terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Manoel de Barros (Poemas rupestres) Parte 1


Nesta obra, Poemas rupestres, Manoel de Barros recorre às lembranças de Mato Grosso, e de seus primeiros passos no Pantanal, para dar novos significados às palavras. O livro oferece uma oportunidade de apresentar aos leitores a vida de um dos mais importantes poetas contemporâneos. Um autor que surpreende, ao mesmo tempo em que intriga e comove ao leitor, com o despojamento de seus versos, tirados de chão, árvore, bicho, água e pedra.

Poemas Rupestres, como inscritos nas paredes das cavernas de todos nós, traz a voz sábia da infância, de uma falsa inocência estonteante cuja leitura escorre como riacho tantas vezes visitado por esta poética que nos torna meninos de novo que de tão a custo a gente se segura pra não sair pra rua pra fazer travessuras com o olhar de passarinho. Mas de repente, num verso, vem aquele travo amargor com gosto de vida real e o encantamento resvala pra consciência “vira mundo” e a poesia se transforma no road movie do poeta sábio que com sua experiência revela o que há pra ver por trás das palavras simples, das imagens claras.

O que essa poética tem é a capacidade de ver e traduzir um essencial tão ao avesso do colosso artificial da atual era do simulacro, fulcro de uma civilização medida por tonelada consumida. Ao se jeito de audição, de estória contada, se faz tato para a alma, já que “o tato é mais que o ver / é mais que o ouvir / é mais que o cheirar” e o êxtase táctil, mas também auditivo e visual , que o menino Manoel de Barros nos transmite com as suas poesias rupestres, que ficam pintadas em nossas retinas e na nossa memória muito depois de termos lido este livro.

Em Poemas rupestres, ele retorna aos elementos que marcam seu trabalho desde a primeira publicação, em 1937: a paisagem do Pantanal, a infância, a relação misteriosa que existe entre as coisas e os nomes que damos a elas.

Análise dos poemas

– Escritos na terra. A terra é o elemento primordial.

– Os mais elementares traços do homem querendo eternizar o tempo, o momento.

– A infância do homem, o seu retorno eterno na aprendizagem.

– Escritos primitivos jogados na terra como elemento primordial e convivente com o homem.

– Primeira relação reflexa mais elaborada. Sintomas da saída do nível instintivo para o reflexivo.

– Capacidade de retratar o elementar embutido no sentido valendo-se da força da terra e da capacidade primitiva.

– Fuga do controle do sistema límbico para a grande passagem para o neo-córtex cerebral.

– As atividades de sobrevivência cavalgam para a memória para sobreviver no tempo.

– As técnicas elementares do homem primitivo como expressão da força criadora.

– As margens dos percursos criativos, imaginativos denotam o seu percurso criador ou as técnicas à disposição.

– Rupestres indicam as paredes, as encostas, os painéis que a natureza oferece sem concorrência da elaboração humana. A oferta da natureza como possibilidade para o mundo imaginativo do homem das hordas.

– Rupestres, de ambíguas faces: dadas, impostas pela convivência e duradouras por sua natureza constitutiva. Com muita força porque imponente e difícil. Caráter de difícil acesso, de fixação da relação, mas promissora quanto à duração.

– Rupestres, pois não denotam que duas vertentes de influência: a natureza áspera e gritante; a “primevidade”, vale dizer, sem a mão ou presença de qualquer outro que não seja aquele que conseguiu atingir aquele lugar e soube ter acesso de convivência tão intenso que a natureza aceitou a sua firma, o seu sinete, mesmo que impessoal. Lá está e estará enquanto outro artista não transfigurar a natureza primitiva.

– Trata-se de um percurso longo às reações e percepções ancestrais para surpreender o segredo do lúdico, do primordial, do estado vital antes do primeiro reflexo.

– Assim cabe mesmo registrar que o poeta percorreu e atingiu um processo, uma época, um estágio que se mostrou inaugural, por sua origem e percurso.

"Rupestres" caracterizam um sonho do estado primordial quando nenhum gesto feito tinha sido fixado na memória, nos sentidos ou na reflexão do homem. Então o poeta convive com os albores do dizer humano tornado arte. Visão primordial oferecida em poemas que surgiram dos berços primitivos, da rusticidade intuitiva com que o poeta tratou as palavras e a vida.

