terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Monteiro Lobato (Reinações de Narizinho) O Gato Felix – II – A história da Emília

Na manhã seguinte tia Nastácia apareceu dizendo que do galinheiro havia sumido um pinto. Eram doze e só encontrara onze.

— Que será? — murmurou dona Benta.

— Deve ser alguma raposa que anda rondando por aqui ou algum gato vagabundo. E que pena, sinhá! Sumiu justamente o mais bonito, um carijozinho...

Logo que os meninos souberam do caso, Pedrinho disse:

— Vamos armar uma ratoeira, mas o melhor é consultarmos o Visconde. Depois que foi embrulhado naquele folheto das Aventuras de Sherloque Holmes, ficou tão esperto que é capaz de descobrir o ladrão.

Foram falar com o Visconde, ao qual contaram, tudo. O Visconde deu uma risadinha de detetive e disse:

— Deixem o negócio por minha conta. Irei examinar o local do crime para tomar as minhas providências.

E foi. Foi ao galinheiro onde passou o dia a examinar a poeira do chão, a catar os pelinhos que havia nele, a conversar com os pais da vítima — um lindo galo carijó e uma galinha sura. Enquanto isso Emília pensou, pensou e inventou a historinha que ia contar de noite.

Quando chegou a noite e tia Nastácia acendeu o lampião e disse “É hora!”, a boneca entrou na sala, muito esticadinha para trás, toda cheia de si.

— Era uma vez... — foi dizendo.

— Espere, Emília! — advertiu Narizinho. — Não vê que o Visconde e o gato Félix ainda não vieram?

Nisto chegou o gato e sentou-se no colo de dona Benta. Depois apareceu o Visconde, que entrou para dentro da lata.

Emília começou de novo:

— Era uma vez um rei...

— Eu já sabia que vinha história de rei – interrompeu Narizinho. — Emília vive com a cabeça entupida de reis, príncipes e fadas...

A boneca não fez caso e continuou:

— Era uma vez um “rei”, um “príncipe” e uma “fada”, que moravam juntos num lindo palácio de cristal, na beira do lago mais azul de todos. Uma beleza esse palácio, todo cheio de fios de ouro, que quando dava o vento iam para lá e vinham para cá. E quando dava o sol, os cristais e os ouros brilhavam tanto que quem olhava sentia logo uma tontura e precisava agarrar-se a qualquer coisa para não cair. E o príncipe foi e disse:

— Meu pai: quero casar-me, mas as moças daqui não são bonitas, nem boas de coração. Vou procurar uma pastora bem pobrezinha, mas que tenha um coração de ouro.

— Vai, meu filho — disse o rei — mas leva contigo a fada do palácio. Sozinho, não te deixarei ir.

O príncipe chamou a fada, virou a fada numa bengalinha e virou-se a si mesmo numa formiguinha.

— Eu já sabia que vinha história de virar — disse a menina. — Sem reis e sem “viradas” Emília não passa...

— Virou uma formiguinha — prosseguiu Emília — e saiu andando por uma estrada muito comprida, com aquela bengalinha na mão. Andou, andou, andou até que encontrou uma velha.

— Você caçoou de tantos velhos que havia na história do gato Félix mais vai pelo mesmo caminho — disse tia Nastácia.

— Não me atrapalhe! A minha história só tem esta velha. Encontrou uma velha e disse:

— Velha dugudéia, diga-me, se for capaz, se há por aqui uma pastora assim, assim, e de bom coração.

— Há muitas pastoras por aqui. — respondeu a velha — Mas se têm bom coração não sei. Só experimentando.

— E como se experimenta o coração de uma pastora?

— Virando num pobre bem pobre e indo pedir-lhe esmola.

A formiguinha virou logo num pobre bem pobre e foi pedir esmola às pastoras. Chegou-se à primeira, que estava fiando na roca enquanto o seu rebanho pastava, e disse:

— Gentil pastora, uma esmolinha pelo amor de Deus! Há três anos que não como nem durmo, e se não me dás um pão, morro de fome já neste instante.

A pastora deu-lhe uma pedra, dizendo:

— Aqui tens um pão muito gostoso.

O pobre pegou a pedra, olhou, olhou, olhou e disse:

— Que todos os pães que comas sejam gostosos como este! — e foi andando o seu caminho.

