segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Trova 208 - Wandira Fagundes Queiroz (Curitiba/PR)

Carlos Drummond de Andrade (A Mãe e o Fogão)


O Dia das Mães já passou, para sossego delas e nosso, mas algumas estão resolvendo, nesta semana, problemas resultantes da extraordinária concentração de afeto que se operou no segundo (e azul) domingo de maio de 1961.

Umas tantas repousam das manifestações coletivas e entusiásticas que receberam, não na qualidade geral de mães, mas na específica de mães de autoridades. Se amanhã o desfavor público envolver essas autoridades, é de desejar que não atinja suas venerandas genitoras, vítimas de tais homenagens.

Outras, entre beijos, receberam presentes pouco adequados, objetos de uso que não gostariam de usar, mas usarão assim mesmo, porque mãe é sempre mãe, não desaponta filho.

Os garotos de Dona Esmeralda é que foram mais previdentes do que muito filho marmanjo. Reunidos em assembléia, discutiram a dádiva a oferecer, e chegaram à conclusão de que seria ideal um vestido de inverno, com os complementos. Nenhum deles está em idade de escolher tecidos, bolsa, luvas e sapatos; mas confiar a tarefa a terceiros, não. "Damos o dinheiro e mamãe compra a seu gosto": combinado.

Como o dinheiro não chegasse, recorreram ao pai. Assim, Dona Esmeralda recebeu de véspera, num envelope, quinze abobrinhas, que não dariam para uma toalete digna do grill do Copa, mas sempre podem produzir algo de elegante. Ela chorou e sorriu e chorou outra vez de emoção pelo carinho da meninada.

Quis logo retribuir-lhes a gentileza com um bolo de chocolate com frutas, mas o fogão - um caso sério, sempre em conserto-se recusou a cooperar. Por mais que lhe explicasse que era um serviço sentimental e urgente, Dona Esmeralda não obteve dele nenhuma dessas provas de consideração e camaradagem que até os fogões velhos costumam dar às mães amorosas. Então ela não teve dúvida: num impulso verdadeiramente materno, trocou logo o vestido futuro por um fogão novo, comprado na loja mais próxima. Para inteirar, deu mais três mil cruzeiros de suas economias, que ela não é de crediário. Recomendou que o fogão fosse entregue na hora, e a instalação feita imediatamente. O vestido ficava para mais tarde, a ser ganho num possível "Dia da Esposa", que vem aí. Os filhos não podiam ficar sentidos: tinham dado um presente útil, é tão bom um presente útil.

De volta à casa, feliz, telefonou para a amiga mais chegada, contando-lhe a compra (se um dos prazeres femininos é comprar, até mesmo um fogão, outro é contar que comprou) . A amiga interrompeu-a:

- Mas que idéia essa de comprar fogão novo se o velho ainda serve?

- Serve nada. Acendi o gás e ele não funcionou.

- E como você queria que ele funcionasse, filha, se não houve gás esta manhã?

Ao terminar a conversa, a turma de instalação já havia desligado o fogão velho e ia ligar o fogão novo. Dona Esmeralda mandou parar o serviço e correu à loja para desfazer a transação. Negociações prosseguem, laboriosas. Não houve bolo de chocolate com frutas.

Carlos Drummond de Andrade (O Poeta Singrando Horizontes VII)


A BOMBA

A bomba
é uma flor de pânico apavorando os floricultores
A bomba
é o produto quintessente de um laboratório falido
A bomba
é estúpida é ferotriste é cheia de rocamboles
A bomba
é grotesca de tão metuenda e coça a perna
A bomba
dorme no domingo até que os morcegos esvoacem
A bomba
não tem preço não tem lugar não tem domicílio
A bomba
amanhã promete ser melhorzinha mas esquece
A bomba
não está no fundo do cofre, está principalmente onde não está
A bomba
mente e sorri sem dente
A bomba
vai a todas as conferências e senta-se de todos os lados
A bomba
é redonda que nem mesa redonda, e quadrada
A bomba
tem horas que sente falta de outra para cruzar
A bomba
multiplica-se em acções ao portador e portadores sem acção
A bomba
chora nas noites de chuva, enrodilha-se nas chaminés
A bomba
faz week-end na Semana Santa
A bomba
tem 50 megatons de algidez por 85 de ignomínia
A bomba
industrializou as térmites convertendo-as em balísticos interplanetários
A bomba
sofre de hérnia estranguladora, de amnésia, de mononucleose, de verborreia
A bomba
não é séria, é conspicuamente tediosa
A bomba
envenena as crianças antes que comece a nascer
A bomba
continua a envenená-las no curso da vida
A bomba
respeita os poderes espirituais, os temporais e os tais
A bomba
pula de um lado para outro gritando: eu sou a bomba
A bomba
é um cisco no olho da vida, e não sai
A bomba
é uma inflamação no ventre da primavera
A bomba
tem a seu serviço música estereofónica e mil valetes de ouro, cobalto e ferro além da comparsaria
A bomba
tem supermercado circo biblioteca esquadrilha de mísseis, etc.
A bomba
não admite que ninguém acorde sem motivo grave
A bomba
quer é manter acordados nervosos e sãos, atletas e paralíticos
A bomba
mata só de pensarem que vem aí para matar
A bomba
dobra todas as línguas à sua turva sintaxe
A bomba
saboreia a morte com marshmallow
A bomba
arrota impostura e prosopéia política
A bomba
cria leopardos no quintal, eventualmente no living
A bomba
é podre
A bomba
gostaria de ter remorso para justificar-se mas isso lhe é vedado
A bomba
pediu ao Diabo que a baptizasse e a Deus que lhe validasse o baptismo
A bomba
declare-se balança de justiça arca de amor arcanjo de fraternidade
A bomba
tem um clube fechadíssimo
A bomba
pondera com olho neocrítico o Prémio Nobel
A bomba é russamenricanenglish mas agradam-lhe eflúvios de Paris
A bomba
oferece de bandeja de urânio puro, a título de bonificação, átomos de paz
A bomba
não terá trabalho com as artes visuais, concretas ou tachistas
A bomba
desenha sinais de trânsito ultreletrônicos para proteger velhos e criancinhas
A bomba
não admite que ninguém se dê ao luxo de morrer de câncer
A bomba
é câncer
A bomba
vai à Lua, assovia e volta
A bomba
reduz neutros e neutrinos, e abana-se com o leque da reação em cadeia
A bomba
está abusando da glória de ser bomba
A bomba
não sabe quando, onde e porque vai explodir, mas preliba o instante inefável
A bomba
fede
A bomba
é vigiada por sentinelas pávidas em torreões de cartolina
A bomba
com ser uma besta confusa dá tempo ao homem para que se salve
A bomba
não destruirá a vida
O homem
(tenho esperança) liquidará a bomba.

A FLOR E A NÁUSEA

Preso à minha classe e a algumas roupas,
vou de branco pela rua cizenta.
Melancolias, mercadorias, espreitam-me.
Devo seguir até o enjôo?
Posso, sem armas, revoltar-me?

Olhos sujos no relógio da torre:
Não, o tempo não chegou de completa justiça.
O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.
O tempo pobre, o poeta pobre
fundem-se no mesmo impasse.

Em vão me tento explicar, os muros são surdos.
Sob a pele das palavras há cifras e códigos.
O sol consola os doentes e não os renova.
As coisas. Que triste são as coisas, consideradas em ênfase.

Vomitar este tédio sobre a cidade.
Quarenta anos e nenhum problema
resolvido, sequer colocado.
Nenhuma carta escrita nem recebida.
Todos os homens voltam pra casa.
Estão menos livres mas levam jornais
e soletram o mundo, sabendo que o perdem.

Crimes da terra, como perdoá-los?
Tomei parte em muitos, outros escondi.
Alguns achei belos, foram publicados.
Crimes suaves, que ajudam a viver.
Ração diária de erro, distribuída em casa.
Os ferozes padeiros do mal.
Os ferozes leiteiros do mal.

Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.
Ao menino de 1918 chamavam anarquista.
Porém meu ódio é o melhor de mim.
Com ele me salvo
e dou a poucos uma esperança mínima.

Uma flor nasceu na rua!
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.

Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.

Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde
e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvens macias avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.

A GRANDE DOR DAS COUSAS QUE PASSARAM

A grande dor das cousas que passaram
transmutou-se em finíssimo prazer
quando, entre fotos mil que se esgarçavam,
tive a fortuna e graça de te ver.

Os beijos e amavios que se amavam,
descuidados de teu e meu querer,
outra vez reflorindo, esvoaçaram
em orvalhada luz de amanhecer.

Ó bendito passado que era atroz,
e gozoso hoje terno se apresenta
e faz vibrar de novo minha voz

para exaltar o redivivo amor
que de memória-imagem se alimenta
e em doçura converte o próprio horror!

A MÁQUINA DO MUNDO

E como eu palmilhasse vagamente
uma estrada de Minas, pedregosa,
e no fecho da tarde um sino rouco

se misturasse ao som de meus sapatos
que era pausado e seco; e aves pairassem
no céu de chumbo, e suas formas pretas

lentamente se fossem diluindo
na escuridão maior, vinda dos montes
e de meu próprio ser desenganado,

a máquina do mundo se entreabriu
para quem de a romper já se esquivava
e só de o ter pensado se carpia.

Abriu-se majestosa e circunspecta,
sem emitir um som que fosse impuro
nem um clarão maior que o tolerável

pelas pupilas gastas na inspeção
contínua e dolorosa do deserto,
e pela mente exausta de mentar

toda uma realidade que transcende
a própria imagem sua debuxada
no rosto do mistério, nos abismos.

Abriu-se em calma pura, e convidando
quantos sentidos e intuições restavam
a quem de os ter usado os já perdera

e nem desejaria recobrá-los,
se em vão e para sempre repetimos
os mesmos sem roteiro tristes périplos,

convidando-os a todos, em coorte,
a se aplicarem sobre o pasto inédito
da natureza mítica das coisas,

assim me disse, embora voz alguma
ou sopro ou eco ou simples percussão
atestasse que alguém, sobre a montanha,

a outro alguém, noturno e miserável,
em colóquio se estava dirigindo:
"O que procuraste em ti ou fora de

teu ser restrito e nunca se mostrou,
mesmo afetando dar-se ou se rendendo,
e a cada instante mais se retraindo,

olha, repara, ausculta: essa riqueza
sobrante a toda pérola, essa ciência
sublime e formidável, mas hermética,

essa total explicação da vida,
esse nexo primeiro e singular,
que nem concebes mais, pois tão esquivo

se revelou ante a pesquisa ardente
em que te consumiste... vê, contempla,
abre teu peito para agasalhá-lo.”

As mais soberbas pontes e edifícios,
o que nas oficinas se elabora,
o que pensado foi e logo atinge

distância superior ao pensamento,
os recursos da terra dominados,
e as paixões e os impulsos e os tormentos

e tudo que define o ser terrestre
ou se prolonga até nos animais
e chega às plantas para se embeber

no sono rancoroso dos minérios,
dá volta ao mundo e torna a se engolfar,
na estranha ordem geométrica de tudo,

e o absurdo original e seus enigmas,
suas verdades altas mais que todos
monumentos erguidos à verdade:

e a memória dos deuses, e o solene
sentimento de morte, que floresce
no caule da existência mais gloriosa,

tudo se apresentou nesse relance
e me chamou para seu reino augusto,
afinal submetido à vista humana.

Mas, como eu relutasse em responder
a tal apelo assim maravilhoso,
pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,

a esperança mais mínima — esse anelo
de ver desvanecida a treva espessa
que entre os raios do sol inda se filtra;

como defuntas crenças convocadas
presto e fremente não se produzissem
a de novo tingir a neutra face

que vou pelos caminhos demonstrando,
e como se outro ser, não mais aquele
habitante de mim há tantos anos,

passasse a comandar minha vontade
que, já de si volúvel, se cerrava
semelhante a essas flores reticentes

em si mesmas abertas e fechadas;
como se um dom tardio já não fora
apetecível, antes despiciendo,

baixei os olhos, incurioso, lasso,
desdenhando colher a coisa oferta
que se abria gratuita a meu engenho.

A treva mais estrita já pousara
sobre a estrada de Minas, pedregosa,
e a máquina do mundo, repelida,

se foi miudamente recompondo,
enquanto eu, avaliando o que perdera,
seguia vagaroso, de mãos pensas.

Este poema foi escolhido como o melhor poema brasileiro de todos os tempos por um grupo significativo de escritores e críticos, a pedido do caderno “MAIS” (edição de 02-01-2000), publicado aos domingos pelo jornal “Folha de São Paulo”. Publicado originalmente no livro “Claro Enigma”.

Raimundo Candido Teixeira Filho (Livro de Poesias)


BODEGA

Às vezes, no rústico balcão
de velha tábua enegrecida
o tempo parava...

Às vezes, o vento passava
e o papel de embrulho acenava
convidando o cliente
a absorver o aroma
pungente de couro curtido
que se irradiava no ar...

Só a velha balança parada
com os pratos vazios
ponderava o que havia
de sabor no denso langor
de algo invisível a indicar
que a tarde se dissipava
pesarosa a chorar...

E quando vinha freguês
antonio, maria ou joão
de caderneta na mão
fiava o açúcar, a farinha,
num embrulho feito com arte
com dedos magros da mão
de um bodegueiro artesão!

PORTEIRA


O aboio de meus ancestrais
é o que escuto ao longe
quando o olho se depara
no langor da velha porteira...

Ouço o som puxado
do canto de meu bisavô
tangendo uma boiada,
depois outro, entoando...
é meu avô gravando no ar
o seu ecoar de saudade.

E na cancela, ruína
empenada, corroída
pela angústia de seu fim,
algo cordial ainda pulsa
como álbum de fotografia
e me dá a impressão que
os mesmos paus corredios
se abrem... se fecham...
sozinhos! logo ao ouvir
um pungente mugido ou
o grito de aboio de meu avô.

FASTIO

Ultimamente,
tenho carregado demasiado peso:
ausências indefinidas,
presenças indesejadas
e saudade de um doce sal
que jamais provei!

A vontade de conter o mundo
me franze as sobrancelhas
neste nevoeiro denso
a me reter num abraço.

Necessito verter um vômito
inorgânico que se acumulou
em minhas prateleiras:
aclamações induzidas,
anulações forçadas
e as crenças ilusórias
que retraíram meu ser!

ABUTRES

Então patrulham
o indelével rastro
das visagens que
se diluem aos abutres!

Então farejam
o odor mórbido
do último suspiro que
se avigora aos abutres!

Então grasnam
transcendentes
ao pendor fúnebre que
se oferta aos abutres!

TEOREMA PRA NOS TANGER

Há um pequeno porém
ao ultrapassar travessias;
o trabalho é na espora,
todavia, o lume da carga
nem pende, nem pesa,
parece flutuar nos arreios.
Só o bornal descontente
sem empenho transporta
uma época de intenções
e travessuras pelas veredas
penosas, longas e sinuosas,
como obrigação imposta
até a armadura do gibão
treme por conta do som
estridente da ave de rapina
e do chicotear do couro cru
que lembra como é a morte
cruel no lamber das esporas.

LEMBRANÇA VIVA


A uma distante deusa.

Um dia, meu sangue
e minha alma ferviam
em tuas vulcânicas mãos,
entorpecido ao teu aroma
e ao teu volúvel poder
azedo, amargo, doce
que agora me dói
na tua longa ausência ...

E hoje, como vulto, apareces
surpreendente, diante de mim?

Um dia, toda amargura
dissipada no forno do tempo
voltou a existir, apagando
a ilusão de te esquecer
e em repentino instante
condensou-se a esperança
que agora falta em mim
por tua longa ausência...

