quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Emiliano Perneta (Ilusão) Parte 16


GLÓRIA

Ao I. Serro Azul

Quando um dia eu descer às margens desse lago
Estígio, onde Caron, mediante uma parca
Moeda de estanho vil ou cobre, que eu lhe pago,
Há de me transportar numa sombria barca…

Quando sem um sinal, sem uma prova ou marca
De afeição, eu me for por esse abismo vago,
Vendo que sobre mim funebremente se arca
O céu, e junto a mim esse Caron pressago…

E envolvido na mais completa obscuridade,
Abandonado, e só, e triste, e silencioso,
Sem a sombra sequer do orgulho e da vaidade,

Eu tiver de rolar no olvido, que me espera,
Que ao menos possa ver o palácio radioso,
Feito de louro e sol e mirto e ramos de hera!
Curitiba, 1909

OH QUE ÂNSIA DE SUBIR HOJE MESMO A MONTANHA!

I

Sangue e lodo
E podridão,
O mundo torcia-se todo
No meio da imundície e da dissolução...
Carnificina,
Crimes os mais vis,
Com Messalina
Feita imperatriz.
Por toda a cidade
Eram vozes roucas,
Uivando, por milhões de bocas,
Os uivos tristes da ferocidade.
Dentro desse horizonte,
Sem uma linha ideal,
Sem uma ponte
Para passar além daquela bacanal,
Todo o mundo entendia que viver
Era gozar apenas a nudez
Dessas mulheres nuas,
Aquele vampirismo,
Aquele sodomismo,
Aquela fúria doida de beber,
De se torcer de bêbado nas ruas,
De se enterrar no lodo d’uma vez.
A imundície foi tal
Que os dois eram irmãos, o bem e o mal...

Mas no meio daquela escuridão
Em que andavam todos de rastros,
Olhando para o chão,
Sem poderem erguerem os olhos para os astros,
Almas sentimentais,
Misérrimos galés
Dessas prisões da Vida,
Imundas enxovias,
Tinham ânsias brutais,
Desesperos cruéis, loucas melancolias
De inda poder achar uma saída...
E no meio da mágoa que sobrevinha,
Os corações se abriam de repente,
Como janelas se abrem à noitinha,
Silenciosamente,
Na esperança de ver bruxulear,
De longe, embora, ao menos,
Mais doce do que Vênus,
A luz crepuscular...

Mas sem parar, os anos iam por aí,
E não chegava nunca a hora desse prazer
Que cada qual sentia dentro em si,
Porém sem poder ver...
E danos e gemidos
Cresciam cada vez mais;
E o ódio dos feridos
Era como se fossem uivos de animais...

II

Um pastor, porém,
Com o olhar profundo,
Como todo o mundo,
Que andava em Belém,
Tocando o rebanho
Com o seu bastão,
Uma noite olhou,
E viu, de repente,
Um brilho tamanho,
Um brilho tão doce,
Tão suavemente,
Que ele imaginou,
Que nada mais fosse
Do que uma ilusão.
Mas, quanto mais via,
Quanto mais olhava,
Mais lhe parecia
Que a luz aumentava,
Maior que uma estrela,
E de tal maneira,
Que ele deslumbrado,
Doido para vê-la,
Saiu de carreira
Por aquele lado.

Vendo-o partir, os vales e as montanhas,
Ó que suave música falaz!
E as árvores e as flores mais estranhas,
Tudo saiu logo correndo atrás...
Dentro daquela noite assim tão erma,
Daquela noite doce de luar,
A velhice esqueceu de que era velha,
A enfermidade, de que estava enferma,
E todos com o ar de quem se ajoelha,
Iam como a sorrir e a sonhar...

Era uma glória, um lírio, o encantamento,
A embriaguez, o gozo, a essência rara,
Cada vez mais formoso o firmamento,
A noite, a noite cada vez mais clara...

Era o milagre e o sonho entrelaçados,
Como se fossem rosas, como palma:
Erguiam-se do leito os entrevados,
Os cegos viam com os olhos d’alma...

