terça-feira, 26 de abril de 2011

Astrid Cabral (Antologia Poética)


NO COLO DO ANJO

Empoleirado
na torre do meu sonho
um anjo resplandece.
Cílios cintilantes
estrelas nos olhos
ele me acena com plumas
e me abraça com asas.
Juntos vagamos
entre rastros de astros
a cavalgar nuvens
por planícies etéreas
até que me sinto serena.
É como se mudo dissera
não temas véus ou névoas
qualquer neblina passa.
Mas eis que então fala:
Não sejas cega, menina.
O olhar de Deus tudo abarca.
Só os homens têm pálpebras.

DESASTRES DE AMOR

Mulher bule de louça
deixa-se pegar pela alça
e verte suor e sangue
em quantia exata.
Dei com o nariz
na porta do teu coração.
Foi sangria desatada
e a porta do pronto-socorro
também encontrei fechada.

Eu disse a meu coração:
Sossega pois tudo passa.
O nada não é perdição
mas estado de graça.

Desde que o mundo é mundo
a sina:
o amor, centelha
que faz o incêndio
e a cinza.

BUSCA


Minha infância é hoje
aquele peixe de prata
que me escorregou da mão
como se fosse sabão.
Mergulho no antigo rio
atrás do peixe vadio
— Quem viu? Quem viu?
Minha infância é hoje
aquele papagaio fujão
No ar, sua muda canção
Subo nos galhos da goiabeira
atrás do falaz papagaio
— Me segura, me segura
senão eu caio.

MODO DE AMAR

Amor com tremor de terra
abalando montanhas e minérios
nas entranhas da minha carne.
Amor como relâmpago e sóis
inaugurando auroras
ou ateando faíscas e incêndios
nas trevas da minha noite.
Amor como açudes sangrando
ou caudais e tempestades
despencando dilúvios.
E não me falem de ruínas
nem de cinzas, nem de lama.

AMOR NO PÍER

Confesso: o amor por ti
não atravessou o mar.
Só molhou as pernas na espuma
e temendo vagas, dunas
não quis cavalgar o vento.

Confesso: o amor por ti
deixou-se ficar no píer
sem percorrer ponte alguma.
Acenavas terra ao longe
a ventura de outra margem.

Meu amor ficou no meio
refém do medo de risco.
Queria apenas passeio
a bordo escuna sem lastro.
Nunca a viagem de fato

CREPÚSCULO

Por que esta ânsia de sobreviver
assim se amoita no âmago de mim
sempre que as lerdas pálpebras da noite
baixam nas altas ramas com os morcegos?
Por que o poente assim me abala o eixo
e de fúnebre pompa alma me embrulha
tal qual mortalha um pouco prematura?
Por que me pesa suportar as trevas
que o implacável fim do dia instaura
quando já estagiei em precipícios
saltando trampolins perto de abismos?
Por que morrer me assusta e paralisa
se o que temo perder, de longe sei
nada tem de Eldorado ou paraíso?

CANÇÃO TRÔPEGA


A vida não tem volta.
Sobra o séquito de sombras
e uma canção trôpega
atravessada no peito:
espada, rubra espada
cravada de mau jeito.
Aqueles rapazes esbeltos
ai, estrangularam-se
nas gravatas da rotina.
Ai, crucificaram-se
no lenho das doenças.
Aqueles rapazes tão belos
não fazem mais acrobacias
nem discursos inflamados
Arrastam chinelos e redes
ruminam silêncio amargo.
Um dia fui bela, filha,
digo a surpreendê-la.
Devo provar com retratos
o que tem ar de mentira.

ÁUREOS TEMPOS

Áureos tempos aqueles
quando na manhãzinha goiaba
colhíamos no cerrado gabirobas
ainda vestidas de orvalho.
Pés e patas competiam no capim
pródigo de carrapichos.
Gestos elásticos ultra-rápidos
assustávamos insetos e aves.
Um séquito de suaves súditos
nos seguia em semi-adoração
nós, os príncipes daquele feudo.
Depois, o asfalto rasgou o campo.
Cogumelos de concreto brotaram.
Cresceram as crianças e a cidade.
Anãs ficaram as árvores aos pés
de edifícios colossais. Sumiram
pássaros gabirobas araçás.
Fim de passeios e piqueniques.
Só ficou a fome funda das frutas
no vão sem remissão das bocas .

Nenhum comentário: