quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Monteiro Lobato (Reinações de Narizinho) O Gato Felix – III – A história do Visconde


Logo que a noite caiu, tia Nastácia acendeu o lampião da sala e disse: “É hora, gente!” Todos foram aparecendo e cada qual se sentou no lugar do costume. O último a vir foi o Visconde. Antes de entrar para a lata, aproximou-se de tia Nastácia e disse-lhe ao ouvido:

— Pegue na vassoura e ponha-a ao alcance de sua mão.

A negra achou esquisitíssima aquela idéia e pediu explicações.

— Não posso explicar coisa nenhuma — respondeu o Visconde. — Mas faça o que estou pedindo. Ponha a vassoura bem ao alcance de sua mão, porque no fim da minha história é bem possível que seja preciso “varrer” qualquer coisa...

A negra trouxe a vassoura e fez como o Visconde mandou, embora não pudesse nem por sombra adivinhar quais fossem as suas intenções. Liquidado o caso da vassoura, Emília disse:

— Tem a palavra o senhor Visconde de Sabugosa!

O Visconde ergueu-se dentro da lata, tossiu um pigarrinho e começou:

— Meus senhores e minhas senhoras!

O gato Félix espremeu uma risada irônica.

— Isso nunca foi história, senhor Visconde! Isso chama-se discurso e muito bom discurso. Pelo que vejo, ninguém nesta casa sabe contar histórias...

Aquilo era indireta para Emília, que se remexeu toda, já danadinha e pronta para responder. Mas Narizinho interveio e acalmou-a. O Visconde não se atrapalhou com o aparte. Limitou-se a lançar sobre o gato um olhar terrível, dizendo:

— Não é discurso, não, senhor gato! É outra coisa, e quem vai explicar o que é não sou eu e sim aquela senhora vassoura, ali ao lado de tia Nastácia...

Todos olharam muito espantados para o Visconde, sem compreender o que ele queria significar com aquilo. Em seguida o Visconde recomeçou:

— Meus senhores e senhoras! A história que vou contar não foi lida em livro nenhum, mas é o resultado dos meus estudos científicos e criminológicos. É o resultado de longas e cuidadosas deduções matemáticas. Passei duas noites em claro compondo a minha história e espero que todos lhe dêem o devido valor.

— Muito bem! — exclamou Narizinho. — Mas desembuche de uma vez.

— Era uma vez um gato — começou o Visconde. — Mas um gato à-toa de roça, um gato que não valia coisa nenhuma, além de que nascido com muito maus instintos. Se fosse um gato sério e decente, eu teria muito gosto em o declarar aqui, mas não era. Era o que se chama — um gato ladrão. E porque era um gato ladrão, ninguém queria saber dele. Na casa onde nasceu logo descobriram a sua má índole e o tocaram para a rua com uma boa sova. O gato saiu correndo e foi morar numa casa bem longe da primeira, dizendo que o seu dono tinha morrido e que ele era o melhor caçador de ratos do mundo. Todos acreditaram nas palavras do mentiroso e o deixaram ficar. Mas tão ordinário era esse gato, que em vez de corrigir-se e viver vida nova, continuou com maroteiras. Na primeira noite que dormiu nessa casa foi à cozinha e roubou um pedaço de carne que a cozinheira havia guardado para o dia seguinte. Roubou e ficou quietinho, deixando que a cozinheira pusesse a culpa numa pobre negrinha e a castigasse com vara de marmelo.

— Ah, eu lá! — exclamou Pedrinho. — Ferrava-lhe uma pelotada de bodoque, que ele havia de ver estrelas...

— Por fim — continuou o Visconde — também nessa casa lhe descobriram as patifarias e o puseram no olho da rua. Ele fugiu e resolveu mudar-se para um sítio onde houvesse muitos pintos. Achou o sítio que precisava e ficou morando lá. Mas o dono observou que os pintos estavam diminuindo, um, dois e até três por dia, e falou à mulher que ia arranjar um cachorro policial para tomar conta do galinheiro durante a noite. O gato ladrão percebeu a conversa e fugiu. Andou, andou, andou até que encontrou outro sítio onde moravam duas velhas e dois meninos, um do sexo masculino e outro do sexo feminino.