"Rupestres" porque serão lembrados como revelações da ludicidade do poeta em estado de homem primitivo em completa sintonia e apreensão pela força da natureza, em estado de grande ludicidade também.

Primera Parte

CANÇÃO DE VER

Canção aqui é igual a um poema a ser proclamado ou cantado. Assim a canção “canta” o seu conteúdo, proclama a voz do ser que se expressa e se desdobra em cada verso; expressa também, a canção, sua harmonia nos sons das palavras e nas tonalidades suscitadas.

Canção, harmonia de um conjunto que se revela em tonalidades sonoras até e em cenários. A canção se refere aos sons como tais e aos tons – tonalidades – que compõem as frases da harmonia temática. A canção concretiza tonalidades das emoções enquanto se refere ao coração, às paisagens descobertas se refere à imaginação. Por fim, na combinação de vozes das palavras se se refere aos ouvidos como portadores do receptáculo do coração.

O autor/poeta combina canção com outro sentido muito claro e definido: o olhar. Compõe ele, canções para se ver. Admite e recria o sentido compondo-lhe canções que o educam e o tornam novo, capaz de harmonias pelas palavras vistas em si ou por imagens que os sons, os processos e as imagens constróem como cenários. Esses cenários para o poeta cantam canções para o olhar; oferece-se ao leitor como caminho e harmonia, como novidade e percurso que incluiu o leitor pelo olhar fantástico que a imaginação lhe oferece, integrando-o como um todo que participa e é percorrido pelo poema a partir do olhar.

O olhar passa a ser a porta que recebe o mundo inaugurado pelo poeta rupestre. A ludicidade envolve o leitor que se deixar levar pelo percurso, já se verá outro, o poema o transformou.

O olhar envolveu-o todo em estado de revelação.

1.

Por viver muitos anos dentro do mato
moda ave
O menino pegou um olhar de pássaro —
Contraiu visão fontana.
Por forma que ele enxergava as coisas
por igual
como os pássaros enxergam.
As coisas todas inominadas.
Água não era ainda a palavra água.
Pedra não era ainda a palavra pedra.
E tal.
As palavras eram livres de gramáticas e
podiam ficar em qualquer posição.
Por forma que o menino podia inaugurar.
Podia dar às pedras costumes de flor.

O menino e os pássaros vivem em igualdade de natureza por ter vivido muitos anos dentro do mato. Dessa nova modalidade de se viver, resultou uma maneira de ver – “contraiu visão fontana”.

O que é uma “visão fontana?” “Por forma que ele enxergava as coisas por igual / como os pássaros enxergam.” A primeira resposta é que a visão de um pássaro é uma visão Fontana, isto é, de uma variabilidade muito grande quanto ao ponto de partida e de um foco especial que os pássaros usam para seus vôos ou para sua sobrevivência.

As coisas e os pássaros são inominados. Os elementos da natureza antes de serem nomeados pelo homem – virgens da palavra / marca / identificação dada pelo homem. Assim antes ‘água' não era água / ‘pedra' não era pedra / ‘e tal' = tudo era sem nome.

Ao lado dos elementos / coisas da natureza, as palavras estavam livres e soltas em relação às regras gramaticais e significados fixos. Palavras eram coisas / elementos inominados, Palavras sem designação.

O menino de posse do olhar dos pássaros, vendo tudo sem nome e sem nexos, tornava-se um Menino / Poeta, podia inaugurar. Segundo o autor, o poeta tem que se voltar ao estado lúdico (infante) para se capacitar do mundo das coisas inominadas e então, após pertencer ao mundo da natureza em estado puro ou virgem em relação ao homem – de posse dessas condições ele torna-se poeta e inaugura.

Dessa forma o autor expõe o que ele entende ser um poeta e o que é fazer poemas. Inaugurar é sair da lógica e do sentido fixado, assim pedra = flor ou canto = sol.

O caminho para a reinauguração é introduzir-se na palavra em estado de coisa: “abrir a palavra abelha e entrar dentro dela. Esse percurso para o poeta representa repristinar a “infância da língua”.

O poeta inaugura quando se volta par o estado coisal, para a linguagem livre e virgem das coisas e das palavras. Para isso é necessário voltar ao estágio lúdico da infância. Da mesma forma, propõe o poeta, é necessário então voltar-se para a Infância da língua. Inaugura enquanto infante.