Dali a pouco a pastora sentiu fome; foi comer o pão que trazia no bolso e viu que tinha virado pedra, e quebrou todos os dentes e morreu... Mais adiante o pobre encontrou outra pastora e pediu outra esmolinha. A pastora deu-lhe um osso, dizendo:

— Leva este pão, que é muito gostoso.

— Obrigado — respondeu o pobre — e que todos os pães que comas sejam gostosos como este!

E foi andando. A pastora logo depois sentiu fome e foi comer o pão que estava na cesta e viu que tinha virado osso. Essa pastora não morreu de fome, como a primeira, mas teve de passar a vida roendo ossos feito cachorro. O pobre foi andando, andando, andando, até que encontrou uma terceira pastora. A coitadinha parecia ainda mais pobre do que ele e estava chorando.

— Por que choras, ó gentil pastora? — perguntou o pobre.

— Choro porque minha madrasta, que é muito má, me bate todos os dias. Põe-me neste lugar, guardando estes porcos imundos, e não me dá comida a não ser este pão bolorento e tão azedo que até preciso tapar o nariz quando o como.

— Pois se eu pilhasse esse pão — disse o pobre — dava um pulo de alegria, porque estou morrendo de fome e só encontrei pedras e ossos neste país de pastoras.

A triste pastorinha olhou bem para ele e disse:

— Pois não morrerás de fome. Repartirei contigo o meu pão bolorento.

E partiu o pão bolorento em dois pedaços e deu o maior ao pobre. O pobre agradeceu e foi andando, e a pastorinha começou a comer o seu pedaço de pão bolorento. Tapou o nariz e deu a primeira dentada. Mas viu logo que o pão tinha virado no doce mais gostoso do mundo! Comeu, comeu quanto quis; e quanto mais comia mais sobrava. E voltou para casa pulando de contentamento e palitando os dentes. Sua madrasta percebeu a felicidade da pastorinha e disse:

— Ahn! Estou vendo que você comeu alguma coisa muito gostosa!

— Não comi nada! — respondeu a coitadinha tremendo de medo. — Só comi o pão que a senhora me deu.

A madrasta agarrou-a e cheirou-lhe a boca e ficou furiosa e disse:

— Sua boca está cheirando ao doce mais gostoso do mundo, e como me enganou, vou matá-la.

E foi buscar a faca da cozinha, que era deste tamanho!

A pastorinha, sabendo que ia morrer, pôs-se a rezar lá no fundo do coração:

— Pobre encantado, que transformaste o pão bolorento em doce, socorra-me!

Nem bem acabou de o dizer, a porta abriu-se e o pobre entrou.

— Esconde-te — disse a pastorinha — que ela vem vindo com uma faca deste tamanho.

O pobre escondeu-se atrás dum armário e logo depois a madrasta entrou com o facão. Entrou e disse à menina:

— Reze depressa, que vai morrer.

— Não me mate! — gemeu a pastorinha, tremendo como geléia. — Não me mate, porque estou inocente!

Mas a má madrasta não quis saber de nada e avançou para a coitadinha com a faca no ar. E a faca foi descendo sobre o peito da vítima e a ponta já ia encostando nas suas carnes, quando o pobre veio por trás da madrasta e agarrou-a pelo pulso.

— Miserável! — exclamou. — Quem merecia morrer eras tu, mas vou virar-te num horrendo sapo de cidade.

Nesse ponto Narizinho interrompeu-a.

— Por que sapo de cidade, Emília? Que diferença há entre sapo do mato e sapo da cidade?

A boneca explicou:

— É que nas cidades há muitos moleques que gostam de judiar dos sapos, de modo que sapo de cidade padece mais.

Narizinho voltou-se para dona Benta.

— Já reparou, vovó, como Emília está ficando inteligente? Não é mais aquela burrinha de antes, não...

Emília continuou:

— E imediatamente a madrasta virou no sapo mais feio do mundo e saiu pulando, pulando, pulando e foi para uma cidade onde havia mais de cem moleques nas ruas. Então o pobre disse à gentil pastorinha...

— Adeus, gentil pastora! Vou-me embora para longes terras.

— Que pena! — exclamou ela. — Por que não ficas morando aqui comigo? Como és pobre, trabalharei para ti e comprar-te-ei uma roupa nova e uma cartola.

— Interesseira é que ela era! — observou tia Nastácia. – Sabia que o pobre era dos tais que viram pão bolorento no doce mais gostoso do mundo. Eu se fosse o pobre desconfiava...

— Pois o pobre não desconfiou — disse Emília. — Ele não tinha maldade nenhuma no coração; em vez de desconfiar, beijou a mão da pastorinha e disse:

— Pois aceito — mas com uma condição!...

— Dize qual é — ordenou a pastora.

— É casares comigo!

A pastorinha não vacilou um só instante e aceitou a proposta. E no outro dia veio o padre e casou-a.

— Agora — disse o pobre — vamos sair os dois pelo mundo para tirar esmolas.

E saíram. E foram andando, andando, andando, até que chegaram ao palácio do rei. Bateram na porta e entraram e foram falar com Sua Majestade. O rei estava de coroa na cabeça, sentado no seu trono de ouro e marfim, muito triste porque não tinha notícias do amado filho.

— Que é que queres, senhor pobre? — perguntou o rei.

— Quero dar a Vossa Majestade uma boa notícia.

O rei arregalou os olhos, cheio de esperança, e disse:

— Pois fala, e se a notícia for mesmo boa dar-te-ei os mais ricos presentes.

Então o pobre contou que havia encontrado o príncipe e que ele já tinha casado com a moça de melhor coração do mundo inteiro.

— Bravos! — exclamou o rei. — E quando esse amado filho me aparece por cá?

— Ei-lo! — exclamou o pobre, virando-se outra vez em príncipe. — E eis minha amada esposa. — disse batendo com a bengalinha no ombro da pastora e virando-a na mais linda princesa de todas que existiram, existem e existirão.

O rei ficou alegríssimo e beijou a princesa na testa e disse para o príncipe:

— Muito bem! Só resta agora que fiques rei. Adianta-te, meu filho, e vem sentar-te neste trono, ao lado de tão formosa princesa.

Deste momento em diante o rei és tu, e ela a rainha. Já estou cansado e até enjoado de ser rei. Amém.

Assim terminou Emília a sua historinha, inventada por ela mesma, sem ajutório de ninguém, nem tirada de nenhum livro. Todos bateram palmas e dona Benta cochichou para a negra:

— Boa razão tem você de dizer que o mundo está perdido! Pois não é que essa boneca aprendeu a contar história que nem uma gente grande?

— Mas eu não gostei! — disse o gato Félix, que andava a implicar se com a boneca. — Histórias de virar são muito fáceis. Assim que aparece uma dificuldade, isto vira naquilo e pronto!

— Não acredite, Emília! — gritou Narizinho. — A história que você contou está muito boa e merece grau dez. Para uma boneca de pano, e feita aqui na roça, não podia ser melhor.

Emília, toda ganjenta com o elogio, botou a língua para o gato Félix. Nisto o relógio da sala bateu dez horas.

— Vamos dormir, criançada — disse dona Benta — e amanhã quem vai contar uma história é o Visconde.

No dia seguinte tia Nastácia veio dizer que havia desaparecido outro pinto. Dona Benta ficou muito aborrecida; viu que naquele andar lá se ia a ninhada inteira.

— E Pedrinho? — indagou. — Que é que Pedrinho diz a isto?

— Ele e o Visconde andam lidando, lidando, lá no galinheiro, mas até agora não descobriram nada.

Pedrinho estava naquele momento em conversa com o Visconde no quintal.

— Na minha opinião — dizia ele — isto é alguma raposa que vem visitar o galinheiro de noite.

— Pois eu acho que não é raposa nenhuma — afirmou o novo Sherlock Holmes. — Examinei tudo muito bem examinado, e encontrei um pêlo de animal que não é raposa nem gambá, nem ratazana.

— Que é então?

— Ainda não sei. Tenho que examinar esse pêlo ao microscópio e preciso que você me faça um microscopinho.

— Vovó tem um binóculo. Quem sabe se serve?...

— Há de servir. Vá buscá-lo. Pedrinho foi e trouxe o binóculo de dona Benta. O Sherlock pôs o pelinho em frente do binóculo e examinou-o atentamente. Depois disse:

— Acho que estou na pista do ladrão...