E hoje, como vulto, apareces
soberana, diante de mim?

Um dia, ao teu lado
mil delirantes vidas; vivi,
com destemor e sem perceber
que de repente ia perder
na névoa branca e crua
a tua sublime presença,
que agora me tolhe a alma
na tua longa ausência...

E hoje, como vulto, desapareces
inumana, diante de mim!

Fontes:
Antonio Miranda

Araçatuba e Região

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 388)


Uma Trova Nacional

Saudade, flor que se dá
ao cemitério tristonho,
que tristeza é enfeitar
a sepultura de um sonho.
–ARLENE LIMA/PR–

Uma Trova Potiguar

Quando a noite vai embora,
a aurora vem, de mansinho,
despertando fauna e flora
na mata e no ribeirinho.
–MARCOS MEDEIROS/RN–

Uma Trova Premiada

2010 - Curitiba/PR
Tema: IMAGEM - M/H

Quem pratica a temperança
e cultiva o dom do amor
tem, na imagem, semelhança
com seu próprio Criador.
–NEI GARCEZ/PR–

Uma Trova de Ademar

Para o pobre interagir,
Deus lhe deu, para viver:
uma boca p’ra pedir...
duas mãos p’ra receber!...
ADEMAR MACEDO/RN–

...E Suas Trovas Ficaram

Parti, lutei vida afora,
foi longo o tempo de ausência...
Mas volto a abraçar-te agora,
meu berço, minha querência!
–MANITA/RJ–

Simplesmente Poesia

Foto Factual
–DIULINDA GARCIA/RN–

Frequentemente me perco,
entre a insatisfação contida
de um povo
e a volúpia irreprimida
da indignação.
Faço uma fotografia digital,
que revela o olhar adormecido
de um fato social,
escondido nos porões do esquecimento
e da miséria.
Lá a dor se pode suportar,
a fome deve esperar
e a vida resseca
e se aguenta
na soleira escaldante
o ano inteiro.

Estrofe do Dia

Eu criei meu zebu com muito gosto
Na ração dei capim, melaço e sal
De manhã ao levá-lo ao matagal
Eu sentia correr suor do rosto,
Ao buscá-lo, à tardinha, o sol já posto
Muito alegre encontrava o meu tesouro
E pra mim bem pior que algum estouro
Foi levá-lo pro fim dessa jornada
Como é triste a imagem da boiada,
Quando segue em destino ao matadouro.
–ISMAEL GAIÃO/PB–

Soneto do Dia

Ao Semeador
–JOÃO JUSTINIANO DA FONSECA/BA–

Encontre-se entre os frutos uma oliva
e ao menos uma rosa nos florais.
Se a fortuna vos falha, por esquiva,
plantai de novo, e sempre, e muito mais.

Segui, juncando a orla dos caminhos
de roseiras sem conta e de olivais.
Sangrar-vos-eis, de certo, nos espinhos,
certo, vos queimarão sois estivais.

Vezes a praga e os pássaros daninhos
perderão a colheita, ou a primitiva
semente esconderão os chãos maninhos.

Árdua é a tarefa. Embora! A alternativa
de servir os passantes e os vizinhos,
compensa o dissabor e em paz deriva.

Fonte:
Textos enviados pelo Autor

Júlia Lopes de Almeida (Predestinação! )


Quantos e quantos dias se passaram depois daquele em que a mão divina de Shakespeare escreveu no seu imorredouro Hamlet:

"There are things in heaven and hearth, Horatio,
Than are dreamt of in your philosophy."

E ainda hoje, como talvez daqui a um longuíssimo amanhã, se continua a sentir o mesmo que o príncipe da Dinamarca afirmava ao amigo que há coisas no céu e na terra que não são suspeitadas pela filosofia...

Por mais que as ciências vitoriosas dêem ao homem moderno uma idéia positiva da vida, ele sente-se acorrentado por um doce fantasma ao mundo invisível que abre a sua imaginação inquieta perspectivas infinitas. O mais independente e, quiçá mais feliz, que tudo nega, lá encontra um dia no seu caminho uma interrogação a que não sabe responder e que o obriga a levantar os olhos com espanto.

Uma crença que nasce, uma visão que passa, um pressentimento, um aceno do nada, um sopro, bastam para ligar muita vez, mesmo que momentaneamente, o espírito mais livre ao singular encanto do mistério. De resto, não há quem não conte, ainda que vagamente, com o auxílio da sorte, o que é ainda acreditar nas determinações do desconhecido, certos como estamos que nem tudo dependerá nunca de nós mesmos. O — "se Deus quiser", — que é para os deistas uma fórmula sem contestação, não deixa de ter na boca dos ateus uma significação, inexplicável, mas sincera.

Toda a gente conta com uma força superior que vai regendo os destinos humanos, impassivelmente, através dos séculos, e de que se emana todo o bem — e todo o mal da nossa alma.

Haverá quem viva na terra só pela terra, sem outra preocupação que a da hora porque está passando e o trabalho sobre que está curvado? Não conhecendo o embalamento da esperança amiga, a mais perceptível das criações sonhadas, como poderá esse ente arquitetar os castelos em que nos abrigamos nos momentos de susto ou de enfado? Sem o mundo irreal, já não me lembro quem perguntou, não seria insuportável o mundo visível? E para que nos cansarmos procurando em vão, sempre em vão, adivinhar o que nos parece apenas pressentir?

Para esta fome da alma, nunca satisfeita, nunca apaziguada, nasceram as religiões, que se transformam, mas não acabam, e que ainda assim não bastam, visto que mesmo os homens mais religiosos não são alheios à superstição.

Fatalidade! Eis a palavra que sem explicar nada tudo explica, e é como que um grande manto de demência atirado sobre todos os cumes e todas as obsessões.

Um dia entrou-me em casa um cavalheiro de cabelos brancos e mãos trêmulas, causadas do trabalho bendito de apontar às crianças as letras do A B C.

Deve ser conhecido aí pela cidade; tem setenta anos, ainda moureja, e passou toda sua vida clareando o espírito dos analfabetos. Aí está um trabalho!

Quando o vi entrar, por ele ser velhinho dei-lhe a melhor cadeira, e como sou da raça dos que amam ouvir histórias, prestei-me a ouvir a sua.

Têm reparado? Para os velhos não há prazer comparável ao de contar a sua vida. Relembrando as horas rapidíssimas do prazer, ou as lentas da agonia, luzem-lhes nas pupilas, através da névoa da velhice, que com mais acerto se deveria chamar — nevoeiro da saudade — uma claridade branda, de primavera.

É uma ternura, um rejuvenescimento da alma, que atestam, mais que tudo, como a vida é boa e amada. O carinho com que são lembrados os dias da mocidade, tão passageira, tão fugitiva!

"Sou um predestinado, dizia-me ele; não acredita na predestinação? Sete vezes o fogo reduziu a cinzas os meus haveres e me deixou nu, quase a pedir esmolas! Nasci para reagir..."

Na primeira vez, contou-me, ele ainda era moço quando um incêndio lhe devorou o negócio. Forte e sereno, levantou os ombros e disse — Paciência!

No dia imediato ao do desastre recomeçou a trabalhar para reconstruir o que as labaredas tinham desfeito. Pouco a pouco, com economia e ambição de fortuna, angariou alguns contos de réis. Casou então, teve um filho, e quando maior número de promessas lhe fazia o futuro, veio outro incêndio que lhe levou até o berço do filhinho.

Mas ele ainda era moço e tinha confiança em si — Paciência! — murmurou ainda, e recomeçou na canseira.

Não me lembram as minúcias do drama em que esse novo Job cavou e perdeu sucessivamente sete fortunazinhas, duramente adquiridas. O que me impressionou não foi isso; à força de ler e de ouvir misérias vai a gente ficando preparada para as mais dolorosas confidências. O que me deu uma sensação de novidade foi este desfecho, contado com simplicidade e tristeza:

"Depois do sétimo incêndio, fiquei sem ter que vestir. A mulher tinha morrido, o filho estava fora. Um vizinho, condoído, deu-me umas roupas e dinheiro para um par de botinas, visto que eu nunca me acostumara a andar descalço e as que trazia estavam em mísero estado. Fui ao meu velho sapateiro, único homem que sabia ajeitar o couro nos meus pés doloridos; fiz-lhe a encomenda, paguei-lha e voltei resignado para o canto de empréstimo em que eu descansava os ossos magoadíssimos.