Poesia é a inauguração da linguagem. No poema o autor propõe o seguinte processo para se obter um poema:

a – voltar à natureza virgem coisal,
b – voltar à infância, ao estado lúdico,
c – descobrir a infância da língua,
d – saber que a infância da língua proclama que se deve ser livre das regras da gramática,
e – atinge-se a infância da palavra quando se deixar entrar dentro dela – ‘abrir a palavra abelha e entrar dentro dela'.

Para o poeta é necessário:

1 – atingir o mundo da natureza sem especificação para poder imaginar,

2 – considerar que nesse estágio as coisas são inanimadas,

3 – e que as palavras ainda não estão ligadas entre si, brincam soltas.

Portanto:
“Poesia é a inauguração do universo das palavras. Para isso o poeta tem que adquirir uma visão fontana!”

2.

A de muito que na Corruptela onde a gente
vivia
Não passava ninguém
Nem mascate muleiro
Nem anta batizada
Nem cachorro de bugre.
O dia demorava de uma lesma.
Até uma lacraia ondeante atravessava o dia
por primeiro do que o sol.
E essa lacraia ainda fazia uma estação de
recreio no circo das crianças
a fim de pular corda.
Lembrava a tartaruga de Creonte
que quando chegava na outra margem do rio
as águas já tinham até criado cabelo.
Por isso a gente pensava sempre que o dia
de hoje ainda era ontem.
A gente se acostumou de enxergar antigamentes.

Poema existencial à moda de Carlos Drummond em que se descreve o tempo parado e a vida preguiçosa a ponto de ‘as águas criarem cabelo'. Nesse lugar as coisas se repetem na mesmice de sempre. Tudo é nem e tudo é parado: ‘o dia demorava de uma lesma'.

Neste poema, a pasmaceira ou o tempo são medidos pela unidade do ser das coisas demoradas e insignificantes, assim o tempo é enorme comparado com a movimentação da lesma ou de uma lacraia. Exagerando a velocidade do dia, o poeta afirma: ‘até a lacraia é mais veloz que o sol. Dessa forma ele consegue obter uma densidade forte da morosidade do tempo.

Apesar da morosidade, o lúdico aparece em comparações envolvendo coisas e crianças, capazes de reinventar a vida.

Outras dicotomias na afirmação do poeta prolongam a percepção da morosidade: ‘a tartaruga de Creonte... as águas teriam criado cabelo. Pensava que o hoje era ontem... antigamentes'; são expressões que conseguem conferir densidade e muita morosidade ao tempo relacionado à vida das pessoas. Tempo relativo à morosidade na qual se vive ou se constroem as relações expressivas da vida.

Nessa perspectiva, a do poema, o tempo se volta para o mais fundo do passado, para a vida em um lugar sempre parado – existencialmente parado – e o momento somente é portador de uma demora sem fim do passado.

3.

Por forma que o dia era parado de poste.
Os homens passavam as horas sentados na
porta da Venda
de Seo Mané Quinhentos Réis
que tinha esse nome porque todas as coisas
que vendia
custavam o seu preço e mais quinhentos réis.
Seria qualquer coisa como a Caixa Dois dos
prefeitos.
O mato era atrás da Venda e servia também
para a gente desocupar.
Os cachorros não precisavam do mato para
desocupar
Nem as emas solteiras que despejavam correndo.
No arruado havia nove ranchos.
Araras cruzavam por cima dos ranchos
conversando em ararês.
Ninguém de nós sabia conversar em ararês.
Os maridos que não ficavam de prosa na porta
da Venda
Iam plantar mandioca
Ou fazer filhos nas patroas.
A vida era bem largada.
Todo mundo se ocupava da tarefa de ver o dia
atravessar.
Pois afinal as coisas não eram iguais às cousas?
Por tudo isso, na Corruptela parecia nada
acontecer.

Neste poema está presente uma tentativa do poeta de, perante uma vida veloz e apressada dos dias de hoje, trazer a vivência de um lugar onde a velocidade era medida pela coisas que perpetuavam a mesmice. A importância ou função de relevância das coisas/acontecimentos é referenciada a alguns acontecimentos que mostram a movimentação da vida neste lugar.

Assim as particularidades indicam as expressões para a vida e estas são medidas ou percebidas por estas particulares.

