sábado, 3 de dezembro de 2011

Monteiro Lobato (Reinações de Narizinho) Aventura do Príncipe – II – Entram todos

Enquanto tia Nastácia, depois de colocar a tranca na porta, procurava arrastar a mesa para formar uma barricada, o príncipe e sua comitiva iam subindo pela escadinha que o menino trouxera.

Subiram e pularam para dentro da sala. Quem primeiro pulou foi o doutor Caramujo. Tia Nastácia, ainda às voltas com a mesa, ouviu o barulhinho e voltou-se. Deu um berro.

— Acuda, sinhá! Estão pulando pela janela! Olhe quem está atrás de mecê! Um bichinho de óculos, que é um verdadeiro “felómeno...”

Narizinho explicou:

— Não tenha medo, vovó. Este é o doutor Caramujo, o grande médico que fez Emília falar. Tem pílulas para todas as doenças. É até capaz de curar aquele pinto sura que está com estupor.

Dona Benta havia voltado o rosto e visto atrás dela o doutor Caramujo, de óculos, a lhe fazer um cumprimento muito amável. E o seu espanto, que já era grande, cresceu ainda mais ao ver surgir na janela um peixinho vestido de rei.

— Este é o meu esposo, o príncipe Escamado, rei do reino das Águas Claras — explicou Narizinho, fazendo as apresentações. E esta senhora, príncipe, é a minha querida vovó, dona Benta de Oliveira.

Com uma gentil cortesia, o príncipe murmurou, todo amável:

— Tenho muita honra em conhecê-la, minha senhora e peço-lhe permissão para a tratar de vovó também.

A pobre velha por um triz que não desmaiou. Abanou-se muito aflita, uff, uff!... Depois, voltando-se para a negra:

— Ele fala mesmo, Nastácia! Fala tal qual uma gente...

A preta fez o sinal da cruz. Enquanto isso os outros fidalgos da corte foram pulando. Pulou o venerando Bernardo Eremita. Pulou a senhorita Sardinha. Pulou dona Aranha Costureira. Pulou o major Agarra-e-não-larga-mais. Cada um que pulava era um novo berro de tia Nastácia.

— E uma sardinha agora, sinhá! — ia ela exclamando. — E agora uma aranha! E agora um sapo! O mundo está perdido...

Por fim não agüentou mais: disparou para a cozinha. Dona Benta, porém, foi se acostumando, e dali a pouco já não estranhava coisa nenhuma. Começou até a achar uma graça-enorme em tudo aquilo.

— Você tem razão, minha filha — disse ela por fim. – Esse mundo em que você e Pedrinho vivem é muito mais interessante que o nosso.

E ferrou numa prosa comprida com o doutor Caramujo a propósito da doença do pinto sura. Enquanto isso Narizinho ia mostrando ao seu amado príncipe as coisas da sala. Mostrou o relógio da parede, mostrou os pratos do armário, mostrou o pote d’água. O que mais mexeu com o peixinho foi um guarda-chuva que estava a um canto.

— Para que serve isto? — perguntou ele.

— Para a gente não se molhar — respondeu a menina.

— Por que não o levaram, então, na viagem ao fundo do mar?

Tanta graça achou a menina nessa pergunta, que não resistiu à tentação de agarrá-lo e beijá-lo na testa.

— Você é um burrinho, sabe, príncipe? Um amor de burrinho...

Como ignorasse o que queria dizer burrinho, o príncipe não se ofendeu. Depois, notando a ausência do Visconde de Sabugosa e do marquês de Rabicó, pediu -notícias.

— O Visconde levou a breca — respondeu a menina. — Voltou da viagem ao fundo do mar tão encharcado que tive de pendurá-lo no varal de roupa para enxugar. Mas ficou mal pendurado. Deu o vento e caiu e ficou esquecido num canto por muito tempo. Resultado: deu nele uma doença esquisita chamada bolor. Ficou todo verdinho, coberto dum pó que sujava o assoalho. Embrulhei-o, então, num velho fascículo das Aventuras de Sherlock Holmes que andava rodando por aí e o botei não sei onde. Com certeza já morreu...

— Que horrível desgraça! — exclamou o príncipe seriamente compungido. — Logo que voltar ao reino hei de decretar luto oficial por sete dias.

— Não vale a pena, príncipe! O nosso Visconde já andava meio maluco com as suas manias de sábio. Ficou tão científico, que ninguém mais o entendia. Só falava em latim, imagine! Logo chega o tempo da colheita de milho e eu arranjo um Visconde novo.

— E o senhor marquês?

Narizinho teve receio de contar que fora Rabicó o ladrão da coroinha do príncipe. Limitou-se a dizer que como estivesse emagrecendo muito, tia Nastácia o pusera num chiqueiro para engordar.

— Muito simpático o marquês — disse o príncipe por amabilidade. — Também acho muito simpática a senhora marquesa.

— Eu quero tanto bem à Emília — explicou Narizinho – que tenho vontade de desmanchar o seu casamento com o marquês para casá-la com o gato Félix. Emília não está sendo feliz no primeiro casamento.

— Por que, se não é indiscrição?

— Os gênios não se combinam. Além disso, Emília não se casou por amor, como nós. Só por interesse, por causa do título. Emília não é mulher para Rabicó. Merece muito mais. Merece um senhor sacudido e valente como o gato Félix. É verdade que ele está a serviço da corte?

O príncipe mostrou-se surpreso.

— Gato Félix? — disse franzindo a testa. — Não conheço esse freguês...

— Como não, se foi ele quem trouxe a notícia da sua visita, príncipe?

— Não pode ser! Mandei o recado por uma sardinha...

Narizinho ficou a cismar. Lembrou-se de que quando dera o beijo no focinho do gato sentira um cheiro de sardinha. “Querem ver que ele comeu a mensageira do príncipe com o recado e tudo?” — pensou consigo. Nada disse, porém, para não entristecer o seu querido maridinho. E, mudando de assunto, convidou-o a dar uma volta pelo sítio.
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Continua... Aventura do Príncipe – III – Tia Nastácia e a Sardinha

Fonte:
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. I. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa

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