Estava cansado, mas não desanimado; mais uns dias de repouso, embora poucos, e eu voltaria para o cepo a recomeçar a vida pela oitava vez!

Uma manhã, apelando para toda a minha energia de homem, desci à cidade a trabalhar para o último filho que me restava. Havia ainda alguém que precisava da minha coragem e da minha força, e esse alguém seria servido.

Para apresentar-me no emprego era mister que eu fosse antes calçar as botinas novas; dirigi-me para a sapataria e encontrei-a transformada em um montão de cinzas: ardera toda na véspera; só havia de pé uns restos de paredes e umbrais carbonizados! Minha surpresa foi tamanha, que não cria nos meus olhos; e eu, que já sete vezes tinha visto destruída pelo fogo a minha propriedade, ganha com tanto esforço e tanto sacrifício; eu, que por causa de incêndios passara por humilhações e trabalhos sem conta, sempre com uma resignação que nem sei de onde me vinha, por amor daquele par de botinas sucumbi e, pela primeira vez, chorei como uma criança!

Percebi então claramente que em vão lutaria contra o meu destino. Agora, já serenado, espero o oitavo incêndio, que consumirá os meus ossos e purificará a minha carne."

Assim falou o velho de barbas brancas e mãos trêmulas, que tão vivamente me trazia à lembrança o experimentado varão da terra de Hus. Job, tosquiando a cabeça e rasgando os vestidos, sentou-se num monturo a raspar com um caco de telha a imundice do corpo, em servidão espontânea aos mandados de Deus. Este novo Job, conquanto certo de uma perseguição misteriosa que o há de vencer, luta, trabalha com pertinácia, e ainda se chega para onde ouve falar em criancinhas, com o sentido de ensiná-las a ler!

"Enquanto se vive trabalha-se" resumiu ele ao despedir-se de mim. Sim; agora, como nos tempos antigos, há coisas no céu e na terra que não são nem sequer sonhadas pela filosofia; mas a verdade é que a maneira de gozar ou de sofrer a influência dessas coisas impenetráveis, é hoje, ainda bem para nós todos, muito diferente da dos dias de Job!

Fonte:
Júlia Lopes de Almeida. Livro das Donas e Donzelas. Belém/PA: Núcleo de Educação a Distancia da Universidade da Amazonia (UNAMA).

Machado de Assis (Fuga do Hospício e Outras Crônicas)


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análise realizada pelo prof. Édson Carlos, especialista em linguistica da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
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O livro Fuga do Hospício e Outras Crônicas é uma antologia com alguns textos publicados por Machado de Assis.

Divide-se em três partes, cada uma contendo dez crônicas com temática que se relacionam exatamente com o título de cada parte. São elas:

PARTE I – ALMA HUMANA

A primeira parte da seleção de crônicas ressalta bem as peculiaridades do íntimo humano, o pensamento, a postura e as atitudes do ser humano nas mais variadas circunstâncias, ressaltando a loucura, a ganância, a hipocrisia, o abandono, o canibalismo e muitas outras atitudes de cunho negativo que podem ser produzidas pela alma humana.

Fuga do hospício

Publicada em 31 de maio de 1896. O autor narra uma fuga de loucos que ocorreu num hospício carioca e discorre sobre seu temor em dirigir a palavra às pessoas na rua da tal fuga, afinal, qualquer uma delas pode ser um dos loucos que fugiram do hospício, como nos revela este trecho:

De ora avante, quando alguém vier dizer-me as coisas mais simples do mundo, ainda que me não arranque os botões, fico incerto se é pessoa que se governa, ou se apenas está num daqueles intervalos lúcidos, que permitem ligar as pontas da demência às da razão. Não posso deixar de desconfiar de todos.

Machado defende que todos podem ser loucos, afinal, naqueles dias “o juízo passou a ser uma probabilidade, uma eventualidade, uma hipótese”. Justifica tal afirmativa ao descrever os fatos que ocorreram durante a semana, como se os mesmos fossem fruto da loucura que compõe tais dias:

De resto, toda esta semana foi de sangue, – ou por política, ou por desastre, ou por desforço pessoal. O acaso luta com o homem para fazer sangrar a gente pacata e temente a Deus. No caso de Santa Teresa, o cocheiro evadiu-se e começou o inquérito. Como os feridos não pedem indenização à companhia, tudo irá pelo melhor no melhor dos mundos possíveis. No caso de Copacabana, deu-se a mesma fuga, com a diferença que o autor do crime não é cocheiro; mas a fuga não é privilégio de oficio, e, demais, o criminoso já está preso. Em Manhuaçu continua a chover sangue, tanto que marchou para lá um batalhão daqui. O comendador ferreira Barbosa, (a esta hora assassinado) em carta que escreveu ao diretor da Gazeta e foi ontem publicada, conta minuciosamente o estado daquelas paragens. Os combates têm sido medonhos. Chegou a haver barricadas (...)

O autor encerra o texto apontando a música como uma solução à demência, à loucura de seus dias:

Enxuguemos a alma. Ouçamos, em vez de gemidos, notas de música. (...) se consideramos (...) a necessidade que há de arrancar a alma ao tumulto vulgar para a região serena e divina (...).

Um pouco de astronomia

Publicada em 23 de dezembro de 1894, versa sobre o ocorrido durante a semana. Num primeiro momento, o autor narra um jantar realizado pelos ministros da Suécia e Noruega junto a oficiais da marinha e os cônsules da Holanda e Dinamarca.

Num segundo momento, através de uma pergunta feita por seu criado, o autor discorre sobre política e encerra seu texto falando sobre a descoberta de um novo planeta entre Marte e Mercúrio, relacionado à descoberta do astro com um terremoto ocorrido na Itália.

(...) um astrônomo diria sobre este novo planeta coisas importantes. Que direi eu? Nada ou algum absurdo. Buscaria achar alguma relação entre os planetas que aparecerem e as cidades que ameaçam desaparecer com terremotos (...)
Andará a terra com dores de parto, e alguma coisa vai sair dela, que ninguém espera nem sonha? Tudo é possível! Quem sabe se o planeta novo não foi o filho que ela deu à luz por ocasião dos terremotos italianos?

Por fim, num teor reflexivo, conjectura se a ganância das grandes nações fará que estas, depois de dominarem o continente africano por completo, não decidirão partir para a conquista dos outros planetas. Mais uma vez, narrando os fatos da semana, constrói uma crítica. Seu alvo agora é a ganância das grandes nações que exploram a África, as quais acabam por digladiar ideológica ou belicamente por necessidade de impor sua economia e ideologia às nações daquele continente.

Abolição e liberdade

Publicada em 19 de maio de 1888, um homem reúne seus amigos para um jantar e anuncia que, mesmo sem a escravidão ser abolida, dar alforria ao seu escravo Pancrácio. Tamanho ato de humanidade é elogiado por todos os seus companheiros. O homem permite que o negro continue morando em sua casa e trabalhando em troca de um salário. No entanto, mesmo alforriado, o negro apanha constantemente do patrão, o qual almeja um cargo na política:

Pancrácio aceitou tudo; aceitou até um peteleco que lhe dei no dia seguinte, por não me escovar bem as botas; efeitos da liberdade. Mas eu expliquei-lhe o peteleco, sendo um impulso natural, não podia anular o direito civil adquirido por um direito que lhe dei. Ele continuava livre, eu de mau humor; eram dois estados naturais, quase divinos.
Tudo compreendeu o meu bom Pancrácio; daí para cá, tenho-lhe despedido alguns pontapés, um ou outro puxão de orelhas, e chamo-lhe besta quando lhe chamo filho do diabo; coisas todas que ele recebe humildemente, e (Deus me perdoe!) creio que até alegre.

