sábado, 17 de dezembro de 2011

Cecy Barbosa Campos (Inter-Relação Cômico-Trágica em A Comédia dos Erros e Os Dois Menecmos)


Dificuldades na distinção entre comédia e tragédia. Conceitos de valorização de ambas. As teorias de Moelwyn Merchant sobre a presença de elementos cômicos e trágicos numa mesma obra, agindo como mecanismo de equilíbrio da tensão. A inter- relação cômico-trágica em A comédia dos erros, de Shakespeare e em Os dois Menecmos, de Plauto.

1. INTRODUÇÃO

Pretendemos neste estudo fazer uma abordagem da peça A comédia dos erros, de William Shakespeare, considerando a inter-relação cômico-trágica nela presente. Segundo Moelwyn Merchant, tanto o humor é indispensável ao alívio da tensão trágica, levando a novos índices de elevação de intensidade da dor, como momentos trágicos ajudam a arrefecer na comédia, os espasmos de riso que serão suscitados novamente, em manifestações de alegria indispensáveis à comédia..

Modernamente, o Teatro do Absurdo apresenta a característica de lidar com o cômico e o trágico ao mesmo tempo. A falta de objetivos na vida e a dificuldade de comunicação entre os seres humanos, aparecem simultaneamente a momentos cômicos, como acontece em Waiting for Godot, de Samuel Beckett.

Shakespeare, examinando de maneira sensível as relações humanas, as virtudes e os defeitos comuns ao homem, é capaz de apresentar um personagem cômico dentro de uma atmosfera sombria e de tratar a angústia humana com comicidade, pelas situações improváveis que é capaz de criar e através de personagens que levam o espectador ao riso, especialmente por suas falas irônicas, satíricas ou imbuídas de sarcasmo. Entretanto o riso que daí surge, não é um ríctus vazio, mas uma reação consciente e reflexiva, que conduz à análise dos graves problemas que atingem a humanidade.

2. TRAGÉDIA E COMÉDIA

É muito difícil fazer distinções precisas ou estabelecer o momento exato em que o trágico se transforma em cômico e vice-versa. É próprio da dualidade do ser humano que ele apresente características boas e más, tendências por vezes liberais e em outras conservadoras, momentos de alegria em que se veja acometido pela tristeza. Da mesma forma é difícil estabelecer uma distinção nítida entre Tragédia e Comédia. Tomando duas peças de Shakespeare, Hamlet e Sonho de uma noite de verão, não teremos dúvidas em enquadrá-las como tragédia e comédia, respectivamente, reforçando a afirmação de Byron, citada por Merchant, de que "Todas as tragédias terminam com morte/ Todas as comédias terminam com um casamento"(1) Entretanto, somos forçados a reconhecer que nem todas as tragédias e comédias terminam da mesma forma.

Uma das mais claras distinções entre a tragédia e a comédia, parece ser a falta, na segunda, daquela dimensão metafísica que é de principal importância na primeira. Também o fato de que o herói trágico, se não perde a vida no final, tem implicações trágicas e catastróficas em sua luta com o destino. Isto fica sem lugar na comédia: aqui o destino é substituído por uma oportunidade mais trivial, ou mais impessoal; e se, ao personagem cômico é permitido fazer reflexões filosóficas, estas são feitas como comentários sobre o que a vida nos reserva e são muito diferentes do que se refere ao destino trágico.

Outra maneira de distinguir tragédia e comédia, está sintetizada no aforismo de Horace Walpole, também citado por Merchant :"O mundo é uma comédia para aqueles que pensam, uma tragédia para aqueles que sentem"(2).

Uma conseqüência desta distinção entre comédia e tragédia, entre pensar e sentir, reside no fato de que o enredo cômico é, às vezes, mais intrincado que o enredo trágico e menos plausível. Muitas vezes arbitrário, subordina-se aos trabalhos do acaso ou da sorte, fazendo com que o espectador se delicie com cada incidente inesperado ou que pareça impossível. O enredo cômico lança os personagens em situações inusitadas que lhes permitam mostrar sua loucura ou confusão. Isto acontece com freqüência em A comédia dos erros, de Shakespeare, onde a existência de dois irmãos gêmeos e de seus dois criados, também gêmeos, criam momentos bem pouco verossímeis. As confusões que surgem a partir do encontro dos quatro, são justamente resultantes do inverossímil da situação.

Na comédia muitas vezes há, não somente acontecimentos improváveis, mas também mudança de caráter ou de nível social - uma pessoa pouco inteligente torna-se repentinamente brilhante, o mau se degenera e o pobre transforma-se em dono de vultosa fortuna, culminando estas reviravoltas do destino com uma festa de casamento ou celebração final. É um recomeço, o surgimento de uma nova sociedade, a abertura de possibilidades, o início de uma outra vida com diferentes perspectivas.

Apresentando uma visão de mundo diversa daquela apresentada pela tragédia e mostrando variados estados psicológicos, a comédia tem a função de provocar o riso e chamar atenção para as incongruências e alegrias da vida, desenvolvendo o senso de humor.

