sexta-feira, 8 de abril de 2011

Monteiro Lobato (Histórias de Tia Nastácia) VI – A Raposinha


Era uma vez um príncipe que saiu a correr mundo, em procura dum remédio para o rei, seu pai, que estava cego. De pois de muito andar, passou por uma aldeia, onde viu vários homens dando uma sova num defunto.

— Que é isso? — perguntou o príncipe.

— É que este homem nos devia dinheiro e morreu sem pagar. O costume cá da aldeia manda meter a lenha no cadáver.

O príncipe revoltou-se contra a brutalidade, e pagando a dívida do morto deu ordem para que o enterrassem.

Seguiu caminho. Adiante encontrou uma raposa que lhe perguntou para onde ia. O príncipe contou que andava atrás dum remédio para a cegueira do rei, seu pai.

— Pois sei dum remédio — disse a raposinha. — Basta esfregar nos olhos do rei um pouco de "ungüento de papagaio", mas dum certo papagaio lá do reino dos Papagaios. Vá lá, meu príncipe, entre à meia-noite no lugar onde estão esses pássaros e não olhe para os bonitos, os que moram em gaiolas douradas. Pegue no mais velho de todos, o mais depenado e sujo, que está a um canto, num poleiro imundo. Esse é o bom.

O príncipe foi. Quando entrou no reino dos Papagaios, ficou de boca aberta de tantas aves lindas que viu, em gaiolas de prata e ouro, e até cravejadas de diamantes. Esquecido da recomendação da raposinha, pegou na gaiola do mais bonito e foi saindo. Mas o papagaio deu um' berro. Os guardas acordaram e prenderam o príncipe.

— Que queres com este papagaio? — disseram. — Vais morrer, gatuno!

O príncipe, com muito medo, explicou do que se tratava. Os guardas então lhe disseram:

— Pois muito bem: damos-te o papagaio se fores ao reino das Espadas e nos trouxeres uma — e soltaram-no.

O príncipe saiu muito triste porque não sabia onde era o tal reino. A raposinha apareceu-lhe de novo.

— Então, meu príncipe, que tristeza é essa? — e depois de saber do acontecido falou assim: — Eu bem recomendei que pegasse o papagaio mais velho e feio.

Agora o que tem a fazer é o seguinte: vá ao reino das Espadas (e contou onde era) e entre lá à meia-noite. Encontrará espadas de todos os jeitos, de ouro e prata, muitas cravejadas de pedras preciosas — mas não pegue nenhuma dessas. Pegue uma velhinha e enferrujada, que está num canto. Essa é a boa.

O príncipe foi, e lá no reino das Espadas ficou de boca aberta diante das tantas mavilhosas que viu. Mas não teve coragem de pegar na espada mais velha e ferrujenta; escolheu, ao contrário, a mais rica de todas. Quando ia saindo, fez barulho sem querer; os guardas acordaram e o prenderam. Iam levá-lo ao rei de Espadas.

O príncipe, porém, contou sua triste história de modo a comover os guardas, os quais disseram: "Bem. Perdoaremos o seu crime, se for ao reino dos Cavalos e nos trouxer um."

O príncipe saiu em procura do reino dos Cavalos. Logo adiante encontrou a raposinha. "Para onde vai tão triste o senhor príncipe?" — perguntou ela.

O príncipe contou tudo.

— Bem feito — disse a raposinha. — Por que não fez como eu disse? O remédio agora é um só — ir ao reino dos Cavalos (e contou onde era) e lá entrar à meia-noite. Encontrará muitíssimos cavalos de todas as cores e raças, cada qual mais lindo. Mas não pegue nenhum desses. Escolha o mais velho e feio. Esse é o bom.

O príncipe foi, mas tão lindos animais viu no reino dos Cavalos que não teve ânimo de pegar no mais velho e feio. Escolheu, ao contrário, o mais lindo de todos. Ao sair, o cavalo rinchou, acordando os guardas, que o prenderam.

Houve explicação e por fim os guardas disseram:

— Pois bem, nós o perdoaremos se você furtar a filha do rei.

