sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Monteiro Lobato (Reinações de Narizinho) O Irmão de Pinóquio – I – O Irmão De Pinóquio

— Coitada de vovó! — disse um dia Narizinho. — De tanto contar histórias ficou que nem bagaço de caju; a gente espreme, espreme e não sai mais nem um pingo.

Era a pura verdade aquilo — tão verdade que a boa senhora teve de escrever a um livreiro de São Paulo, pedindo que lhe mandasse quanto livro fosse aparecendo. O livreiro assim fez. Mandou um e depois outro e depois outro e por fim mandou o Pinóquio.

— Viva! — exclamou Pedrinho quando o correio entregou o pacote.

— Vou lê-lo para mim só, debaixo da jabuticabeira.

— Alto lá! — interveio dona Benta. — Quem vai ler o Pinóquio para que todos ouçam, sou eu, e só lerei três capítulos por dia, de modo que o livro dure e nosso prazer se prolongue. A sabedoria da vida é essa.

— Que pena! — murmurou o menino fazendo bico. — Não fosse a tal sabedoria da vida, que nunca vi mais gorda, e hoje mesmo eu dava conta do livro e ficava sabendo toda a história do Pinóquio. Mas não! Temos de ir na toada de carro de boi em dia de sol quente — nhen, nhen, nhen...

Sua zanga, porém, não durou muito, e assim que chegou a noite e tia Nastácia acendeu o lampião e gritou o “É hora!”, ninguém se mostrava mais assanhado que ele.

— Leia da sua moda, vovó! — pediu Narizinho. — A moda de dona Benta ler era boa. Lia “diferente” dos livros. Como quase todos os livros para crianças que há no Brasil são muito sem graça, cheios de termos do tempo do onça ou só usados em Portugal, a boa velha lia traduzindo aquele português de defunto em língua do Brasil de hoje. Onde estava, por exemplo, “lume”, lia “fogo”; onde estava “lareira” lia “varanda”. E sempre que dava com um “botou-o” ou “comeu-o”, lia “botou ele”, “comeu ele” — e ficava o dobro mais interessante. Como naquele dia os personagens eram da Itália, dona Benta começou a arremedar a voz de um italiano galinheiro que às vezes aparecia pelo sítio em procura de frangos; e para o Pinóquio inventou uma vozinha de taquara rachada que era direitinho como o boneco devia falar. Os primeiros capítulos lidos não deram para fazer uma idéia da história. Mesmo assim Pedrinho declarou que se simpatizava com o herói.

— Pois eu não! — contraveio Narizinho. — Esse freguês não me está com cara de ser boa bisca. E você, Emília, que acha?

A boneca estava pensativa, de mãozinha no queixo.

— Eu acho — respondeu ela — que achei uma grande coisa.

— Diga!

— Não posso. Não é coisa de ir dizendo assim sem mais nem menos. Só direi se Pedrinho me der aquele cavalinho de pau sem rabo que está na gaveta dele.

Emília sempre fora interesseira, mas depois que encasquetou a idéia de tornar-se a boneca mais rica do mundo (rica de brinquedos), virou uma perfeita cigana, dessas que não fazem nada de graça.

— Pode ser que dê — disse o menino. — Se a idéia for aproveitável...

— Jura que dá?

— Não duvide de mim. Você bem sabe que sou menino de palavra.

— Pois minha idéia é esta: Se Pinóquio foi feito de um pedaço de pau vivente, bem pode ser que ainda haja mais pau dessa qualidade no mundo.

— E que tenho eu com isso?

— Tem que, se houver mais pau dessa qualidade, você poderá arranjar um pedaço e fazer um irmão do Pinóquio!

Todos se entreolharam, admirados da esperteza da boneca. Pedrinho chegou a entusiasmar-se com a idéia.

— É mesmo! — exclamou arregalando os olhos. — A idéia é tão boa que só admiro de ninguém ter pensado nisso antes. Pode ir lá ao meu quarto, Emília, e tirar o cavalinho da gaveta.
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Continua... O Irmão de Pinóquio – II – O pau vivente

Fonte:
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. I. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa

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