sábado, 10 de dezembro de 2011

Manoel de Barros (Poemas Rupestres) Parte IV


6.

NA GUERRA

Prefeito despachou estafeta a cavalo com
uma carta ao Imperador.
A carta anunciava a invasão da cidade por
tropas paraguaias
E pedia recursos.
Dois meses depois o estafeta entregava a
carta ao Imperador.
Quando os recursos chegaram os paraguaios
não estavam mais.
Levaram quinze moças louçãs e um pouco
de mantimentos
Para comer na viagem.
Acho que comeram tudo.
(Corumbá é uma cidade cuja população
é bem mesclada de paraguaios.)

Poema narrativa e piada. Jocosamente o poema constrói, valendo-se da história de uma narrativa com forte carga de “ambigüidade”; centraliza-se o sentido no verbo “comer” - Também quer explicar a origem de tantos corumbaenses de ascendência paraguaia.

A leveza do poema une as partes e sustenta a evidente conclusão histórica!

7.

NO SÍTIO

A gente morava no Sítio, duas léguas da Capital.
Na estrada de terra que passava no Sítio só tinha
três vacas vadias, três cabras vadias, um
bandarra velho e a égua Floripa.
Meu avô queria passear na Capital.
Mandou encilhar Floripa. E saiu.
No meio da estrada o avô desamontou para verter
água. Verteu.
No intervalo Floripa virou a cara pro lado do
Sítio. E parou.
Meu avô amontou de novo e apertou a marcha.
Logo Floripa estacou em frente de nossa casa.
Meu avô entrou e disse: Gostei de ver a Capital.
Já tem até vaca na rua!
É fruto de progresso.
Floripa estava parece que rindo na porta.

De forma semelhante ao poema anterior, o poeta constrói o percurso deste a partir da ambigüidade da expressão “virar a cara” e determinar o fecho do poema conforme às circunstâncias da viagem do avô que a tornaram meio histriônica.

Talvez outra expressão que alicerça o sentido hílare do poema surge na afirmação do avô:

-“Gostei de ver a capital!”. Essa circunstância tem o seu valor correlacionado à cultura rural do Pantanal em tempo de fundações das fazendas. Época em que predominando uma cultura rural, “ver a capital!” serviria para confrontar e suscitar intercâmbio de perspectivas. O poema conota essas perspectivas culturais.

8.

OS DOIS

Eu sou dois seres.
O primeiro é fruto do amor de João e Alice.
O segundo é letral:
E fruto de uma natureza que pensa por imagens,
Como diria Paul Valéry.
O primeiro está aqui de unha, roupa, chapéu
e vaidades.
O segundo está aqui em letras, sílabas, vaidades
Frases.
E aceitamos que você empregue o seu amor em nós.

Este poema, em tom jocoso, descreve ou apresenta como o autor se vê.

No confronto consigo mesmo, ser poeta aponta duas vertentes e tenta explicitar a constituição de cada uma. Apresenta suas origens paternas e suas origens poéticas interligadas indistintamente em seu ser, em sua pessoa. Pai e mãe lhe deram a vida humana; talvez Paul Valéry lhe tenha dado o rumo da construção de seu ser poeta: “uma natureza que pensa por imagens”.

O filho de João e de Alice se vê como pessoa qualquer. De roupa e chapéu e vaidades. Ao passo que descendente de Paul Valéry ou das imagens, se vê cheio de letras e palavras. Ambos têm em comum uma propriedade que não se vê mas confere qualidade e postura, ambos estão cheios de vaidades.

Esse elo entre os dois segmentos do poeta traz-lhe consistência e fortalece-lhe o desejo de ser forte em ambos: ser um homem vaidoso e um poeta vaidoso. A vaidade é sua consistência.

Ele o confessa com leveza e muita ironia. Neste ato vê-se também com complacência e agrado; não hesita e reitera a força da vaidade humana e poética que o anima: “Aceitamos que você empregue o seu amor em nós!”

Neste poema existe uma confissão velada da vaidade que anima o poeta – em especial a vaidade surge, alimenta-se do reconhecimento obtido e do esperado.

Tanto o homem como o poeta confessam-se vaidosos. Assume a vaidade de modo ambíguo e universal; declara-se também vaidoso, mas com uma pitada de auto-ironia!

9.

TEOLOGIA DO TRASTE

As coisas jogadas fora por motivo de traste
são alvo da minha estima.
Prediletamente latas.
Latas são pessoas léxicas pobres porém concretas.
Se você jogar na terra uma lata por motivo de
traste: mendigos, cozinheiras ou poetas podem pegar.
Por isso eu acho as latas mais suficientes, por
exemplo, do que as idéias.
Porque as idéias, sendo objetos concebidos pelo
espírito, elas são abstratas.
E, se você jogar um objeto abstrato na terra por
motivo de traste, ninguém quer pegar.
Por isso eu acho as latas mais suficientes.
A gente pega uma lata, enche de areia e sai
puxando pelas ruas moda um caminhão de areia.
E as idéias, por ser um objeto abstrato concebido
pelo espírito, não dá para encher de areia.
Por isso eu acho a lata mais suficiente.