O autor busca, através deste irônico caso em particular, demonstrar sua opinião acerca da escravidão e, sobretudo, criticar a postura hipócrita daqueles que buscam, através de demonstrações públicas de um falso caráter, angariar a simpatia e admiração da sociedade, quando, em seus íntimos, continuam a ser pessoas mesquinhas e pobres de espírito.

Bondes elétricos

Publicada em 16 de outubro de 1892, num bonde, o narrador nota que, enquanto o cocheiro e o condutor cochilam, os dois burros que puxam o veículo conversam. Ambos falam um ao outro sobre a tristeza e a amargura de serem burros e o destino que lhes é reservado, afinal, quando não servirem mais para puxar bondes serão enviados para puxar carroças. Depois quando não servirem mais para tal serviço, serão abandonados nas ruas, onde morrerão e serão levados por uma carroça, puxada por outro burro, o qual possuirá o mesmo destino. O diálogo entre os dois animais e o assunto sobre o qual falam é uma espécie de metáfora sobre velhice, esquecimento e abandono e, por fim, a morte. O autor busca traçar uma crítica à modernidade que suplanta os antigos moldes de trabalho, pois os bondes elétricos começavam a surgir pelas ruas do Rio de Janeiro, substituindo os burros que antes faziam tal tarefa.

Carnívoros e vegetarianos

Publicada em de março de 1893, uma greve de açougueiros corta o abastecimento de carne para a cidade. O autor, vegetariano por escolha própria, revela as vantagens da dieta composta apenas por vegetais. Aponta as diferenças entre a carne repleta de vícios) e os vegetais (repletos de virtude). Mudando um pouco de assunto, encerra o texto criticando o pensamento de que a instrução pública de sua época devesse ensinar a língua italiana para as crianças e jovens, tendo em vista o grande número de imigrantes italianos no Brasil. O objetivo central do texto é, partindo de assunto da greve dos açougueiros (assunto em alta na semana em questão), criticar as propostas entabuladas nas discussões entre os senhores Capelli e Maia Lacerda sobre lecionar, na instrução pública brasileira, o idioma italiano. O autor usa de seu sutil sarcasmo ao construir o texto, concluindo em tom de sugestão:

Outro ponto alegre do discurso é o que trata da necessidade de ensinar a língua italiana, fundando-se em que a colônia italiana aqui é numerosa e crescente, e espalha-se por todo o interior. Parece que a conclusão devia ser o contrário; não ensinar italiano a povo, antes ensinar nossa língua aos italianos. Mas, posto que isso não tenha nada a ver com o vegetarianismo, desde que faz com que o povo possa ouvir as óperas sem libreto na mão, é um progresso.

Poder relativo

Publicada em 20 de abril de 1885, nela o autor justifica seu posicionamento acerca de ter seu nome citado nas listas de sugestão para o Ministério e defende sua vontade em ingressar na política. Mesmo falando sobre si mesmo, machado ironiza:

Creia o leitor só a presença do nome na lista me faria muito bem. Faz-se sempre bom juízo de um homem lembrado, em papéis públicos, para ocupar um lugar nos conselhos da coroa, e a influência da gente cresce.

Crônica que deixa de lado o ato de narra ou comentar os acontecimentos da semana, o autor concentra-se apenas em falar sobre seus desejos de ingressar na vida política.

Antropofagia

Publicada em 1 de setembro de 1895, a crônica discorre sobre as notícias de enforcamento de um professor de inglês que devorou algumas crianças em Guiné. Como de costume, o autor utiliza-se da ironia ao cogitar que talvez, o professor, ao devorar as crianças, estivesse apenas tentando explicar de modo prático o que era a antropofagia. A seguir, faz apontamentos sobre casos semelhantes de canibalismo ocorridos no Brasil. A crônica parte de tal fato para, num tom sutil criticar o academicismo e a intelectualidade, como vemos no trecho:

Demais, pode ser que o professor quisesse explicar aos ouvintes o que era canibalismo, cientificamente falando. Pegou um pequeno e comeu-o. os ouvintes, sem saber onde ficava a diferença entre canibalismo científico e o vulgar, pediram explicações; o professor comeu outro pequeno. Não sendo provável que os espíritos da Guiné tenham a compreensão fácil de um Aristóteles, continuaram a não entender, e o professor continuou a devorar meninos. É o que em pedagogia se chama ‘lição das coisas’.

Se fosse assim, deveríamos antes lastimar o sacrifício que fez tal homem, comendo o semelhante, para o fim de ensinar e civilizar gentes incultas.

Uma fábula persa

Publicada em 11 de agosto de 1878. O autor traça uma comparação entre o partido republicano e uma lenda persa, em que um jovem decide plantar limas para vender. Como as mesmas não se desenvolvem, ele passa a culpar o sol ao invés do solo, do adubo ou de sua própria inexperiência como lavrador. O sol foi assim escolhido por ser a razão mais visível, que lhe servil ao desabafo e que pudesse gritar e esbravejar seu ódio mesmo que não fosse culpado. O jovem arranca as ervas do solo e fica sem ofício. O autor conclui, numa relação mais do que direta ao Partido Republicano, afirmando que o mesmo deve conhecer toda a política social antes de entrar na vida política do país, para que num problema causado por sua própria incapacidade, um inocente não seja acusado injustamente.

Devaneio de um rei

Publicada em 11 de março de 1894. Partindo da história da colonização da ilha de Trindade, o autor defende que, se fosse rei, o preferiria ser sem súditos. Viver em uma ilha apenas com sua rainha e seu cozinheiro. O texto é uma crítica aos bajuladores dos poderosos, afinal, se ele desejava ser rei sem súditos era apenas para livrar-se tanto de petições e burocracia quanto de bajuladores, como fica evidenciado nas palavras do autor. Tratar-se, portanto, de uma forte crítica à conduta humana, sobretudo, quando levamos em conta o assédio bajulatório característico de pessoas que buscam um reconhecimento social através de “amizades” com homens públicos, para obterem respaldo e, quem sabe, posição pública favorável:

Quando nascesse uma espinha na cara, não haveria uma corte inteira para me dizer que era uma flor, uma açucena, que todas as pessoas bem constituídas usavam por enfeite; (...) Se eu perdesse um pé, não teria o prazer de ver coxear os meus vassalos.

A forma irônica e picante com que o narrador se pronuncia nessa passagem demonstra sua habilidade em detectar e expor as falhas e os interesses humanos, que se apresentam como seres fracos e venais, não escolhendo postura ética ou moral para que possam ascender-se a alcançarem reconhecimento perante a sociedade.

Sobre a morte e o morrer

Publicada em 6 de setembro de 1896. Influenciado pela lembrança das mortes dos amigos Alfredo e Artur Gonçalves, o autor faz considerações sobre o envelhecer e o morrer. Versa sobre o número cada vez mais crescente de mortes que permeiam sua época:

Não me acuseis de teimar neste chão melancólico. O livro da semana foi o obituário, e não terás lido outra coisa, fora daqui, senão mortes e mais mortes.

Prossegue falando sobre os homens que matam uns aos outros e encerra discorrendo não sobre a morte impingida de um homem a outro, e sim à morte causada pela própria natureza:

E ainda não como aquele gênero de morte que nas mãos dos homens, nem dentro deles, o que a natureza reserva no seio da terra para distribuí-la por atacado. Lá se foi mais uma cidade do Japão, comida por um terremoto, com a gente que tinha.

Aqui podemos observar uma forte tendência do escritor: o questionamento existencial e a reflexão acerca do sentido da vida. Não podemos deixar de referir-nos ao fato de que o autor vivenciou as contradições do fim do século, deixando-se, portanto, impregnar-se de angústia e desilusão em relação à euforia materialista que tomou conta do mundo desde a segunda metade do século XIX. Não é de se estranhar que em várias narrativas do autor aparecem personagens que passam pela angústia do viver e que buscam no tempo, na solidão e na própria escrita literária uma forma de exorcização de suas certezas metafísicas.

PARTE II – MUNDO MODERNO

Nesta parte, encontram-se aquelas que versam sobre os aspectos da época e da sociedade em que o autor viveu: o transporte através dos bondes, a visita de personalidades importantes em sua época e fatos marcantes que ocorreram em tais dias, como um famoso caso de bigamia, um homem que deu à luz e outros ocorridos relevantes em seu tempo. O autor não deixa de se preocupar, como bom cronista, com a nova realidade por que passava o país. A urbanização, o cosmopolitismo gerado pelo capitalismo, o processo de desenvolvimento social e científico, tudo vai ser captado com a perspicácia e visão crítica desse escritor carioca, considerado pela crítica como “o implacável crítico da consciência humana” e o grande observador da sociedade de sua época.

Como comportar-se no bonde

Publicada em 4 de julho de 1883. O autor, de modo lúdico, constrói um conjunto de regras para todos que queiram usar os bondes como meio de locomoção. O texto se baseia em 10 artigos que definem como deve se portar desde os passageiros com resfriado, até aqueles que queiram ler jornal durante a viagem. Critica a sociedade e suas atitudes cotidianas. Partindo de algo simples como usar um bonde, o autor ironiza a própria sociedade e sua falta de respeito, educação e cortesia ao tratar a se mesma. É, como sabemos, a função do cronista, ou seja, captar um flagrante social e expor de forma analítica e crítica. É o escritor do dia-a-dia.

Visita de um anarquista

Publicada em 20 de outubro de 1895. Narra a viagem da anarquista Luísa Michel ao Brasil. Conta um incidente ocorrido entre ela e um grupo de locatários. Os capitalistas vão até a anarquista e pedem-lhe ajuda, expondo as amarguras financeiras que lhes são impostas por seus inquilinos. Ao ouvir tal relato, a anarquista vibra de emoção, julgando o anarquismo já consumado no Brasil. O texto ironiza a ignorância dos locatários ao demonstrarem sequer saber o que é anarquismo e, mesmo assim, o temerem. Critica também o fato de que, aos olhos da anarquista, o anarquismo já se consumou no país. Com tal postura, o autor nada mais quis do que atacar a falta de ordem que dominava a sociedade, o que, aos olhos de uma estrangeira era algo nunca antes visto. Ele relacionou a doutrina política com o significado pejorativo que o termo “anarquismo” adquiriu com o passar dos anos. O autor versa sobre a realidade política brasileira e a (des)organização pública de nosso país.

Um acontecimento inusitado

Publicada em 7 de julho de 1878. Crônica que analisa o caso de um quadragenário da cidade de Caravelas, na Bahia, que dera à luz a uma criança:

(...) sentiu uma dor agudíssima na região precordial, movimentos desordenados do coração, dispnéia, forte edemacia em todo o lado esquerdo. Entrou em uso de remédios, até que, com geral surpresa, trouxe a este vale de lágrimas uma criança, que não era exatamente uma criança, porque eram as tíbias, as omoplatas, as costelas, os fêmures, trechos soltos da criatura, que não chegou a viver.

Depois, de um modo bem humorado, mas com teores de ponderação, o autor concluiu:

E porque não suponho que ocaso de Caravelas deve ser o único, acontece que não posso ver agora nenhum amigo, opresso e pálido, sem supor que vai me cair nos braços e bradar (...) “sou mãe”. Esta palavra retine-me os ouvidos, e gela-me a alma... imaginem o que será de nós, se tivermos de dar à luz (...)

Aqui se percebe um caráter profético, bem pouco cultivado por autores da época. Não esqueçamos que o autor foi um dos maiores críticos da ciência, do positivismo, sobretudo.

Progresso

Publicada em 15 de março de 1877. Narra a inauguração do sistema de bondes em Santa Teresa, fazendo uma referência à modernidade e, a seguir, de modo bastante descontraído, afirma que os bondes farão bem a santa Teresa, que agora “vai ficar à moda”. Percebe-se que, por trás do aparecer ar de felicidade, existe uma forte crítica do narrador.

Espiritismo

Publicada em 5 de outubro de 1885. O autor narra uma incursão ida a um encontro espírita de um modo bastante inusitado: sua alma desprende-se de seu corpo e vai à reunião, mas, ao retornar, encontra seu corpo possuído pelo diabo o qual, depois de fazer insinuações sobre a doutrina espírita, devolve o corpo ao espírito.

O texto versa sobre o espiritismo, comparando-o a um medicamento novo, que promete curar as doenças de modo eficaz que todas as medicações antigas. A crônica pode ser vista, também, como uma crítica a todos aqueles que, ao manterem um primeiro contato com uma nova religião, aceitam – sem questionar – todas as suas doutrinas e ensinamentos, suplantando, com eles, suas antigas crenças. Não se pode deixar de observar, por outro lado, a obsessão e o interesse do autor pela metafísica. Afinal, em várias de suas narrativas esse tema salta aos olhos. Podemos citar narrativas como A cartomante, A igreja do Diabo, O enfermeiro, por exemplo.

Verbas públicas

Publicada em 1 de setembro de 1878. Crônica que fala sobre a atitude da Câmara Municipal de negar o fornecimento de jantar para o júri quando as sessões se prolongassem até tarde. O autor se mostra a favor do fato, complementando que isso desordenaria a mente dos jurados e encerra seu texto afirmando:

O que me admira é que só agora reclame o júri um bocado de pão. Pois nunca pediu o júri uma verbazinha para os seus pastéis? Só agora há processos longos e juízes famintos? Tanto pior; se esperam tantos anos, podem esperam alguns mais.

O texto também pode ser visto como uma crítica ao comodismo da sociedade e sua necessidade de sempre receber algo em troca do serviço que esteja prestando, não importa qual seja ele.

Direitos dos burros

Publicada em 10 de junho de 1894. Ao sair em seu jardim, o autor encontra um burro. O animal dirige-lhe a palavra e pede que ele, como homem da imprensa, interceda por sua espécie tão injustiçada. A crônica critica a disparidade existente na aplicação de penas existente entre ricos e pobres. Os primeiros, não importa o que façam, safam-se da justiça mediante seus recursos financeiros, os outros, por mais insignificantes que sejam seus crimes, cumprem penas exageradas. Em outro momento, Machado de Assis aproveita para criticar as propostas de ensinar o inglês nas escolas públicas, afinal, para alguns professores de seu tempo, tal idioma possuía mais importância que o português.

O boi

Publicada em 1 de outubro de 1876. Fragmento de crônica que critica a opinião pública para representar. O autor usa a figura do boi para representar a pecuária criticada pela opinião pública, partindo de tal analogia, ele ressalta o papel do boi em tal embate, afirmando que ele nada tem a ver com tal debate, afinal, seu interesse nunca importa, sempre estando subordinado aos interesses do produtor, do intermediário e do consumidor.

Caso de bigamia

Publicada em 23 de setembro de 1894. Partindo de um suposto caso de bigamia que não pode ser comprovado perante a lei (já que existe um atestado de óbito para a primeira esposa do homem), o autor defende que o único meio de se chegar até a verdade é através do espiritismo. O texto critica o fato de que apenas levamos a sério, ignorando-as. Veja, por exemplo, o que acontece com o personagem “Camilo”, de A cartomante.

História de bichos

Publicada em 1 de julho de 1894. O texto narra outro dilúvio. O autor reuniu sete casais de cada animal e, pondo-os em uma arca, tentou conter as diferenças entre eles, no final, soltou uma pomba pela janela e ela não voltou, soube assim que o dilúvio havia acabado e liberou os animais que saíram juntos, alguns enroscados amigavelmente em outros e outros, por sua vez, oscilando entre vôos e saltos de felicidade. A crônica trata das diferenças entre aqueles que, à primeira vista, são semelhantes, dos desentendimentos surgidos pela superlotação e, sobretudo, da alegria daqueles que sobrevivem a acidentes e desastres, uma alegria que derruba todas as barreiras.

