sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Marly de Oliveira (Antologia Poética)

CERCO DA PRIMAVERA

5.


Molhava os cabelos negros
nas águas da noite, quando
cheio de sombra acendeste
uns olhos cor de limão,
iluminando o silêncio
com o simples tocar de mão.

Um rumor de vinho claro,
de bocas e mãos unidas
e um cheiro de mel e flor,
rasparam, ai, como espada,
meu corpo cheio de noite
e o teu, perdido de amor.

Por certo que não queria,
mas tinha a cintura e jeito
ao teu abraço achegados,
e na sombra relumbrava
a água verde dos teus olhos
nos meus cabelos molhados.

Tremores de vento e lua
encabritavam-me o sangue,
e penas de sal e fogo
talavam o silêncio escuro,
ferindo nossas cadeiras
e amarfanhando o chão duro.

Em frio e fogo de amor
apenas luz se alongaram
curvados talhes desnudos.
E nas sombras o silêncio
agitava como franjas
seus longos braços agudos.

RETRATO

Deixei em vagos espelhos
a face múltipla e vária,
mas a que ninguém conhece
essa é a face necessária.

Escuto quando me falam,
de alma longe e rosto liso,
e os lábios vão sustentando
indiferente sorriso.

A força heróica do sonho
me empurra a distantes mares,
e estou sempre navegando
por caminhos singulares.

Inquiri o mundo, as nuvens
o que existe e não existe,
mas, por detrás das mudanças,
permaneço a mesma, e triste.

               De Cerco da Primavera (1958)

EXPLICAÇÃO DE NARCISO

1.

A carne é boa, é preciso louvá-la.
A carne é boa, não é triste ou fraca.
O que a atinge é a fraqueza que há num homem,
a tristeza, maior que um homem, mata-a.
A carne nada tem, salvo o seu sono,
barro tranqüilo de harmoniosa forma,
corpo que distraídos animamos,
fonte real de toda a nossa glória.
A carne é o instrumento do princípio,
é por ela que eu vivo, que vivemos,
e se revela o amor como é preciso;
o que está fora se une ao que está dentro,
alma e corpo no corpo confundidos,
e a sensação completa de estar vendo.

18.

Num tempo alheio ao tempo, a sós comigo
mais uma vez diante de mim, me escuto:
o meu rebanho ficou longe, longe,
e sou pastor apenas do meu luto.
Mana de mim como um silêncio o amor,
e uma angústia, uma estrela em que me escudo
extremamente para não morrer,
de meus próprios recursos inseguro.
Que saudade de mim me vem agora
quando revejo a fonte com seu brilho
onde meu rosto urgia um tempo-outrora!
Permanência do amor ou desafio
ao tempo, no âmago de mim se vota
um sol eterno e cada vez mais frio.

               De Explicação de Narciso (1960)

A SUAVE PANTERA

1.

Como qualquer animal,
olha as grades flutuantes.
Eis que as grades são fixas:
Ela, sim, é andante.
Sob a pele, contida
— em silêncio e lisura —
a força do seu mal,
e a doçura, a doçura,
que escorre pelas pernas
e as pernas habitua
a esse modo de andar,
de ser sua, ser sua,
no perfeito equilíbrio
de sua vida aberta:
una e atenta a si mesma,
suavíssima pantera.

11.

Como no fundo da ostra a pérola
ela se deita veludosa,
mas anda com patas rebeldes
seu coração com uma glória.
Tem um ritmo de silêncio
a força com que ele desprega
as patas a cada momento,
numa espécie de ânsia secreta.
Violento é o sono do seu corpo,
mas sem aspereza nenhuma,
igual à queda de uma coifa
brusca e silente na verdura,
sem direção, igual à paina
mas uma paina concentrada,
mas uma paina vigorosa,
seu sono cego, cheio de asas.

               De A Suave Pantera (1962)

O SANGUE NA VEIA
25.

Escrevo; logo, sinto, logo, vivo,
e tiro-lhe ao viver a indisciplina
que o espraiaria, que o dispersaria,
e dou-lhe a minha forma comedida,
a que tem o tamanho de um amor
que eu guardo, que não gasto, não disperso;
amor que se concentra em dura pérola,
não pétala, não isto que é um excesso,
pois que pode voar; o que me fica
de tudo o que acontece e não se altera,
de tudo o que acontece e me escraviza,
e do que escravizando me liberta.
Escrevo; logo, sou quem se domina,
e quem avança numa descoberta.

