terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Adélia Prado (Poesias Avulsas)


IMPRESSIONISTA

Uma ocasião,
meu pai pintou a casa toda
de alaranjado brilhante.
Por muito tempo moramos numa casa,
como ele mesmo dizia,
constantemente amanhecendo.

CASAMENTO

Há mulheres que dizem:
Meu marido, se quiser pescar, pesque,
mas que limpe os peixes.
Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,
ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.
É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,
de vez em quando os cotovelos se esbarram,
ele fala coisas como "este foi difícil"
"prateou no ar dando rabanadas"
e faz o gesto com a mão.
O silêncio de quando nos vimos a primeira vez
atravessa a cozinha como um rio profundo.
Por fim, os peixes na travessa,
vamos dormir.
Coisas prateadas espocam:
somos noivo e noiva.

ENSINAMENTO

Minha mãe achava estudo
a coisa mais fina do mundo.
Não é.
A coisa mais fina do mundo é o sentimento.
Aquele dia de noite, o pai fazendo serão,
ela falou comigo:
"Coitado, até essa hora no serviço pesado".
Arrumou pão e café , deixou tacho no fogo com água quente.
Não me falou em amor.
Essa palavra de luxo.

EXPLICAÇÃO DE POESIA SEM NINGUÉM PEDIR

Um trem-de-ferro é uma coisa mecânica,
mas atravessa a noite, a madrugada, o dia,
atravessou minha vida,
virou só sentimento.
(in Bagagem)

A SERENATA

Uma noite de lua pálida e gerânios
ele viria com boca e mão incríveis
tocar flauta no jardim.

Estou no começo do meu desespero
e só vejo dois caminhos:
ou viro doida ou santa.

Eu que rejeito e exprobo
o que não for natural como sangue e veias
descubro que estou chorando todo dia,
os cabelos entristecidos,
a pele assaltada de indecisão.

Quando ele vier, porque é certo que ele vem,
de que modo vou chegar ao balcão sem juventude?
A lua, os gerânios e ele serão os mesmos
- só a mulher entre as coisas envelhece.

De que modo vou abrir a janela, se não for doida?
Como a fecharei, se não for santa?

COM LICENÇA POÉTICA

Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta,
anunciou: vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem, sem precisar mentir.
Não sou feia que não possa me casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza
e ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos - dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria, sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.

DONA DOIDA

Uma vez, quando eu era menina,
choveu grosso, com trovoada e clarões,
exatamente como chove agora.
Quando se pôde abrir as janelas,
as poças tremiam com os últimos pingos.
Minha mãe, como quem sabe que vai escrever um poema,
decidiu inspirada: chuchu novinho, angu, molho de ovos.
Fui buscar os chuchus e estou voltando agora,
trinta anos depois. Não encontrei minha mãe.
A mulher que me abriu a porta, riu de dona tão velha,
com sombrinha infantil e coxas à mostra.
Meus filhos me repudiaram envergonhados,
meu marido ficou triste até a morte,
eu fiquei doida no encalço.
Só melhoro quando chove.

CORRIDINHO

O amor quer abraçar e não pode.
A multidão em volta,
com seus olhos cediços,
põe caco de vidro no muro
para o amor desistir.
O amor usa o correio,
o correio trapaceia,
a carta não chega,
o amor fica sem saber se é ou não é.
O amor pega o cavalo,
desembarca do trem,
chega na porta cansado
de tanto caminhar a pé.
Fala a palavra açucena,
pede água, bebe café,
dorme na sua presença,
chupa bala de hortelã.
Tudo manha, truque, engenho:
é descuidar, o amor te pega,
te come, te molha todo.
Mas água o amor não é.

DOLORES

Hoje me deu tristeza,
sofri três tipos de medo
acrescido do fato irreversível:
não sou mais jovem.
Discuti política, feminismo,
a pertinência da reforma penal,
mas ao fim dos assuntos
tirava do bolso meu caquinho de espelho
e enchia os olhos de lágrimas:
não sou mais jovem.
As ciências não me deram socorro,
não tenho por definitivo consolo
o respeito dos moços.
Fui no Livro Sagrado
buscar perdão pra minha carne soberba
e lá estava escrito:
"Foi pela fé que também Sara, apesar da idade avançada,
se tornou capaz de ter uma descendência..."
Se alguém me fixasse, insisti ainda,
num quadro, numa poesia...
e fossem objetos de beleza os meus músculos frouxos...
Mas não quero. Exijo a sorte comum das mulheres nos tanques,
das que jamais verão seu nome impresso e no entanto
sustentam os pilares do mundo, porque mesmo viúvas dignas
não recusam casamento, antes acham sexo agradável,
condição para a normal alegria de amarrar uma tira no cabelo
e varrer a casa de manhã.
Uma tal esperança imploro a Deus.

MOÇA NA SUA CAMA

Papai tosse, dando aviso de si,
vem examinar as tramelas, uma a uma.
A cumeeira da casa é de peroba do campo,
posso dormir sossegada. Mamãe vem me cobrir,
tomo a bênção e fujo atrás dos homens,
me contendo por usura, fazendo render o bom.
Se me tocar, desencadeio as chusmas,
os peixinhos cardumes.
Os topázios me ardem onde mamãe sabe,
por isso ela me diz com ciúmes:
dorme logo, que é tarde.
Sim, mamãe, já vou:
passear na praça em ninguém me ralhar.
Adeus, que me cuido, vou campear nos becos,
moa de moços no bar, violão e olhos
difíceis de sair de mim.
Quando esta nossa cidade ressonar em neblina,
os moços marianos vão me esperar na matriz.
O céu é aqui, mamãe.
Que bom não ser livro inspirado
o catecismo da doutrina cristã,
posso adiar meus escrúpulos
e cavalgar no torpor
dos monsenhores podados.
Posso sofrer amanhã
a linda nódoa de vinho
das flores murchas no chão.
As fábricas têm os seus pátios,
os muros tem seu atrás.
No quartel são gentis comigo.
Não quero chá, minha mãe,
quero a mão do frei Crisóstomo
me ungindo com óleo santo.
Da vida quero a paixão.
E quero escravos, sou lassa.
Com amor de zanga e momo
quero minha cama de catre,
o santo anjo do Senhor,
meu zeloso guardador.
Mas descansa, que ele é eunuco, mamãe.

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