PARTE III - PALAVRAS E PENSAMENTOS

Nesta terceira e última parte do livro, encontram-se as crônicas de Machado de Assis que versam sobre o poder das palavras, do discurso, da escrita e, sobretudo, suas influências na sociedade. Existem também em algumas crônicas certas incursões metalingüísticas feitas pelo autor acerca do ofício do cronista e todos os fatores que compõem esse gênero textual.

Pergunta e resposta

Publicada em 5 de novembro de 1883. Sempre que sai na rua, algum curioso se acerca do autor e lhe indaga: “o que há de novo?”. Cansado de responder a tais perguntas, decide pôr um plano em prática; sempre que alguém lhe perguntar as novidades, ele conta um fato passado, como o terremoto de Lisboa e a morte de Gonçalves Dias. Os curiosos, como queriam saber de fatos novos e não passados, param de fazer tais perguntas ao autor. O texto é uma crítica explícita aos curiosos e mexeriqueiros da sociedade daquela época, pessoas curiosas que viam no autor – por ser um homem da imprensa – a oportunidade de se inteirarem nas últimas novidades e acontecimentos de seus dias. É também uma crítica ao descaso para com o passado, como se o que um dia aconteceu pouco valor tivesse hoje quando comparado com os mexericos da corte. Não se pode ignorar também o destaque que o autor dar às palavras, à influência que exercem no comportamento das pessoas.

Impostos

Publicada em 16 de maio de 1885. O autor encontra-se com os impostos inconstitucionais de Pernambuco. Os impostos estavam no Rio de Janeiro há quatro ou cinco meses e, tristes por terem sido expulsos da Câmara de Deputados, o autor os consola dizendo que o que os define como anticonstitucionais é apenas um adjetivo e se ele fosse escolhido o líder da nação aboliria o uso dos adjetivos e eles seriam apenas “impostos”. O poder das palavras é explorado pelo autor, afinal, sem adjetivos para qualificar as coisas, a linha que define se são boas ou más é apagada. Ele usa o caso dos impostos inconstitucionais para metaforicamente provar que, caso seja da vontade dos donos do poder, algo negativo pode ser visto com bons olhos por todos, através apenas, do uso de uma palavra adequada, que não pejorative o objeto.

O cronista e a semana

Publicada em 16 de setembro de 1894. O autor é visitado por uma semana pobre e esta vem lhe dizer que, enquanto ela durou, seu único ocorrido foi o escorregão de um homem numa casca de banana. O autor põe-se a lembrar da visita que teve anteriormente de uma semana rica. Ela (a semana rica), sempre ruidosa e enfeitada, contou que enquanto ela durou, ocorreram tragédias da pior espécie. Depois ela se despede e sai de seu escritório, o autor pede ao seu criado que, se a semana rica voltar, diga-lhe que ele não se encontra. No começo do texto o autor afirma preferir as semanas pobres às ricas, afinal, o que marca o caráter de pobreza da primeira é exatamente a ausência de assuntos trágicos,quando na segunda,o que a torna rica é exatamente a ocorrência de tais fatos. Há, na abordagem de tal temática em uma crônica,um velado exercício de metalinguagem, já que o cronista necessita de fatos para construir seus textos, e geralmente os melhores fatos dessa espécie ocorrem nas “semanas ricas”. A posição de Machado é uma auto-ironia, pois, mesmo preferindo as semanas pobres, elas pouco material lhes dão para suas crônicas.

O nascimento da crônica

Publicada em 1 de novembro de 1877. O autor fala sobre a crônica e conjectura suas origens, depois narra sua ida ao cemitério num dia quente.Participa de um sepultamento e,entrando em seu carro e indo para casa,repara em alguns coveiros que cavam uma sepultura sob um sol a pino e indaga-se:

Se o sol nos fazia mal, que não fazia àqueles pobres diabos,durante todas as horas quentes do dia?

Há, como no texto anterior, outro exercício metalingüístico, afinal,ele começa seu texto discorrendo sobre como fazer uma crônica,o que dizer a princípio e que a direção seguir e,por fim,infere onde surgiu a crônica. No decorrer do texto fala sobre se queixar da situação em que se vive e afirma que, por mais que seja penoso afirmar, sempre existirão pessoas em situação pior que a nossa, como comprova ao narrar sua ida ao cemitério.

Conto-do-Vigário

Publicada em 31 de março de 1895. O autor fala sobre um homem que passa a perna em outro e cogita onde terá surgido o famoso conto-do-vigário. Faz uma relação entre o conto literário e o conto-do-vigário e afirma que não é o tamanho do segundo que faz a sua obra,e sim de que maneira ele é feito. Uma vez mais
o autor explora o poder das palavras,poder que faz esse um homem arrancar dinheiro de outro sem que esse perceba.

Reflexões de um burro

Publicada em 8 de abril de 1894. O autor vê um burro à beira da morte, deitado sobre os trilhos dos bondes, ao seu lado foi colocada água e capim, mas o animal ignora isso, pondo-se a pensar em sua condição de burro, sua vida, suas tristezas e alegrias e falar sobre sua vida, sobre tudo aquilo que fez ou sobre o que deixou de fazer. A contragosto – tamanha era a sabedoria daquele animal – o autor se afasta, indo trabalhar. No outro dia, ao passar pelo mesmo lugar, encontra o animal morto e já estado de decomposição. O enfoque principal de tal crônica é ressaltar o poder das palavras, da oralidade, do discurso e a beleza que se encerra na comunicação oral, quando o orador domina a palavra a tal ponto que chega a enternecer seu público. Ao mesmo tempo, o autor volta ao mesmo tema de comparar veladamente o animal (neste caso, o burro) ao ser humano, suplantado pelo poder do tempo, da vida que transcorre e o faz envelhecer, definhar e morrer.

Touradas

Publicada em 15 de março de 1877. Machado ironiza a decisão de se fazer uma tourada em caridade aos necessitados, afinal, para prestar uma boa ação ao povo, fazem uma má ação aos animais. Desse modo, critica uma vez mais aqueles que, através de causas nobres (neste caso ajuda aos pobres) buscam angariar a simpatia do povo e galgar, assim, os degraus da vida política. Mais uma vez o autor exercita a metalinguagem ao definir o cronista, ou seja, como “um historiador da quinzena”, alguém que vive de contar – sob o prisma que seja – os eventos ocorridos que marcaram a sociedade neste intervalo de tempo.

Analfabetismo

Publicada em 15 de agosto de 1876. O autor trata das diferenças existentes entre as palavras e os números, afirmando que enquanto as primeiras são mais maleáveis, suscetíveis à interpretações diferentes e a mal-entendidos, os segundos são mais práticos, diretos, impossíveis de ser interpretados de outra maneira que não seja a da lógica e do bom-senso.

Grito do Ipiranga

Publicada em 15 de setembro de 1876. Um amigo do autor lhe fala que o grito do Ipiranga, que marcou a independência do Brasil, como conhecemos não ocorreu do mesmo modo que se disse, foi, na verdade, um apanhado de fatos dispersos que o povo achou melhor resumir miticamente no famoso “grito”. O autor posiciona-se justificando ironicamente:

Minha opinião é que a lenda é melhor do que a história autentica. A lenda todo o fato da in dependência nacional, ao passo que a versão exata o reduz a uma coisa vaga e anônima.
Tenha paciência o meu ilustrado amigo. Eu prefiro o grito do Ipiranga; é mais sumário, mais bonito e mais genérico.

Mais uma vez, o cronista fala sobre as palavras e seu poder, no entanto, partindo agora sobre um enfoque entre a escrita e a oralidade, entre história transcrita em todas as suas minúcias para o papel e a versão oral que resume e, de modo generalizador, dá seus tons épicos ao ocorrido.