O príncipe prometeu e saiu. Logo adiante encontrou a raposinha que lhe disse:

— Príncipe, saiba que sou a alma daquele defunto que levou a sova por causa das dívidas. Ando a protegê-lo por todos os modos, mas nada tem adiantado. Você nunca faz o que eu digo. Vamos ver se agora me atende. Arranje um cavalo e vá à meia-noite ao palácio do rei; entre; agarre a moça, ponha-a na garupa e dispare no galope. Passe pelo reino dos Cavalos e pegue o que eu disse. Depois passe pelo reino das Espadas e pegue a que eu disse. Depois passe pelo reino dos Papagaios e pegue o que eu disse. E dispare a toda para a casa de seu pai, porque o velho está morre não morre. Mas nunca entre por veredas, nem dê atenção a coisa nenhuma antes de chegar em casa. E adeus

O príncipe lá se foi. Chegando ao palácio do rei, furtou a moça; chegando ao reino dos Cavalos, pegou o mais velho e feio; chegando ao reino das Espadas, levou a mais velha; chegando ao reino dos Papagaios, pegou o mais feio — e seguiu no galope na direção de sua casa.

Pelo caminho, porém, encontrou seus irmãos que tinham saído à procura dele, mas que ao verem aqueles objetos ficaram com inveja e resolveram matá-lo para roubar. Para isso convenceram-no de que devia deixar a estrada e seguir por um atalho, porque indo pelo atalho estaria livre de ser assaltado por ladrões.

O moço caiu na esparrela; tomou pelo atalho. Logo adiante os maus irmãos assaltaram-no, roubaram-no e jogaram-no numa buraqueira, certos de que estava morto. E voltaram para casa com os des-pojos. Aconteceu, porém, uma porção de coisas. A moça não queria comer nem falar; o papagaio enfiou a cabeça sob a asa e não disse uma só palavra; a espada ficou mais enferrujada ainda e o cavalo pendeu a cabeça como se fosse morrer.

Quando o moço, lá na buraqueira, acordou do longo desmaio, viu diante de si a raposa, a qual o tirou dali e o botou no caminho. Ele seguiu para casa manquitolando. Assim que chegou, a espada perdeu a ferrugem, ficando novinha em folha; o papagaio criou penas novas e foi sentar-se em seu ombro; a moça deu uma gargalhada gostosa e falou pelos cotovelos; o cavalo ergueu a cabeça e engordou num instante.

O príncipe, então, dirigiu-se ao quarto do rei cego e esfregou-lhe nos olhos um pouco de "ungüento de papagaio" — e o rei imediatamente recobrou a vista e a saúde.

Foi uma grande alegria na corte. O bom príncipe casou-se com a moça e os maus irmãos foram expulsos do reino. E acabou-se a história.
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— Bom — disse Emília. — Esta já está mais bem arranjadinha. Mas eu noto uma coisa: as histórias populares parecem que são uma só, contada de mil maneiras diferentes. Falam tanto na tal imaginação do povo e eu não vejo nada disso. Vejo apenas uma grande pobreza.

— Sim — disse dona Benta. — Também eu não encontro grande riqueza de imaginação no nosso povo. As histórias que por aí correm de fato se repetem, parecendo ser todas do mesmo ciclo.

— Ciclo? — repetiu Narizinho. — Que é isso?

— Quando há uma idéia central e em redor dela surgem muitas histórias parecidas umas com as outras, dizem os sábios que elas pertencem ao mesmo ciclo. Na Europa houve, na Idade Média, o ciclo das histórias da Raposa. Houve também o ciclo das histórias do rei Artur. O povo encanta-se com uma idéia e vai tecendo variantes em torno.

— No cinema de hoje noto a mesma coisa — disse Pedrinho. — Sempre que aparece uma fita original, todas as companhias se aproveitam da idéia e dão fitas sobre o mesmo tema. Até enjoa a gente essa repetição.

— E na literatura também é assim — disse dona Benta. — Sempre que um escritor lança uma obra original, com alguma novidade que caia no gosto do público, todos os maus escritores se metem a usar e abusar daquele tema. Quando aqui no Brasil apareceu O Guarani de José de Alencar, veio logo uma fúria de romances e contos de índios que não acabava mais. Eram obras de pouco valor, imitações que o tempo varreu para o lixo com a vassoura do esquecimento. Só ficou O Guarani.

— Bom — disse Pedrinho. — Nesse caso, temos nas histórias populares o ciclo dos príncipes Joãozinhos que saem a correr mundo em procura de velhas que ensinam remédios e mais coisas milagrosas. As que tia Nastácia já contou parece pertencerem ao mesmo ciclo. Já estou cansado desse "ciclismo"...
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Continua… VII – O Homem Pequeno
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Fonte: LOBATO, Monteiro. Histórias de Tia Nastácia. SP: Brasiliense, 1995. Este livro foi digitalizado e distribuído GRATUITAMENTE pela equipe Digital Source

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