Idéias são a luz do espírito — a gente sabe. Há idéias luminosas — a gente sabe.
Mas elas inventaram a bomba atômica, a bomba
atômica, a bomba atôm.................................
........................................................... Agora
eu queria que os vermes iluminassem.
Que os trastes iluminassem.

No título estampam-se os horizontes que o poeta quer para o poema: a matéria mais ínfima e a transcendência. Se o traste recebe esta denominação oriunda do cenário das atividades do homem quando se posiciona perante si, perante a natureza e perante os outros homens, com algo que não mais vai lhe servir. Assim o homem capaz de se construir como tal, referencia-se também com algo que está além dele e a que atribui todo o poder que o transcende. Dessa forma esse horizonte que transcende é tomado e integrado ao traste, a tudo aquilo que o homem já desprezou. Assim se compreende o título TEOLOGIA DO TRASTE – Deus e o traste. Para o homem racional que constrói as idéias e os mundos a partir do abstrato, ele, poeta, contrapõe até o transcendente como imanente ao Traste. Aquilo que é desprezível ao homem cujo padrão principal seja a medida da utilidade, ele contrapõe o desprezível tomado pelo transcendente. Teologia do Traste aproxima os opostos e dignifica o traste conferindo-lhe sublimidade à sua concretude desprezível; para o poeta acontece assim a reversibilidade dos opostos: o que é desprezível torna-se sublime e consagrado como tal pelo poder de Deus que, principalmente e ali, está presente conferindo a sublimidade das mudanças e transformações visíveis não racionais. Para o poeta acontece a reversibilidade dos padrões: o racional pode ser poderoso mas não consegue ter a força do traste em contínua mutação visível.

Tudo o que é traste é objeto da estima do poeta que confessa sua fraqueza pelas latas em estado de deterioração. Define-as ironicamente a partir dos conceitos racionais: “Latas são pessoas léxicas pobres porém concretas!” Aqui a palavra que segura o sentido — “Pessoas léxicas”— como sendo pessoas capazes de estabelecer relações e capazes de criar sentidos ou significados a partir da razão, ao se referirem às latas, se empobrecem, uma vez que não sabem tirar metáforas do concreto.

As pessoas que gostam de latas são os amigos do poeta por serem simples: mendigos, cozinheiras ou poetas. Esse é o horizonte de valor proposto pelo poeta. Proclama outra capacidade inerente às latas: “elas são muito suficientes”! ou mais suficientes que as idéias. Seguindo o poeta o seu raciocínio, demonstra que os objetos concebidos pelo espírito não podem ser “pegos” pelos mendigos ou cozinheiras, ao passo que as latas são melhores que as idéias porque “A gente pega uma lata, enche de areia e sai puxando pelas ruas moda um caminhão de areia.” Ao passo que as idéias não podem ser tomadas e serem transformadas como uma lata que pode virar ou se transformar em um caminhão de areia. O abstrato das idéias uma vez estabelecido não se muda ou se transforma, ao passo que uma lata pode se transformar naquilo que um inventor como o poeta a quiser transformar. Assim declara o poeta: “Por isso eu acho a lata mais suficiente”... pode-se fazer com ela um mundo lúdico e de felicidade. Ao passo que as idéias utilitárias podem ser o berço de uma bomba atômica, o que é muito desastroso.

Por outro lado, afirma que “Idéias são a luz do espírito” e imediatamente contrapõe sua posição quanto à luz do espírito: “Eu queria que os vermes iluminassem./ Que os trastes iluminassem.” Pois estes não construiriam, mesmo iluminados, a bomba atômica. Os vermes sabem oferecem um mundo mais transformador e iluminado. Inaugurado em muita luz na simplicidade que um traste é capaz de anunciar.

O poeta aqui retoma o seu tema predileto em livros anteriores: tudo o que for desprezível é bom para a poesia. Assim as pequenas coisas, o traste e os objetos desprezíveis são ótimos para um sentido muito amplo da vida, servem para se contemplar a criação, a invenção poética.

10.

GARÇA

A palavra garça em meu perceber é bela.
Não seja só pela elegância da ave.
Há também a beleza letral.
O corpo sônico da palavra
E o corpo níveo da ave
Se comungam.
Não sei se passo por tantã dizendo isso.
Olhando a garça-ave e a palavra garça
Sofro uma espécie de encantamento poético.

O poema "GARÇA" exemplifica a relação do poeta com as palavras. Usa a natureza, a própria ave como ponto referencial da palavra; a elegância da ave se consubstancia na ‘beleza letral' da palavra. Para o poeta as belezas se comungam e transferem a arte, a beleza ou leveza do ser para o ser do poema com a elegância e altivez de uma ave/garça.

