quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Manoel de Barros (Poemas Rupestres) Parte II


5.

Com aquela sua maneira de sol entrar em casa
E com o seu olhar furado de nascentes
O menino podia ver até a cor das vogais –
Como o poeta Rimbaud viu.
Contou que viu a tarde latejas de andorinhas.
E viu a garça pousada na solidão de uma pedra.
E viu outro lagarto que lambia o lado azul do
silêncio.
Depois o menino achou na beira do rio uma pedra
canora.
Ele gostava de atrelar palavras de rebanhos
diferentes
Só para causar distúrbios no idioma.
Pedra canora causa!
E um passarinho que sonhava de ser ele também
causava.
Mas ele mesmo, o menino
Se ignorava como as pedras se ignoram.

Neste poema, através da criação poética, o autor continua sua linha de teorização sobre a poesia e vai exemplificando em cada verso o conceito de teoria poética. Aprofunda sua teoria da arte poética pelo exercício do fazer e acontecer poético.

Em cada verso se manifestam teoria e prática poéticas. O poeta, como o menino do poema, instaura um mundo poético, seus elementos e percepções novas de um mundo ao revés, por meio da reversibilidade dos sentidos. Os sentidos em estado de reinaugurações (várias e múltiplas) permitem a expressão e o acesso aos horizontes novos continuamente inaugurados.

Em especial o olhar, assumido referencialmente como ponto de partida, assume a capacidade de todos os sentidos e dá suporte para a lógica poética das inaugurações. O novo sentido aparece a cada momento, em cada afirmação poética que o olhar, sentido ampliado, lhe oferece inúmeras possibilidades. Os atos inaugurais congregam um alto nível de exuberância vital, de expressividade do que já tinha sido dado, concedido, para a novidade da próxima expressão, da próxima inauguração. Ao percorrer o encadeamento lúdico das inaugurações, ou os versos portadores das novidades, o conjunto se manifesta como um roteiro de alegres surpresas, de percursos apelativos e atraentes concretizando o jogo das novidades que se oferecem com espontaneidade e graça, com leveza e forte atração, de tal forma que ao final do percurso o leitor se vê aberto, outro e criativo também.

A lógica do poema produz outros atos criativos e o primeiro é a auto-percepção modificada do próprio leitor que se deixou inaugurar pelo lúdico caminho inaugural do poema.

A inauguração central – “Olhos furados de nascentes” – mostra que o sentido do olhar em seu estado de amplitude se recria e torna-se fonte de tantas percepções: ‘furado de nascentes!' Normalmente, na lógica racional, furado é para dentro, para se ver o de dentro; aqui o olhar se estende pelos jorros criativos que furam os olhos da lógica e oferecem outras percepções. Além disso, na mitologia, Édipo Rei fura os próprios olhos e descobre outros sentidos, outra visão da realidade – vê mais que a aparência. Então o poeta fura os olhos por jorros de nascentes que oferecem outras visões, outras dimensões do real. Aqui a metáfora sugere outros sentidos além da lógica racional. Com os olhos furados – ver em profundidade – de nascentes – para criar, não só constatar ou perceber – o poeta supera o mito grego que somente propôs compreensão e novas visões do real. Aqui o poeta jorra em nascentes criativas, em visões capazes de inaugurar os dizeres não ditos nem sugeridos que gritam por nascentes. O olhar do poeta se auto-define como olhar de diversas vertentes criativas para além do que já se imaginou. Daí sua arte ser original.

O poema propõe sua teoria poética e a concretiza:

- O poeta / menino inaugura a cor das vogais. Viu a tarde latejar de andorinhas (pulsar de vida) – Viu também a solidão da garça.
- Viu o lagarto que lambia o lado azul do silêncio (viu a cor das vogais).
- Achou na beira do rio uma pedra canora (viu, o olhar se ofereceu aos ouvidos).
- Atrelava palavras de rebanhos diferentes para ofender a lógica do idioma (contra a gramática racionalizada).
- Brinca com a lógica racional: ‘pedra canora causa!' Causa o quê? Som? Barulho? Tropeço? Alicerce? Afinal é uma chance para o leitor criar também.
- O passarinho que se oferecia ao menino sonhava ( O menino já contaminara o pássaro que se tornara criador) – Causa. Tornara-se capaz de tudo!
- E o menino incorpora-se ao mundo excluindo-se do domínio do racional: ‘ignorava-se como uma pedra se ignora!'