Dessa forma:

1 - o lugar de concentração da vida acontece ao redor da venda do Seo Mané Quinhentos Réis;

2 – os homens sentados na porta da venda sem fazer nada dão a dimensão do tempo e do paradão da vida ali;

3 – o mato atrás da venda se torna referência para as necessidades dos homens e dos animais, menos para os cachorros e para as emas;

4 – o povoado era de nove ranchos;

5 - o barulho das araras indica e prolonga a quietude;

6 – as atividades dos trabalhadores concorrem para sublinhar a falta de novidade ou a mesmice da vida ali: plantar mandioca ou fazer filhos.

O poema quer mostrar a vida em um tempo espichado e parado em uma vila do interior –‘A vida era bem largada!'

Existem palavras com significados próprios, como ‘ocupar ou desocupar'. E uma tarefa muito difícil era ver o dia atravessar, pois tudo / nada acontecia.

4.

Por forma que a nossa tarefa principal
era a de aumentar
o que não acontecia.
(Nós era um rebanho de guris.)
A gente era bem-dotado para aquele serviço
de aumentar o que não acontecia.
A gente operava a domicílio e pra fora.
E aquele colega que tinha ganho um olhar
de pássaro
Era o campeão de aumentar os desacontecimentos.
Uma tarde ele falou pra nós que enxergara um
lagarto espichado na areia
a beber um copo de sol.
Apareceu um homem que era adepto da razão
e disse:
Lagarto não bebe sol no copo!
Isso é uma estultícia.
Ele falou de sério.
Ficamos instruídos.

Neste poema que segue expondo a temática dos anteriores, o poeta tenta mostrar o olhar sobre o tempo ou ainda como o tempo é vivido ou percebido pelas pessoas.

A afirmação do autor – ‘a principal tarefa era aumentar o que não acontecia' – torna-se, de fato, sua tarefa principal enquanto, neste trabalho, polariza as interpretações: olhar o tempo sob a perspectiva das coisas e olhá-lo racionalmente.

Dessa forma:
1 – Seleciona quem tem a aptidão de aumentar o que não acontecia. Os guris e um colega que tinha olhar de pássaro eram os melhores em aumentar o que não acontecia. Atrás desta postura, todos os versos indicam uma vida desejada como pura expressão do lúdico, do imprevisível ou ainda uma vida independente de qualquer lógica ou seqüência lógica como são normalmente os acontecimentos.

2 – O colega que tinha ganho um olhar de pássaro mostrou o modo ideal de aumentar o que não acontecia: “um lagarto espichado na areia a beber um copo de sol.” Assim o mundo reinventado a partir do olhar dos pássaros era uma grandeza incomum.

3 – O homem adepto da razão com sua insistência sobre a lógica de fácil demonstração racional acabou com o encantamento da vida e eles ganharam a chancela negada pelo poeta: ‘ficamos instruídos!' Esse rótulo marca a força do racional sobre um mundo poético se o sujeito, o poeta ou outra pessoa somente movida pela ludicidade de repente perde tudo, pois instrução aí é deixar a vida ser organizada em termos de conhecimentos pela razão. Vale somente um conhecimento que se proclama racional. Ao passo que o poeta mostra outra maneira de entender e conhecer a vida e a realidade, poeticamente. Tudo deve ser reinventado a partir de outro olhar sobre o mundo, no caso, pelo olhar de um pássaro.

4 – Assim o poema é de profunda ironia entre a lógica da razão e a linguagem ou percepção poética da vida – a lógica inaugura um mundo oposto ou de valores opostos ao da instrução racional; vale para o poeta ser desinstruído racionalmente e sábio ‘no que não acontecia'.

5 – O mundo inaugurado pelo poeta é a percepção do des(acontecer), aquilo que não é susceptível de entendimento racionalmente; todo esse conhecimento provém da imaginação, da fantasia e da sensibilidade. Bem como aponta outro caminho de conhecimento, a incorporação sensual e lúdica.

6 – Dessa forma, instruídos racionalmente é estar aprisionado pela lógica e pelas seqüências em tudo na vida. Ao passo que instruídos pelo des(acontecer) indica que a pessoa goza de pura liberdade do inaugurar, do perceber e do sentir. Liberdade para criar outras relações que encantam e dão prazer pelo sensorial e pelo imaginário.

Fonte:
Portal das Letras - Pe. Afonso de Castro
http://www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/livros/analises_completas/p/poemas_rupestres

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