               De O Sangue na Veia (1967)

XVI

                              À Mônica (aos três anos)

Um súbito silêncio enfreia a mágica
aventura de estar entre os objetos
que apenas reconhece. Ela adormece
a meus pés como um gato, um bicho quieto,
com doçura felina, suave e intensa,
recolhida em si mesma contra o frio
da noite. Ela me é, me dorme no seu sono,
desdobrada de mim, além de mim,
que a recebi sem entender, atenta
ao milagre de vida de que fui
receptáculo apenas, serva mansa,
e em tudo obediente à natureza.
Dorme a meus pés, e meu amor reinventa-se
vendo-a tão calma assim, tão sem defesa.

               De Contato (1975)

Clarice

XVIII.

Revejo seu rosto nos vários retratos:
cada um capta algo, nenhum a totalidade
do que ela foi, do que é ainda,
a cada instante outra/renovada.
Eu sei que ela tocou no escuro o Proibido
e conheceu a Paixão
com todas as suas quedas.
Quem esteve a seu lado sabe
o que é fulguração de abismo
e piscar de estrela na treva.

               De Aliança (1979)

Alguns poemas

11. 
Um dia vou ser apenas uma biografia.
Nem isso, talvez, uma inscrição
numa pedra qualquer,
no pó que o vento leva,
na memória inconstante dos que amei
de forma certa.

29. Ser poeta não é ambição minha,
diz Pessoa,
é a minha maneira de estar sozinho.
É também a maneira de esquivar-me
à ação, eu acrescento,
subjugada por forças poderosas,
enquanto o pensamento
cava fundo
no abismo.

30. A função do poema: conhecer,
A função do teorema: desafio
que leva à abstração, à conjetura.
A função da esperança: convencer
que o poema, o teorema, a ciência, a invenção,
o semáforo, a história, a explosão
de Hiroshima; Picasso e sua glória;
o decalque, a estrutura, a rachadura,
a ruptura, a eternidade, a desmemoria;
a ignorância, a pobreza, a riqueza,
a insuficiência, a morte têm sentido.

INSCRIÇÃO

Eu. E diante da vida,
com meu azul intacto,
Um esbatido de pássaros.
Alto no vento. Grato.

A sensação de ser
só, uno, um, completo.
No redondo das horas,
pleno, lúcido, cego.

O que de mim salvando
se vai a cada instante,
nesse morrer diário
e sucessivo: um canto.

TRÊS POEMAS DE OUTUBRO

1. 
Lume, teu rosto,
agudo e novo
como um descobrimento,
E tuas mãos silêncio,
como noturno fruto
pendido sobre mim.
Eu em ti,
com meus arroubos de ave,
mas sem querer partir.

2. 
Quando às vezes te assalto
com meu querer noturno,
ébrio de mãos e beijos,
não é alguém que busca
o limiar de um lábio
ou vinho, para a mesa.
Alguém de copo em mão,
no umbral da tua porta,
o infinito suposto
quer, para além do umbral
e para além da porta.

3. 
No céu inteiro penso,
amplo de vôos límpidos
e bicos musicais,
torso desnudo e azul
como o de um pombo triste,
nuvens como asas doces,
de um corpo altivo e elástico.
No espaço em que naufrago,
onde as horas não querem
portais ou tetos, penso,
quando te chamo pássaro.

MORTE

E lutarás comigo,
fresca ainda de vento,
presa às luzes do dia
pelos cabelos últimos.
Quebrantarás meus olhos,
sei.
Apagarás as mãos
para a ternura,
para o amor,
também sei.
E alçarás a distância
entre mim e quem amo,
imperdoável.
E me terás por fim.
Mas se entrega, dura.
Mais que difícil,
fria.

ELEGIA
 
Teu rosto é o íntimo da hora
mais solitária e perdida,
que surge como o afastar-se
de ramos, brando, na noite.
Não choro tua partida.

Não choro tua viagem
imprevista e sem aviso.
Mas o ter chegado tarde
para o fechar-se da flor
noturna do teu sorriso.

O não saber que paisagens
enchem teus olhos de agora,
e este intervalo na vida,
esta tua larga, triste,
definitiva demora.
Fontes:
Carlos Machado. Poesia.net – numero 272 – ano 10. www.algumapoesia.cdm.br
http://marlydeoliveira.blogspot.com/search/label/CERCO%20DA%20PRIMAVERA

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