Essa última metáfora é a expressão máxima do poeta que assume o ato criador, nele aconteceu a entrega total. Não mais se vê, somente se ignora para perder o uso da razão lógico-reflexiva, pois seu olhar dinamizado pelo liberdade e pela forte capacidade de imaginar suplantou a repetição – somente se vê em estado de novidade. É o mesmo sempre se reinaugurando. A palavra pedra pode assim se desprender do que lhe atribuíram ou lhe fixaram como significado para poder ser ela em um estado de outros significados.

O poeta/menino está no máximo de sua capacidade criativa, perde-se para ser sempre o outro, a reinauguração constante de si mesmo. O percurso poético poderá ser reinventado porque ele já perdeu a memória da fixação do sentido, poderá criar continuamente, pois terá percepções de si e do mundo nunca repetidas, pois sua plataforma de olhar e sua plataforma de percepção serão sempre novas.

Esse é o ápice do poeta, não repetir, estar em estado de novidade, de percepção criativa constante, de si e do mundo. Arrebatado pelo dinamismo criador o poeta só é, só se percebe na novidade, no ato criador.

Não poderia haver poema que melhor exemplificasse o que é poética e poema, além de mostrar como é um processo criador indicando o efeito em quem o assume: o poema inaugura o mundo, as coisas, as pessoas e o próprio poeta!

6.

Desde sempre parece que ele fora preposto a pássaro.
Mas não tinha preparatórios de uma árvore
Pra merecer no seu corpo ternuras de gorjeios.
Ninguém de nós, na verdade, tinha força de fonte.
Ninguém era início de nada.
A gente pintava nas pedras a voz.
E o que dava santidade às nossas palavras era
a canção do ver!
Trabalho nobre aliás mas sem explicação
Tal como costurar sem agulha e sem pano.
Na verdade na verdade
Os passarinhos que botavam primavera nas palavras.

Continua a proposta, concretizada neste poema, da construção poética pela auto-entrega do poeta aos objetos, às coisas, às palavras, emprestando o seu ser ao ser das coisas para que elas possam expressar as suas vozes. Torna-se uma batalha para o poeta que caminha e se expões na abrangência do caminho ou percurso proposto: o olhar.

Entregue, completamente, ao aprendizado da linguagem das coisas e dos pássaros, anela “merecer em seu corpo ternuras de gorjeios”, porém não passara pela instância de ser árvore. Vale dizer, para adquirir no corpo as ternuras dos gorjeios, era necessário ter adquirido a habilidade de se entregar completamente, a ponto de ser “árvore”. Uma dimensão inusitada e sem linguagem lógica para dizer que “ser árvore” é perder-se, entregar-se ao processo para ser fonte criadora e inaugural. Dessa forma o poema teoriza o percurso da invenções, das inaugurações poéticas. Não basta ter o desejo sem se desprender, sem se libertar da própria voz para ser apropriado pelas vozes e estados das coisas, e no caso, de ser ‘árvore'.

Neste poema acontece a confissão do empobrecimento da criação poética: “Ninguém tinha força de fonte, Ninguém era início de nada!” – Uma vez constatado o estado de indigência do fluxo criador ou inaugural, o poeta parte para outra dimensão do processo poético assumido.

“O que dava santidade às nossas palavras era a canção do ver!”

O tema da santidade abre um horizonte amplo: “Só Deus é santo!” Existem pessoas santas por aproximação ou por imitação ou por semelhança, quando assumem em sua limitação uma parte ou participa do fluxo criador (Santidade) de Deus. Santos criam, inventam, inauguram estágios de entrega e amor; criam por generosidade horizontes de integridade interior e beleza, testemunham a entrega do amor criativo. Assim são os santos e Deus sempre inaugura tudo. Santidade é a novidade da criação, do elo participativo do poder criador de Deus. Ele inaugura e o homem pode inaugurar também, dependendo de sua capacidade de entrega, de se deixar iluminar por um poder fontal que assumido torna o homem também fontal.