Ao descobrir a integração do belo no verbo e na ave o poeta confessa seu estado de gozo estético ou encantamento. Tanto uma como a outra são portadoras de uma configuração com que preenchem as exigências da verdade de suas belezas ou de uma única beleza simbiótico-verbal.

Para que esse encantamento acontecesse alguns traços se intercalam e compõem o cenário integrado expressivo do belo. Se por um lado a garça/ave se lança ao olhar com altivez, postura e leveza, por outro apresenta presteza, atenção, elegância e certa ferocidade com que, através do bico longo e pontiagudo, ataca a presa com rapidez, precisão e elegância. A garça permanece em sua postura de distinção, de solenidade e de traços muito bem precisos, não se inserindo no cenário com simulações, ao contrário, com sua silhueta muito clara e talhada, escultural.

Da mesma forma a palavra GARÇA tem uma base bem clara e definida os sons de suas duas vogais elementares e abertas; esses ‘as' dão suporte à palavra em termos de extensão e abertura. A pronúncia da palavra sustém a boca em estado de abertura e a imaginação em ângulo que abarque o universo ou o horizonte. Da mesma forma o ‘g' – minúsculo – combina com a esbelteza e altura anatômica da ave; o som do ‘ç' pode indicar um apoio e suavidade, ao passo que o ‘r' pode indicar a sua qualidade de rapina. O ‘r' combina com capacidade de matar para sobreviver, associa-se à qualidade de “rapina” e integra o sentido e a beleza da garça que, por sua vez, também tem que pescar, matar o peixe ou caramujo para sobreviver.

A fonética, a estrutura gráfica e a ave criam um conjunto que ofereceu-se à contemplação do poeta e ele ficou enternecido: “Sofro uma espécie de encantamento poético.” Em outras palavras, entregou-se ao belo que se oferecia à sua imaginação contemplativa da natureza. O poema é o registro estético dessa revelação mediante o trabalho do poeta.

11.

NO ASPRO

Queria a palavra sem alamares, sem
chatilenas, sem suspensórios, sem
talabartes, sem paramentos, sem diademas,
sem ademanes, sem colarinho.
Eu queria a palavra limpa de solene.
Limpa de soberba, limpa de melenas.
Eu queria ficar mais porcaria nas palavras.
Eu não queria colher nenhum pendão com elas.
Queria ser apenas relativo de águas.
Queria ser admirado pelos pássaros.
Eu queria sempre a palavra no áspero dela.

O título do poema exemplifica o seu desenrolar, ou exemplifica a maneira como o poeta trata as palavras que lhe chegam de mansinho em sua mente. ASPRO é resultante de um processo de síncope da palavra ÁSPERO. Justamente tudo que é áspero pode ser trabalhado ou polido ou transformado em algo mais vistoso ou mais elegante ou ainda em algo que corporifique o belo possível.

A forma bruta é áspera ao se pensar em madeira, pedra, terra, argila, massa ou qualquer outra matéria em estado informe; dessa maneira deseja o poeta encontrar o âmago da palavra. Não quer a palavra polida, acertada ou enfeitada por adjetivos, laços ou fitas, lantejoulas ou purpurina, deseja encontrar a palavra já usada ou em estado bruto, rude, elementar. Se não a encontra em ‘estado de dicionário', cheia de formalidades, mas rica de traçado originário, em outros poemas o poeta até que se deixa levar por essa oferta. Ainda uma terceira seara de palavras pode ser agradável ao poeta: quando encontra as palavras em estado de abandono, de traste ou de lixo, em decomposição... Ele as redime dando-lhes novos significados pertinentes de alma ou de suas raízes, ou ainda colocando-as em contato com o estado de deterioração deixando-as se contaminarem por escórias de toda sorte, incute-lhes um vigor rústico e lúdico advindo da terra, da força mutacional de qualquer ser em estado de transformação e que se deixa contaminar por uma força gratuita que recebe por obra e serviço do poeta. Para isso ele se coloca em estado de trabalho e de luta, sua em cima das palavras para que elas adquiram novo vigor em contato com o lixo do ‘desaprender' que o poeta lhe oferece como um prato de lentilhas... Elas se deixam levar por esse mosto sedutor e se dispõem a seguir o jogo do poeta que as trata e lhes revigora o sentido.

Este título é o exemplo de como ele tirou a nobreza, altivez medieval de uma palavra proparoxítona para torná-la comum, mais curta, humilde e mais crua, rompante e cortante. Tirou-lhe a solenidade para torná-la crua, aspra, como que cortante.

Fonte:
Portal das Letras - Pe. Afonso de Castro
http://www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/livros/analises_completas/p/poemas_rupestres

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