A natureza, estremecida e bela,
Despertava com essa languidez,
Com esse olhar macio d’uma donzela
Que amasse enfim pela primeira vez...

Era um sussurro harmonioso em tudo:
Os astros eram como um sorvedouro,
Nos caminhos, mais doces que veludo,
Caíam folhas como se fosse ouro...

O mundo quase que a rolar de podre,
O mundo todo cheio de piolhos,
Transbordando de vinho como um odre,
Coberto de gafeira até os olhos,

Levado pelos ventos da esperança
Aos serros ínvios e aos alcantis,
Tinha sorrisos leves de criança,
Exaltações, e sonhos infantis...

Dentro daquela túnica estrelada,
Da túnica de prata do ideal,
Ia sorrindo sem pensar em nada,
Sem se lembrar do bem e nem do mal...

No meio das estradas infinitas,
Dentro daquele manto azul infindo,
De umas nervosidades esquisitas,
Ia como num sonho, ia sorrindo...

Podiam atirá-lo sobre brasas,
Às bestas-feras, aos leões, d’um salto;
Que lhe importava, se agarrado às asas
Ele voava cada vez mais alto?

Que lhe importava, a ele, o horror da mágoa,
A agonia da forca e a própria cruz,
Se através dos seus olhos cheios d’água
Via se abrir o céu banhado em luz?

Que lhe importava a lama e o ódio profundo
Com que o feriam, se ele tinha fé,
Se ele sabia desprezar o mundo,
Se ele, caindo, ia cair em pé?...

III

No meio do furor e do meu desengano,
Quando será também que há de romper-se o véu,
Para mim, que sou, mais do que o povo romano,
O homem luxurioso, e o verdadeiro incréu?

Quando essa luz virá, que às vezes, como um beijo,
Como o frêmito azul d’uma invisível asa,
De uma ânsia, que sei eu, d’um secreto desejo,
Eu sinto palpitar e quase que me abrasa?

Quando ouvirei dizer: – É por ali o caminho!
P’ra o subires, porém, é uma luta vã,
Tens de sangrar as mãos e os pés naquele espinho,
E acreditar de tarde e descrer de manhã!

Nessa estrada não há, não há senão pesares,
Uivos de fome e dor, e feras, e ladrões,
Que depois de arrancar-te o ouro que carregares,
Hão de rir-se de ti e dessas ilusões...

E é além daquele mar, e além daquele abismo,
E dos ódios brutais, e ainda talvez
Além daquele horror, e daquele egoísmo,
E ainda além, e ainda além de tudo quanto vês...

Terás de recurvar, às vezes, como um vime,
Essa espinha dorsal tão dura e inflexível,
Para poder subir a escada do Sublime,
Para poder chegar até o Inexprimível.

Terás de te bater com o máximo denodo,
Tomado de paixão, de cólera, de fúria,
Gládio nas mãos, assim como um artista doido,
Contra o Pecado vão e a incoercível Luxúria...

Tens de arrancar do seio o esplêndido Desejo,
Sem piedade e sem um suspiro sequer,
Como um troféu, como uma glória, como um beijo
Calcando sob os pés o amor dessa mulher...

Tens de vencer, escuta, as cóleras mais cegas,
O Nojo, e o Pavor, teu camarada antigo,
O Desânimo e a Dor, a que tanto te entregas,
E a Dúvida, por fim, teu pior inimigo...

Tens de arrastar na lama o manto de veludo,
E esgotar d’uma vez essa taça de fel,
E ver cair por terra o teu orgulho, e tudo,
A púrpura, e a lança, e a espada, e o broquel...

Se o puderes vencer, porém, chegando lá,
Tua alma há de fulgir, mas d’uma luz tamanha,
Batendo de prazer, teu coração crerá!... –

Oh que ânsia de subir hoje mesmo a Montanha!

Fonte:
Emiliano Perneta. Ilusão e outros poemas. Re-edição Virtual. Revista e atualizada por Ivan Justen Santana. Curitiba: 2011

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