3. O DRAMA CÔMICO

Originando-se dos festejos dionisíacos, nos quais os participantes cantavam, dançavam e faziam brincadeiras zombeteiras enquanto levavam a imagem de Dionísio, a comoedia associou-se logo à idéia de uma forma teatral que apresentava o homem numa perspectiva diferente, com seus defeitos e culpas.

Os dramaturgos romanos Plauto e Terêncio foram os agentes multiplicadores desta concepção mas o impulso criador veio de Atenas, com a Comédia Antiga, da qual Aristófanes foi o representante principal. Embora a questão da influência grega em ambos seja muito discutida, é inegável que, cada um a seu modo, apresenta características próprias que permitem à comédia latina ser reconhecida e respeitada.

De Plauto, possivelmente nascido em 254 AC, sabe-se que foi primeiramente ator, talvez escravo de um grupo de teatro ambulante, tendo passado a autor com extrema sensibilidade para saber o que agradaria a audiência. Quanto a Terêncio, nascido em 185 AC, como escravo, teve sua inteligência reconhecida e recebeu alforria, tornando-se um autor de linguagem refinada, banindo da comédia aquilo que considerava grosseiro e vulgar. Tanto Plauto quando Terêncio apresentam semelhanças em relação ao uso de convenções do teatro greco-romano, complementando a ação pelo uso de solilóquios, comentários simultâneos, saídas e entradas oportunas. Por outro lado, eles se diferenciam pelo uso que fazem do possível e do improvável. Terêncio atém-se muito mais que Plauto àquilo que se subordina à razão e à probabilidade.

É interessante que, justamente pela ênfase dada ao improvável, a comédia plautina vai se colocar lado a lado com a comédia shakespeariana. A presença de Plauto, através das peças Anfitrião e Os dois Menecmos faz-se sentir em A comédia dos erros de Shakespeare.

4. OS DOIS MENECMOS E A COMÉDIA DOS ERROS

A comédia de Plauto trata de confusão de identidades e tem o aspecto visual e a ação física como pontos básicos para a encenação. Há uma complicada estória de gêmeos que se separam aos sete anos, em virtude de um naufrágio. Vivendo em lugares distantes, sem notícias um do outro, aquele que permanece em companhia do pai assume, estranhamente, o nome do irmão desaparecido: Antífolo. Este fato vai complicar mais o enredo a partir do momento em que, já adultos, os dois se encontram na mesma cidade. Sendo absolutamente idênticos, a confusão é completa, pois nem mesmo a mulher e a amante de um deles, são capazes de distingui-los. Criados e outros personagens também não notam a diferença entre os indivíduos que respondem pelo mesmo nome. O “nonsense” da situação estende-se por toda a peça e o clímax da comicidade é atingido no momento em que a irascível esposa de um dos Menecmos é envolvida. A discórdia conjugal é aguçada pela intromissão do parasita Peniculos que denuncia as infidelidades daquele a quem explora. Parecendo ser um personagem importante para a ação, desaparece logo após dar esta contribuição para o estabelecimento do conflito. Neste momento, a confusão estabelecida já é tão grande e os mal entendidos tão numerosos, que ninguém sente falta de sua presença.

Toda esta mistura de confrontos físicos com a negação da razão culmina numa luta final em que todos se envolvem e que coloca a peça numa posição mais próxima da farsa do que da comédia.

Pertencente à fase de iniciação literária de Shakespeare, A comédia dos erros tem como enredo a triste estória do naufrágio de Egeu, que no acidente perde mulher e filho. O humor resulta de equívocos e trocadilhos duplicados pela existência de dois criados gêmeos que servem aos dois Antífolos, de Éfeso e de Siracusa. Assim como os patrões, os criados gêmeos também têm o mesmo nome, atendendo ambos por Drômio. Shakespeare coloca ainda duas mulheres em contraste significativo. Adriana, a esposa ciumenta e independente que reage contra a submissão feminina e Luciana, que considera os homens seres superiores. .

O enredo se expande e os intrincados conjuntos de relacionamentos pessoais tornam-se parte essencial da concepção cômica de Shakespeare. Entretanto, preocupado com a elaboração de um enredo de intriga, o dramaturgo inglês buscava um efeito mais complexo, qual seja o estabelecimento da ação cômica num quadro que se forma a partir de uma atmosfera notadamente séria.

A peça começa com Egeu, mercador de Siracusa, explicando o motivo de sua presença em Éfeso: a busca de mulher e filho há longos anos desaparecidos . Sua figura trágica e solitária leva o Duque a manifestar compaixão sem, entretanto, revogar a pena de morte a que Egeu fora condenado. Paralelamente à figura patética do velho mercador que sem amigos e sem dinheiro está condenado a morrer ao final do dia, os problemas de troca de identidades e o desenvolvimento das relações pessoais e comerciais instauram o cômico. Há, assim uma união perfeita de elementos aparentemente disparatados. A vida é representada não em situação normal, mas no absurdo de situações que são às vezes tristes e alegres simultaneamente.

Em momentos de grande lirismo já é possível entrever a genialidade do autor que começa a despontar. Apesar de alguns críticos reclamarem da irrealidade do tema, é por outro lado necessário admitir que a aceitação de um conjunto de circunstâncias absurdas é essencial à farsa e que este foi o tipo de entretenimento pretendido por Shakespeare.

5. A COMÉDIA SEGUNDO MERCHANT

Merchant analisa a mistura de gêneros e afirma que, para ser possível estudar profundamente a comédia, é necessário, primeiramente explorar suas incursões dentro da tragédia, começando com o teatro grego. Verifica que também no teatro shakespeariano o cômico acha-se presente, com muita freqüência, nas peças trágicas, servindo de alívio à tensão apresentada.

Merchant, ao falar do efeito que a intromissão do cômico exerce como intensificador do momento trágico, sugere que se use a intromissão trágica para diminuir a intensidade do cômico e depois incrementá-la novamente. É o que acontece em A comédia dos erros e em outras peças de Shakespeare. Algumas vezes, a seriedade de assuntos enfocados na comédia leva à insegurança quanto ao modo de classificá-las. Este fato é resultante da grande dificuldade de demarcaçao dos limites entre o trágico e o cômico, pois

Há momentos em que o espírito cômico invade um trabalho de predominante visão trágica, ou, inversamente, um lampejo de tragédia obscurece um trabalho de predominante comicidade; é aí que a demarcação entre tragédia e comédia não parece fácil de se definir; é quando [...] a comédia parece alcançar sua maior estatura não em independência mas em associação com as visões mais sombrias da tragédia. (3)

Desta forma, muitas das comédias shakespearianas, assim denominadas devido a um enquadramento feito a partir da resolução dos conflitos e das cenas finais, deixam o espectador/leitor, em dúvida a respeito da adequabiliade desta denominação, tão perto ficam da tragédia e da comédia ao mesmo tempo.

6. CONCLUSÕES

À primeira vista, lendo ou assistindo A comédia dos erros, temos a sensação de que Shakespeare graceja, faz brincadeiras tolas e que seu único objetivo através das confusões absurdas entre personagens que se duplicam é fazer rir, mas a modificação das fontes que serviram de inspiração para a peça dá-lhe um novo tom. Shakespeare chama a atenção para um problema sério que é a perda ou troca de identidades e as consequências daí advindas, como a desintegração familiar e social. Ao final, redescobrindo o seu próprio “eu” os personagens reassumem seu lugar no mundo, a ordem é restaurada e a violência é substituída pela delicadeza do amor. A ação cômica em toda sua vitalidade conduz a uma espécie de ressurreição, de renascimento, de restauração.

Os paradoxos da irracionalidade estão presentes nos incidentes que se nos apresentam e mesmo numa peça considerada menos importante na gloriosa carreira de Shakespeare, podemos observar a perspicácia do autor na análise do ser humano.

A comédia dos erros não se limita a propiciar uma descarga de energia psíquica liberada através do riso aliviando o espectador das tensões e inibições do mundo em que vive. Ela também induz à simpatia e a sentimentos de compaixão e solidariedade para com os problemas que nos cercam, levando-nos a compreender a importância da paciência e da abnegação para que a ordem possa se impor à desordem e para que o amor e a harmonia nas relações humanas possam ser restaurados no final.

Transcendendo à farsa, Shakespeare demonstrou com A comédia dos erros, que uma grande alegria é melhor sentida pela sua contraposição ao sofrimento, definindo um caminho para as comédias que viria a escrever posteriorrmente.

7. BIBLIOGRAFIA

1- BENDER, Ivo C. Comédia e riso: uma poética do teatro cômico. Porto Alegre, Editora
UFRGS/PURS. 1996.
2- CANOVA, Marie-Claude. La comédie. Paris, Hachette. 1993.
3- HOWARTH, W.D. (ed.). Comic drama. London, Methuen. 1978.
4- MERCHANT, Moelwyn. Comedy. London, Methuen. 1972.
5- NOGUEIRA, Goulart. História breve do teatro. (I) Lisboa, Editorial Verbo. 1962.
6- PLAUTO. Os dois Menecmos. Versão de Carlos Alberto L. Fonseca. Coimbra, Instituto
Nacional de Investigação Científica. 1983.
7- PLAUTO e TERÊNCIO. A comédia latina. Trad. Agostinho da Silva. Rio de Janeiro,
Ed. Tecnoprint (Ediouro). s.d.
8- SHAKESPEARE, William. The comedy of errors. New York, Washington Square
Press. 1963.
9- TRAVERSI, Derek. An approach to Shakespeare (I). London, Hollis and Carter. 1968.

8- NOTAS

As citações foram traduzidas pela autora deste trabalho, de acordo com a edição mencionada na bibliografia.
1-BYRON, APUD MERCHANT(1972:1)
2-WALPOLE, APUD MERCHANT (1972:2)
3-MERCHANT(1972:48)

Fonte:
Texto enviado pela autora.

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