sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Monteiro Lobato (Reinações de Narizinho) Aventura do Príncipe – I – O Gato Félix

Num dia de sol muito quente Lúcia e Emília sentaram-se à sombra da jabuticabeira, à espera de Pedrinho que fora ao mato cortar varas para uma arapuca. Longo tempo estiveram as duas recordando as festas do casamento, terminadas dum modo tão estranho em virtude da eterna gulodice de Rabicó. De repente, um miado de gato.

Narizinho admirou-se, porque não havia gatos no sítio.

— Emília — disse ela de ouvido à escuta — este miado está me parecendo miado do gato Félix...

Era a primeira vez que a boneca ouvia falar em semelhante personagem.

— Quem é esse cidadão? — indagou.

— Oh, é um gato que você nem imagina que gato é, de tão inteligente e reinador! Mete-se nas maiores aventuras, aparece nas fitas de cinema, pinta o sete. Ninguém pode com a vida dele. O gato Félix sai vencendo sempre.

— Nem Tom Mix?

— Tom Mix vê o gato Félix e bota-se!...

Emília deu um suspiro.

— Ai, ai! Era com uma pessoa assim que eu desejava ser casada...

Nisto uma cara de gato apareceu numa moitinha próxima, a olhar para as duas com muita curiosidade.

— É ele mesmo! — exclamou a menina. — Juro que é o Félix!... e fez pshuit, pshuit...

O gato saiu da moita, vindo com toda a sem-cerimônia sentar-se no colo dela. Narizinho alisou-lhe o pêlo e indagou:

— Como é que anda por aqui, Félix? Pensei que morasse nos Estados Unidos.

— Ando viajando — respondeu ele. — Estou correndo mundo para fazer um estudo sobre ratos. Quero saber qual o país de ratos mais gostosos. Até no fundo do mar já estive, onde me empreguei numa corte muito bonita de um tal príncipe Escamado.

— Que bom! — exclamou a menina batendo palmas. — Não sabe que me casei com esse príncipe?

— Sei, sim. Ele mesmo me contou. Por sinal que anda morto de saudades da menina.

— E não me mandou nenhum recado?

— Mandou, sim. Mandou dizer que hoje, sem falta, vem ao sítio de dona Benta fazer uma visita à sua querida esposa. Quer matar as saudades e também conhecer sua vovó.

— Sua de quem? Minha ou dele?

— Sua e dele. O príncipe chama dona Benta de vovó.

Narizinho enterneceu-se.

— Vê, Emília? Vovó virou avó dele também... Que amor!

E voltando-se para o gato:

— Mas vem hoje mesmo ou é um modo de dizer?

— Vem, sim. Quando saí de lá, o príncipe estava aprontando a malinha de viagem, com o coche de gala já à espera na porta.

— Como é a malinha dele? — perguntou a boneca.

— Não meta o bedelho, Emília — advertiu Narizinho. — Antes vá avisar vovó e tia Nastácia da visita do príncipe. Mexa-se...

A boneca amarrou o burrinho, pois estava curiosa de ouvir a conversa do gato, e foi andando de corpo mole em direção à casa, sem a menor pressa de chegar. Enquanto isso a menina dizia ao gato:

— Continue, senhor Félix!

— Não me lembro onde estava...

— No coche...

— É verdade. O coche já está à espera dele. Vem o príncipe, vem o doutor Caramujo, vem o Bernardo Eremita, vêm todos.

Narizinho bateu palmas, e de tão contente chegou a dar um beijo no focinho do gato Félix.

— Vai ser uma lindeza! A boba da vovó e tia Nastácia vivem duvidando do que eu conto. Quero só ver a cara delas agora...

Depois chamou a boneca, que já ia meio longe:

— Emília!...

— Que é, Narizinho?

— Para onde vai indo com “tanta pressa”?

— Dar o recado que você mandou.

— Volte, boba! Não viu que falei de mentira? Emília voltou, no seu passinho duro de boneca.

— Escute — disse-lhe a menina. — Vamos hoje pregar uma grande surpresa em vovó e preciso combinar tudo com Pedrinho. Vá chamar Pedrinho. Diga-lhe que venha correndo.

— Chamar de mentira?

— Não! Desta vez é de verdade. E depressa! Vá num pé e volte noutro.

Pedrinho veio e os quatro levaram uma porção de tempo combinando a surpresa que iam pregar na pobre vovó. O gato Félix foi mandado ao encontro do príncipe para avisá-lo da hora justa em que devia chegar. Em seguida Narizinho fez recomendações à boneca.

— A surpresa vai ser no finzinho do almoço. Mas você não pegue a fazer cara de muito sabida, que vovó desconfia.

Chegada a hora do almoço, todos foram para a mesa. Nada se passou de extraordinário até o momento do café. Aí dona Benta fixou os olhos na cara da Emília e disse:

— Estou desconfiada de que vocês estão me armando alguma peça. Esse ar de sonsa da Emília não me engana.

Emília nunca soube fingir. Quando ia fingir, fingia demais e estragava o fingimento. Mas Narizinho sossegou a boa velha.

— Não é nada, vovó. Emília é uma bobinha. Nisto ouviu-se rumor lá fora, seguido de batida na porta — uma batidinha muito delicada, tic, tic, tic...

— Quem será? — exclamou dona Benta, estranhando aquele modo de bater. E gritou para a cozinha: “Nastácia, venha ver quem bate.”

A negra apareceu, de colher de pau na mão. Foi abrir, mas de acordo com o seu costume espiou primeiro pelo buraco da fechadura.

Espiou e ficou assombrada.

— Que é, filha de Deus? — perguntou dona Benta inquieta.

— Credo! — exclamou a preta. — O mundo está perdido, sinhá!...

— Mas que é, rapariga ? Desembuche...

— É uma bicharia, que não acaba mais, sinhá! O terreiro está “assim” de peixe, de concha, de caranguejo, de quanto bichinho esquisito há lá no mar. Até nem sei se estou acordada ou dormindo... — e beliscou-se para ver.

— Eu bem estava adivinhando que ia haver coisa hoje! – disse dona Benta erguendo-se da mesa para espiar também. Arrumou os óculos e, afastando tia Nastácia, olhou pelo buraco da fechadura. E ficou ainda mais assombrada do que a preta ao ver toda a população miúda do mar rodeando a casa.

— Que significa isto? — perguntou voltando-se para Narizinho.

— Não é nada, vovó. É o príncipe Escamado com sua corte que vem nos visitar. Ele quer muito conhecer a senhora.

Dona Benta olhou para tia Nastácia, de boca aberta, sem saber o que dizer.

— Eles são todos muito boa gente — continuou a menina. – Vão passar aqui a tarde e garanto que não desarrumam coisa nenhuma. Vovó pode ficar descansada.

— Mas que idéia, Narizinho, de virar esta casa em jardim zoológico! Onde iremos parar com tais brincadeiras?

— Não deixe, sinhá! — interveio a preta. — Não abra a porta. É tanto bicho esquisito que até estou tremendo de medo.

Narizinho deu uma risada.

— Eles não mordem, boba! São criaturinhas civilizadas e de muito boa educação. A preta não se convenceu.

— Eu sei! — disse ela. — Certa ocasião um caranguejo me ferrou neste dedo que até marca deixou. Não consinta, sinhá! Não deixe entrar em sua casa essa bicharia sem jeito.

E foi tratando de botar a tranca na porta. Vendo que a tranca na porta iria estragar todo o seu plano, Pedrinho saiu pelos fundos para entender-se com o príncipe, ao qual disse:

— Vovó e tia Nastácia estão tremendo de medo, sem coragem de abrir a porta. Umas bobas. Pensam que vocês são desses bichos malvados que mordem.

O príncipe, que esperava uma calorosa recepção por parte de dona Benta, ficou muito ressentido.

— Nesse caso prefiro voltar — disse com dignidade. — Não me julgo com direito de perturbar o sossego duma tão respeitável senhora.

— Isso é que não !— retorquiu Pedrinho. — Já que vieram, têm que entrar, quer as velhas queiram, quer não queiram. Se não puderem entrar pela porta, entrarão pela janela. Esperem aí...

E foi correndo buscar uma escada.
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Continua... Aventura do Príncipe – II – Entram Todos

Fonte:
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. I. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa

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