “enérgica”; não há lágrimas ou lamentos. Casa-se com o Conselheiro à beira da morte. Ele a abraça “pela primeira vez feita cadáver”. (p. 132). O desejo deseja sua própria morte na aquisição, na conquista, na absorção do objeto, todavia a morte do objeto não configura a morte do desejo. Ao analisar o amor cortês, Dumoulié conclui que ele “se fundamenta sobre o mesmo princípio ascético que renuncia ao prazer e constrói uma forma de gerenciamento cujo fim é manter no mais alto grau a intensidade do desejo, eternizá-lo.” (Op. cit., p. 179). Quintília, portanto, fora mordaz com seu “amigo” de traços romanescos, ao presenteá-lo com um desfecho típico de romance-romântico. A partir desta concepção, pode-se compreender a combinação translógica dos epítetos “monstro” e “divino” com os quais o Conselheiro define a “desejada das gentes”.

Por outro ângulo, é possível vislumbrar a vertente schopenhauriana: o “narrador” viveu uma busca incessante que desemboca no encontro com o nada. Percorreu, portanto, a trajetória em direção à ilusão, a que todo desejo conduz, própria de todas as existências.

No conto, o desejo (ou o amor) perde a aura idealizada dos românticos e ganha agentes motivadores de feições pouco nobres. Dumoulié cita o ensaio de Girard Mentira romântica e verdade romanesca que corrobora o ponto de vista apresentado:
Nesse estudo analisa as obras de uma série de romancistas “realistas” que mostram claramente a ilusão da mentira romântica de um desejo autônomo, direto e livre por um objeto ao qual o ego atribui valor intrínseco, e revelaram a verdade do “desejo triangular”. Este último supõe a existência de um rival, de um modelo, de um obstáculo, que dá o valor a um objeto e o torna uma coisa desejável. (Dumoulié, Op. cit., p. 216)

Quintília é incontestavelmente bela e “o belo é a armadilha do desejo por excelência.” (Dumoulié, ibid., p.106). Possuir o belo significa saborear a inveja nos olhos da opinião. Todavia, a cobiça possui outros estímulos. Além de rica, a “desejada das gentes” não quer se casar. As freqüentes negativas constituem o tal obstáculo “que dá valor a um objeto”. Por outro lado, o desejo acirrado pelo desejo do Outro (deseja-se o que o Outro deseja) faz com que o número de candidatos mantenha curva ascendente. O Conselheiro, ao ambicionar o amor de Quintília, deixa entrever que o desejo também se fundamenta no desejo de ser desejado, porque “é sempre a si mesmo que se ama no amor.” (Id., ibid., p. 192). Todas as causas têm raízes, portanto, na vaidade como avalia Chamfort: Tire o amor próprio do amor e bem pouco há de restar. Uma vez purgado de vaidade, é um convalescente enfraquecido, que se arrasta com dificuldade. (Id., ibid., p. 189). A costura de todos esses elementos dá corpo a uma imagem distanciada do real e, por conseguinte, representativa do objeto: A realização do desejo não é portanto a posse de um objeto real, mas a reprodução alucinatória de uma percepção cuja imagem mnésica é de novo investida. Estamos precisamente, com o desejo, no mundo como representação: nunca temos uma relação direta com o real, (...) mas sempre com representações de afetos, ou até com representações de representações. (Dumoulié, op. Cit,, p.120)

Na estética machadiana, nada é o que parece, há sempre algo camuflado que requer um leitor atento a cada sutil movimento da narrativa para não ser lançado ao chão ou, ao menos, um leitor disposto a se levantar diante das quedas quase inevitáveis. A percepção das verdades (prováveis) surge do estranhamento provocado por expectativas frustradas. É esse estranhamento que incita o tatear textual. Machado, assim como a bela Quintília, atravessa os séculos sem se deixar apreender. O terreno é o das possibilidades de leitura limitadas pelo olhar e pela linguagem: “prisioneiros da linguagem e do nosso sistema de interpretações, ou de representações, vemo-nos obrigados a (...) projetar sobre ele noções que são próprias de nossa vida e de nossa experiência.” (Id., ibid., p.155).

O real não reside, portanto, atrás da máscara; ele é, em verdade, a própria máscara.

Referências Bibliográficas:
ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Sá Editora, 2001.
______. Papéis velhos e outras histórias. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, 1995.
BAUDELAIRE, Charles. La beauté. In: Les Fleurs du mal et autres poèmes. Paris: Garnier-Flammarion, 1964.
CÂNDIDO, Antônio. Esquema de Machado de Assis. In: Vários escritos. São Paulo: Pensamento, 1970.
DOUMOLIÉ, Camille. O desejo. Petrópolis, RJ: Vozes, 2005.
FACIOLI, Valentim Aparecido. Várias histórias para um homem célebre. In: BOSI, Alfredo, (et al.). Coleção escritores brasileiros: Antologia e estudos. Vol. 1. São Paulo: Ática, 1982.
FERREIRA. Aurélio Buarque de Holanda. Novo Aurélio século XXI. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
SCHOPENHAUER, Arthur. Aforismos para a sabedoria na vida. São Paulo: Melhoramentos, 1956.
______. A vontade de amar. São Paulo: Edimax, 1969.
STEIN, Ingrid. Figuras femininas em Machado de Assis. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984.
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Continua… análise do conto 6.“A Causa Secreta”
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Fonte:
http://www.filologia.org.br/

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