segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Monteiro Lobato (Reinações de Narizinho) Aventura do Príncipe – IV – Os Segredos da Aranha


Dona Aranha, apesar de manca, jamais deixara de acompanhar o príncipe nas suas viagens — nem ela, nem o doutor Caramujo. Médico tem sempre serviço numa viagem e costureira também — um botão que cai, um pé de meia que fura. Por isso dona Aranha também viera.

Trabalhadeira como ninguém, assim que chegou foi logo para o quarto de costuras examinar os apetrechos de dona Benta — a cestinha, a almofadinha de alfinetes, os agulheiros, os carretéis. Só não gostou da máquina.

— Muito pesada e complicada — disse para Emília, que era a mostradeira de tudo.

Vendo-se só com a Aranha, a boneca regalou-se de fazer quantas perguntinhas quis.

— Acho muito bonito esse seu sistema de trazer o carretel dentro da barriga — disse ela. — Só não compreendo como a senhora faz para engolir um carretel...

— Eu não engulo carretéis, menina — explicou a Aranha. – Nós nascemos com o carretel dentro.

— E quando acaba?

— Não acaba nunca.

— Hum! Já sei! A senhora tem fábrica de linha na barriga, não é?

— Deve ser. Nunca entrei dentro de mim para saber.

— Pois eu sei o que há dentro de mim. É só macela. Quando fiquei com a perna seca, tia Nastácia me consertou e eu vi. Ela pôs só macela da bem amarelinha e cheirosa.

— E seu marido, o marquês? — perguntou dona Aranha.

— Também é cheio de macela?

— Creio que não, porque Rabicó é diferente de mim em tudo. Por exemplo: ele come e eu não como. Só como de mentira, por brincadeira.

— Não come? — exclamou dona Aranha muito admirada. — É a primeira pessoa que ouço dizer isso...

— Nunca comi coisa alguma — e sinto bastante, porque comer parece uma coisa muito gostosa. Rabicó quando come arregala os olhos de gosto, e grunhe se alguém se aproxima. A vaca mocha, essa até baba quando come um sabugo de milho.

— Pois lá no mar não existe uma só criatura que não coma. E um come o outro. A gente precisa andar com as maiores cautelas, espiando de todos os lados e escondendo-se quando vê algum peixe. Minha mãe foi comida por uma garoupa.

— Coitada! — exclamou Emília deveras compungida. — E era também costureira?

— Era sim. Todas as aranhas são costureiras.

— E tinha também carretel na barriga? — Está claro. Basta ser aranha para ter carretel na barriga. — E de que cor era a linha?

— A cor não varia. É sempre a mesma para todas as aranhas.

— Que pena! — exclamou Emília triste. — Gosto muito da cor vermelha e se soubesse duma aranha de linha vermelha, iria morar com ela.

— Para quê?

— Para ver. Para sentar debaixo da jabuticabeira e ver aquela linha tão linda que sai, sai, sai e não se acaba mais...

Enquanto Emília ia dizendo suas asneirinhas, dona Aranha, para não perder tempo, cerzia meias. Cerzia tão bem que não havia quem fosse capaz de perceber o cerzido.

Admirada da perfeição do trabalho, Emília disse:

— Se a senhora se mudasse para a cidade havia de ganhar um dinheirão.

— E que faria do dinheiro?

— Oh, muitas coisas! Podia comprar uma casa, podia comprar um guarda-chuva. Pedrinho diz que é muito bom ter dinheiro.

— E ele tem muito?

— Muito! Pedrinho é bastante rico. Tem um cofre com mais de cinco reais dentro.

— E para que quer tantos reais?

— Diz que vai comprar um revólver. Eu, se tivesse dinheiro, sabe o que comprava? Um trem de ferro! Não há nada de que eu goste tanto como o trem de ferro...

— Por quê?

— Porque apita. A senhora já ouviu apito de trem?

Nesse ponto a conversa foi interrompida por um recado de Narizinho, ordenando que Emília se vestisse para sair a passeio.

— Adeus, dona Aranha. Narizinho está precisando de mim. Vai passear conosco ou fica?

— Fico. Estou com fome. Quero ver se apanho umas três moscas.

— Não use vinagre — aconselhou Emília retirando-se. – Tia Nastácia diz sempre que não é com vinagre que se apanham moscas.
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Continua... Aventura do Príncipe – V – Valentias

Fonte:
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. I. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa

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