Aqui o processo de olhar e ver abre uma perspectiva de coerência no processo do poema desde que a inauguração tenha algo de pressuposto, de materialidade da palavra. Sendo vista, recebe outros sentidos inaugurais.

O poeta se entrega ao processo de “canção do ver”, mas não se entende – titubeia entre a lucidez própria e a entrega à luz/processo criador da santidade. Confessa que não entende, não sabe explicar.

Ao constatar que a santidade é inaugural a partir de um pressuposto – a palavra – salta e proclama-se indigente passando a fonte para os passarinhos.

Estes sim, “botavam primavera nas palavras” – Estes levavam as palavras aos brotos, aos recomeços, aos rebentos de uma nova expressão, de um novo sentido. A fonte dos brotos, do renascer das palavras tinha origem nos pássaros. O poeta encolhera-se e não quis se entregar à santidade da ‘canção do olhar!'

Conclui-se que as coisas, os pássaros não amedrontam a capacidade de entrega do poeta, são cúmplices. Quando se trata de um fluxo inaugural mais límpido, sem substrato, o poeta recua e escolhe a fonte das coisas. Quando a oferta de uma entrega ao próprio jorro inaugurante – a santidade – lhe é oferecido, ele procura a fonte cuja dinamicidade ele conhece. São escolhas processuais e poéticas, ambas inauguram.

7.

A turma viu uma perna de formiga, desprezada,
dentro do mato. Era uma coisa para nós muito
importante. A perna se mexia ainda. Eu diria que
aquela perna, desprezada, e que ainda se mexia,
estava procurando a outra parte do seu corpo,
que deveria estar por perto. Acho que o resto da
formiga, naquela altura do sol, já estaria dentro
do formigueiro sendo velada. Ou talvez o resto
do corpo estaria a procurar aquela perna
desprezada. Ninguém viu o que foi que produziu
aquela desunião do corpo com a perna desprezada.
Algumas pessoas passavam por ali, naquele trato
de terra, e ninguém viu a perna desprezada. Todos
saímos a procurar o pedaço principal da formiga.
Porque pensando bem o resto da formiga era a
perna desprezada. Fomos à beira do rio mas só
encontramos pedaços de folhas verdes carregados
por novas formigas. Achamos a seguir que as novas
formigas que carregavam as folhas nos ombros, elas
estavam indo para assistir, no formigueiro, ao
velório da outra parte da formiga. Mas a gente
resolveu por antes tomar um banho de rio.

Poema em prosa poética?

Continua o mesmo argumento de o poeta atingir o ponto inaugural.

O centro do poema parte de uma coisa muito insignificante e difícil de ser individualizada em meio ao universo/cenário apresentado: “uma perna de formiga, desprezada, dentro do mato”.

Tal achado foi julgado muito importante pela turma, pois ainda se mexia e de acordo com a ludicidade infantil pensavam que ela procurava o resto de seu corpo. Ou ainda este corpo estaria procurando a própria perna.

As conjecturas lúdicas tecem o corpo do poema e fazem tudo girar ao redor de uma coisa minúscula mas julgada muito importante pela turma: a perna desprezada e sem corpo.

Para aumentar a importância do “desimportante”, afirma que várias pessoas passavam por ali e ninguém percebia o achado da turma: a perna da formiga.

O “desimportante” move a turma a descobrir as outras formigas, mas com o jogo completo de pernas. Inauguravam suposições sobre as formigas: “iam as formigas, para o velório da formiga sem perna.”?

Quando a turma percebeu que não iam resolver a questão da perna da formiga desprezada – quando o mundo das formigas ia complicar e tornar-se importante para eles, tomaram uma decisão bem lúdica: “vamos tomar banho no rio!”