— Que coincidência! — exclamou Narizinho. — Parece o sítio de vovó...

— Escolheu esse sítio — continuou o Visconde — e foi entrando por ele a dentro com a maior sem-cerimônia deste mundo, com partes de que era um grande gato de família nobre e que tinha nascido num país estrangeiro, etc.

Emília olhou para o gato Félix.

— Deve de ser algum seu parente. Os traços estão muito parecidos...

— Não tenho parentes dessa laia — respondeu o gato com orgulho. — Esse gato ladrão deve de ser parente mas é dalguma senhora boneca...

— Continue, senhor Visconde — disse Narizinho.

O Visconde tossiu outro pigarrinho e continuou:

— O -tal gato ladrão ficou morando nesse sítio. Todos o tratavam com a maior gentileza, mas em vez de mostrar-se grato por tantas atenções, ele tratou de continuar a sua triste vida de gatuno. E foi e comeu um pinto carijó...

Neste ponto o Visconde parou e olhou firme para o gato Félix. O gato sustentou o olhar do Visconde e deu o desprezo.

O Visconde continuou:

— Comeu esse pobre pinto, que era tão lindo, e no dia seguinte comeu outro pinto ainda mais bonito. O gato Félix levantou-se indignado.

— O senhor Visconde está me insultando! — gritou. – Esses olhares para meu lado parecem querer dizer que sou eu o gato ladrão!...

O Visconde pulou fora da latinha e berrou:

— E é mesmo! O tal gato ladrão é você, seu patife! Você nunca foi gato Félix nenhum! Você não passa de um miserável comedor de pintos...

Foi um rebuliço! Todos se ergueram, sem saber o que fazer. O gato Félix, furioso da vida, berrou ainda mais alto que o Visconde:

— Prove, se for capaz! Prove que comi os tais pintos...

— Provo e já! — urrou o Visconde. — Tenho as provas aqui no bolso.

Disse, e puxou do bolso dois pelinhos de gato.

— Eis as provas! Este pêlo eu o encontrei no galinheiro, bem no local do crime e ainda manchado com o sangue da vítima. E este outro a senhora Emília arrancou dessas fuças, seu miserável! Estão aqui as provas. Quem quiser pode vir examiná-las com o binóculo de dona Benta. São perfeitamente iguais, até no cheiro. Ambas têm cheiro de gato ladrão!...

A prova era esmagadora. Tia Nastácia, passando a mão na vassoura, avançou feito uma onça para cima do falso gato Félix. O gatuno deu um pulo e sumiu-se pela janela na escuridão da noite.

— Bravos! Bravos ao Visconde! — exclamaram todos. — Viva o nosso Sherlock Holmes!... — Viva! Viva !...

E fizeram-lhe uma grande festa, e deram-lhe muitos abraços e beijos. Até Emília, que era muito envergonhada, encheu-se de coragem e beijou-o na testa.

Dona Benta tomou a palavra e disse:

— Vejam que injustiça íamos cometendo com o nosso pobre Visconde, só porque havia embolorado e estava muito feio! Os acontecimentos desta noite acabam de provar que ele é um verdadeiro sábio — e dos que dão lucro a uma casa. Deste momento em diante, quem vai tomar conta dele sou eu. Vou curá-lo do bolor e botá-lo como administrador do sítio.

O relógio bateu as dez horas, e enquanto os meninos se recolhiam a velha pegou o Visconde e guardou-o bem guardadinho na sua estante, entalado entre uma Aritmética e uma Álgebra – fato que iria ter notáveis conseqüências futuras.
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Continua... Cara de Coruja– I – Preparativos

Fonte:
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. I. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa

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