terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Monteiro Lobato (Reinações de Narizinho) Aventura do Príncipe – V – Valentias

Pedrinho fora dar uma volta com o capitão dos couraceiros vindos para a guarda do príncipe. Esses valentes soldados tiveram ordem de ficar fora da casa, para que tia Nastácia não se assustasse. Pedrinho fez logo boa camaradagem com o capitão, que era grande contador de proezas.

Contou duma terrível luta entre dois espadartes e duas baleias, a que ele assistiu de pertinho. Sua valentia consistira nisso — assistir de pertinho. Contou depois as suas próprias façanhas, lutas com lagostas, ataque a um filhote de peixe-espada.

Pedrinho tinha paixão por histórias de caçadas, guerras, lutas de boxe — aventuras de terra e mar, como dizia dona Benta. Ouvia com interesse as histórias do couraceiro e contava outras. Contou histórias de onças, tigres-de-bengala, leões do Uganda, jacarés do Amazonas.

— E qual o bicho da terra que acha mais perigoso — perguntou o couraceiro, que ignorava completamente tudo que não se referia ao mar. Dizem que é o leão.

— É e não é — respondeu Pedrinho para mostrar que entendia do assunto. — É porque é, e não é porque com uma boa bala na cabeça qualquer caçador dá cabo dum leão. Para mim o bicho mais perigoso é uma tal vespa que quando morde incha o lugar e arde que nem fogo.

O couraceiro não fazia a menor idéia do que fosse uma vespa.

— Mas com uma bala na cabeça qualquer caçador não dá cabo duma vespa? — perguntou.

— Se acertar, sim — respondeu o menino. Mas ainda está para existir um caçador que acerte uma bala na cabeça de vespa.

O couraceiro arregalou os olhos.

— Só se são encantadas...

— Pior que isso. São deste tamanhinho, e voam como umas danadas. Certa vez uma ferrou na ponta da língua de Narizinho. A coitada viu fogo! Vespa, sim, é um bicho danado. Eu, por exemplo, que não tenho medo de coisa nenhuma, confesso que respeito as vespas — e não sinto vergonha nenhuma de dizer isso.

O couraceiro, um dos caranguejos mais gabolas do mar, deu uma risada de desafio.

— Pois eu só queria encontrar-me com uma! Tenho tirado a prosa de muito bichinho valente e tirava a das vespas também.

Pedrinho riu-se.

— Sua valentia vem da couraça, capitão. Tire a casca e venha lutar com uma vespa, se é capaz!

Ofendido com o juízo que o menino fazia dele, o couraceiro replicou:

— Saiba que já me bati com uma grande lagosta e a venci em poucos minutos.

— Grande coisa! Pois eu já dei no Chiquinho Pé-de-Pato, que é o moleque mais temido lá da cidade, e no entanto corro de vespa. Corro e hei de correr, e nunca terei vergonha de contar isso, porque medo de vespa é o único medo que não desmoraliza ninguém.

Estavam nesse ponto quando Emília passou, muito requebrada no seu vestido de teia cor-de-rosa. Ia tão absorvida em altos pensamentos que nem os percebeu.

— Quem é esta senhora?

— Pois é a marquesa de Rabicó, não sabe? Uma das damas mais ilustres dos tempos modernos.

— Hum! — fez o couraceiro lembrando-se. — Se não me engano esteve lá no reino há muito tempo, em companhia de Narizinho. Mas naquela época usava camisola e tinha os cabelos pretos.

— Emília muda muito, não é como vocês que são sempre os mesmos. Cada vez que Narizinho se enjoa da cara dela, muda. Muda tudo. Muda a boca mais para baixo ou mais para cima. Muda as sobrancelhas, muda os olhos. Houve até uma vez em que Emília passou sem olhos cinco dias.

— Como assim?

— Narizinho estava mudando os olhos dela, que são de retrós, e já tinha arrancado os velhos para pôr novos, quando viu que não havia mais retrós no carretel. Até que alguém fosse à cidade e trouxesse mais retrós, a coitada ficou sem olhos, ceguinha num canto, sem enxergar coisa nenhuma...

Apesar de ser um guerreiro de coração duro, o caranguejo murmurou apiedado:

— Coitada! Como não havia de ter sofrido...

— Mas também — continuou Pedrinho — quando a linha veio e Narizinho botou-lhe olhos novos, bem arregalados, Emília tirou a forra. Passou o dia inteiro sem fazer outra coisa senão olhar, olhar, olhar.

— Tem filhos? — perguntou ainda o curioso capitão.

— Não. Narizinho não quer. Emília é sua companheira de passeios e viagens. Se tivesse filhos, teria de ficar em casa, a dar de mamar às crianças, a lavar fraldinhas — e adeus passeios...
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Continua... Aventura do Príncipe – VI – Os espantos do príncipe

Fonte:
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. I. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa

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