Assim o “desimportante” teve seu foco, moveu o “jogo” e retornou a seu ritmo de desimportante; ao passo que a turma escolheu o trivial, outro desimportante, sem complicação: “tomar banho no rio”, onde tudo é gratuito e nada se repete. Ali no banho, cada movimento ou posição na água é sensivelmente mutável e inaugurável.

8.

Fomos rever o poste.
O mesmo poste de quando a gente brincava de pique
e de esconder.
Agora ele estava tão verdinho!
O corpo recoberto de limo e borboletas.
Eu quis filmar o abandono do poste.
O seu estar parado.
O seu não ter voz.
O seu não ter sequer mãos para se pronunciar com
as mãos.
Penso que a natureza o adotara em árvore.
Porque eu bem cheguei de ouvir arrulos de passarinhos
que um dia teriam cantado entre as suas folhas.
Tentei transcrever para flauta a ternura dos arrulos.
Mas o mato era mudo.
Agora o poste se inclina para o chão — como alguém
que procurasse o chão para repouso.
Tivemos saudades de nós.

Este poema apresenta a volta à infância como estado inaugural contínuo, ao jogo com expressão do fortuito e lúdico. O jogo tira a pessoa do compromisso com o reflexivo, com a lógica racional.

A raiz do lúdico, com referência da entrega no jogo é, no poema, o “Poste”, ao redor do qual os jogos aconteciam no tempo inaugural. Tudo, no jogo dos infantes, é inaugural porque, em cada instante, ninguém aprisiona o acontecimento. Qualquer posição ou caminho será novo a cada passo.

O tempo reflexivo e a idade tornaram-no(o poste) precário, em estado de abandono pela falta de vida inaugural ao seu redor.

Está, o poste, em estado de inanição = limo verde, borboletas... que somente se inauguram em seus vôos enfeitados... ao redor do poste agora tudo está parado e sem vida.

O poeta se surpreende com o estado de inanição do poste: “O seu estar parado / O seu não ter voz / não ter mais contato ou referência das mãos!”. Aliás as mãos teriam sua voz e seu valor inaugural de deixar livre ou terminar o jogo mudando de condição: livre/preso.

O poeta inaugura o mundo possível, futurível que poderia ter tido: a voz das mãos seria substituída pelos arrulhos dos pássaros pousados entre suas folhas. A ternura dos arrulhos sonhados / inaugurados também se constituem na fugacidade do imaginar. A mudez retomada do poste inaugura a sua verdade crua: o mato era mudo. Então o poeta mostra-lhe a vocação atual: “o poste se inclina para o chão – como alguém que procurasse o chão para repouso!”

“Tivemos saudades de nós” – inclui-se no fecho do poema a saudade do brilho do poste e da vida ao seu redor. O inaugural proporcionou um retorno à infância como tempo ideal para se viver no enlevo lúdico, na sucessão do impensado e do não calculado. Vivia-se a entrega ao momento que tecia a alegria e a expansão inaugural de cada um na imprevisibilidade do inocente jogo de meninos. Estes se encantavam tendo como referência o poste. Hoje o carcomido poste trouxe a beleza do tempo em que a entrega à vida acontecia sem pejo. Em tal época a vida resplandeceu... Agora sua memória a trouxe com sentimento de saudade.

9.

E agora
que fazer
com esta manhã desabrochada a pássaros?

O poema celebra a vida em flor viva, de pássaros; estes são capazes de escrever aquilo que ainda não foi vivido e reinventar a vida a cada momento. Dessa forma a manhã de per si já é um florescimento e aqui se abre em flor de pássaros que embelezam o dia e o mundo. O encanto do poeta não tem resposta, fica meio perplexo e interroga-se com vontade de segurar o momento. Assim a pessoa se expõe ao encanto, deixa-se enlevar e percebe que o momento se eterniza dentro dele, mas não o pode reter, será sempre “esta manhã desabrochada a pássaros?” Sempre perdurará a interrogação no anseio de a passar a todos que não a viram desabrochar. Somente o poema será o registro desta beleza.

Fonte:
Portal das Letras - Pe. Afonso de Castro
http://www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/livros/analises_completas/p/poemas_rupestres

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