— Quem é?

— Não posso dizer ainda, mas é um bicho de quatro pernas da família dos felinos. Vá brincar e deixe-me só por aqui. Preciso “deduzir” e pode ser que de noite já esteja com o problema resolvido.

Pedrinho foi brincar, deixando o Visconde mergulhado em profunda meditação. Estava um dia muito lindo, de sol quente. Dona Benta sentou-se na sua cadeira de pernas serradas a fim de acabar um vestido de Narizinho e a menina ficou ao seu lado para enfiar a agulha e virar a máquina. E Emília? Emília, na varanda, balançava-se numa pequena rede especialmente armada para ela num canto. A boneca estava pensando na vida, e com idéia de virar escritora de histórias. Nisto o gato Félix, que ia passando, resolveu parar. Sentou-se sobre as patas traseiras e cravou os olhos na boneca, enquanto sua cauda ia desenhando um preguiçoso “S” no ar.

— Que tanto olha para mim? — disse de repente Emília. – Nunca me viu?

O gato fez um riso de ironia e miou:

— Tão importante assim, nunca! Parece que está mesmo convencida de que é uma grande contadeira de histórias.

Emília deu um balanço na rede e murmurou:

— A inveja matou Caim!...

O gato mordeu os lábios e replicou com ar de desprezo :

— Era só o que faltava, o célebre gato Félix ter inveja duma boneca de pano feita por uma negra velha...

— A inveja matou Caim! — repetiu a boneca. — Você está mas é danado com o grande sucesso da minha historinha.

— História mais feia e sem graça nunca vi...

— Mas todos gostaram, até Narizinho, que sabe todas as histórias dos livros.

— Gostaram de dó de você. Se não gostassem, você punha-se a chorar que não acabava mais.

— Mentiroso! Eu nunca chorei nem hei de chorar, e muito menos por causa de uma simples brincadeira. Você é um grandessíssimo mentiroso, sabe?

— Por quê?

— Porque é! Você não é americano, nem nasceu em nenhum arranha-céu, nem é parente do Gato de Botas, nem foi engolido por tubarão nenhum. Tudo isso não passa de potoca. Eu sei conhecer muito bem quando uma pessoa está mentindo ou falando a verdade...

O gato ficou furioso e quis arranhar Emília. A boneca deu um berro e chamou Narizinho.

— Que é, Emília? — indagou a menina aparecendo. – Que aconteceu que está tão danadinha?

Emília ergueu-se da rede, colérica, e apontou para o gato.

— É esse cara de coruja que está querendo me arranhar! Já se viu que desaforo?

— E por quê? Por que é que vocês brigaram?

Emília empertigou-se toda.

— Ele está morrendo de inveja da minha história e veio aqui me procurar. E como eu disse que ele não é americano, nem parente do Gato de Botas, nem foi engolido por tubarão nenhum, o burrão quis arranhar-me. Esse hipopótamo!...

O gato virou-se para Narizinho:

— Veja bem quem é que está insultando. Se eu sou hipopótamo, que é ela? Uma macaca!...

Aquilo era demais. Emília perdeu a cabeça, avançou para o gato Félix, agarrou-lhe a barba e deu tal puxão que arrancou um fio. A menina apartou os briguentos; pôs o gato para fora e deixou Emília sozinha na varanda. Emília ficou falando consigo mesma, pensando num meio de vingar-se do gato Félix. Nisto apareceu o Visconde.

— Senhor Visconde, venha ouvir a história da minha briga com o gato Félix.

O Visconde sentou-se na rede junto dela e ouviu a história inteira. Quando chegou no ponto do fio da barba que Emília havia arrancado ao focinho do gato, indagou :

— E onde está o fio? Como ando fazendo um estudo sobre pelos de animais, teria muito gosto em examinar esse.

Emília abriu uma caixinha, tirou de dentro o fio de barba e deu-o ao Visconde, dizendo:

— Leve, mas depois traga-o outra vez. Quero guardar esse fio como prova da esfrega que dei naquele cara de coruja...

O Visconde tomou o fio e foi examiná-lo com o binóculo de dona Benta.
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Continua... O Gato Felix – III – A história do Visconde

Fonte:
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. I. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa

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