Neologismos

Publicada em 7 de março de 1889. Critica a tentativa do senhor Castro Lopes, famoso latinista brasileiro de sua época, em criar uma série de neologismos para substituir as palavras e as frases oriundas do idioma francês – tão comuns no vocabulário dos brasileiros letrados da época. Ironiza o uso de determinadas palavras e, por fim, encerra seu texto defendendo sarcasticamente que, por mais que não se queira aceitar, muitos destes termos e expressões francesas já foram assimilados pelo nosso vocabulário, como é o caso de palavras como “reclame” ou “croquete”.

A última crônica versa sobre o poder universalizante de algumas palavras, que rompem as fronteiras de sua nação de origem e adentram em outras nações, as quais possuem seu próprio idioma. Uma das críticas mais presentes em todo o texto é o fato de que o senhor Castro Lopes repudiava o uso apenas das expressões francesas, fazendo pouco caso sobre o uso de palavras como “xale”, de origem persa.

Fonte:
Passeiweb

Cruz e Souza (O Livro Derradeiro) Parte XIV


OS RISONHOS

Pastores e camponesas
De rudes almas esquivas
Passam entre as candidezas
Das estrelas fugitivas.

Parece que nada os punge,
Nada os punge e sobressalta.
A lua que os campos unge
No firmamento vai alta.

E eles passam sob a lua,
De queixas desafogados,
A cabeça livre e nua,
Na florescência dos prados.

Seres meigos e singelos,
Mulheres de lindo rosto,
Lábios cálidos e belos,
Do quente sabor do mosto.

Pastores de tez morena,
Queimados ao sol adusto:
Claridade bem serena
No fundo do olhar bem justo.

Neles tudo é riso e festa,
Neles tudo é festa e riso,
Frescuras brandas de giesta
E graças de Paraíso.

Simples, toscas e felizes,
Sem ter um laivo de mágoa:
Almas das verdes raízes,
Limpidez de gota d'água.

Neles tudo é paz de aldeia
E ri com os risos mais frescos...
O céu inteiro gorjeia
Idílios madrigalescos.

Seduzido por miragens
Caminha o bando risonho
Dessas virentes paragens,
Levado na asa de um sonho.

Nele tudo ri sem ânsia
E com doçura secreta;
E como uma nova infância
Cantantemente irrequieta.

Encantos de mocidade,
Saúde, fulgor, vigores,
Dão-lhe a doce suavidade
Maravilhosa das flores.

Os corações, florescentes,
Vão nesses peitos cantando
E rindo em festins ardentes
E dentre os risos sonhando.

Ri na boca, ri nos olhos,
Nas faces o bando, rindo
O bom riso sem abrolhos,
Que lembra um campo florindo.

Rindo em sonoras risadas,
Rindo em frêmitos vivazes,
Rindo em risos de alvoradas,
Rindo em risos de lilazes.

Os campos entontecidos
Nos vinhos da lua clara
Ficam bizarros, garridos,
De vitalidade rara.

As águas claras das fontes
Vibram lânguidas sonatas
E as nuvens vestem os montes
Das visões mais timoratas.

Na copa dos árvoredos,
Nas orvalhadas verduras
Há sonâmbulos segredos
E murmuradas ternuras.

E o bando festivo passa
Rindo, alegre, casto e suave,
Iluminado de graça,
Mais leve que um vôo de ave.

Podeis rir, almas ditosas,
Almas novas como frutos
De vinhas miraculosas
De pomares impolutos.

Podeis rir, almas eleitas
Que os anjos percebem tanto
Lá das esferas perfeitas
Nas harmonias do Encanto.

Almas brancas, Páscoas leves,
Alvos pães de áureos altares,
De mais candidez que as neves
E a madrugada nos mares.

Almas sem sombras ferozes
Nem espasmos delirantes.
Eco das bíblicas vozes,
Caminhos reverdejantes.

O vosso riso é bendito,
Os vossos sonhos são castos,
O estrelamento infinito
De mundos claros e vastos.

Podeis rir, peitos ufanos,
Belas almas feiticeiras,
Vós tendes nos risos lhanos
O trigo das vossas eiras.

A vossa vida é planície,
Não tem declives funestos:
Sois torres que a superfície
Assenta nos dons modestos.

A nossa vida é bem rasa,
Preso à terra o vosso esforço;
Nem mesmo um frêmito de asa
Vos faz agitar o dorso...

Sois como plantas vencidas
Conquistadas pela terra,
Dando à terra muitas vidas
E tudo que a Vida encerra.

É do vosso sangue moço
Que na terra se derrama,
Que sobe o rubro alvoroço
De ocasos de sóis em chama.

Manchas, ao certo, não tendes
E nem trágico flagício,
Almas isentas de duendes,
Lavadas no Sacrifício.

Das pedras, nos vossos ombros,
A rigidez não carrega.
Em jardins tornam-se escombros
E em luz a crença que é cega.

Desses perfis adoráveis,
Na curva casta dos flancos
Brotam viços inefáveis
Dos florescimentos brancos.

Podeis rir! ó benfazeja
Bondade de nobre essência,
Deus vos chama e vos deseja
Na estrelada florescência.

Um anjo vos acompanha
Nessa estrada matutina
E convosco a ideal montanha
Sobe da graça divina.

O flagelo deste mundo,
Nesses corações não pesa.
Enquanto o Horror vai profundo
Vossa alma tranqüila reza.

Contritos e de mãos postas,
Humildemente de joelhos,
O Demônio, pelas costas,
Não vem vos dar maus conselhos.

Vós sois as sagradas reses
Votadas ao azul Sacrário.
Deus vos olha muitas vezes
Com o seu olhar visionário.

Mas quando, como as estrelas,
Adormecerdes um dia,
Voando mais perto a vê-las
Na Paragem fugidia.

Quando na excelsa Bonança
Afinal adormecerdes,
Nos olhos toda a esperança
Levando dos prados verdes.

Quando lá fordes, subindo
Para as límpidas Alturas,
Profundamente dormindo,
Em busca das almas puras.

Praza aos céus que nos caminhos
Da eterna Glória, das palmas,
Mais brancas que os claros linhos
Possais encontrar as almas!

Fonte:
Cruz e Sousa, Poesia Completa, org. de Zahidé Muzart, Florianópolis: Fundação Catarinense de Cultura / Fundação Banco do Brasil, 1993.

Monteiro Lobato (Reinações de Narizinho) O Sítio do Picapau Amarelo V – Pedrinho


V Pedrinho

Chegou afinal o grande dia. Na véspera viera para dona Benta uma carta de Pedrinho que começava assim:

“Sigo para aí no dia 6. Mande à estação o cavalo pangaré e não se esqueça do chicotinho de cabo de prata que deixei pendurado atrás da porta do quarto de hóspedes. Narizinho sabe.

Quero que Narizinho me espere na porteira do pasto, com a Emília no seu vestido novo e Rabicó de laço de fita na cauda. E tia Nastácia que apronte um daqueles cafés com bolinhos de frigideira que só ela sabe fazer.”

Em vista disso Narizinho levantou-se muito cedo para preparar a recepção de acordo com as instruções da carta. Enfiou em Emília o vestido novo de chita cor-de-rosa com pintinhas e enfeitou Rabicó de duas fitas — uma ao pescoço e outra na ponta da cauda.

Pac, pac, pac... Pedrinho apareceu na porteira, trotando no pangaré, corado do sol e alegre como um passarinho.

— Viva! — gritou a menina, correndo a lhe segurar a rédea. — Apeie depressa, senhor doutor, que temos mil coisas a conversar!

Pedrinho apeou-se, abraçou-a e não resistiu à tentação de ali mesmo abrir o pacote dos presentes para tirar o dela.

— Adivinhe o que trouxe para você! — disse, escondendo atrás das costas um embrulho volumoso.

— Já sei — respondeu a menina incontinenti. — Uma boneca que chora e abre e fecha os olhos.

Pedrinho ficou desapontado, porque era justamente o que havia trazido.

— Como adivinhou, Narizinho?

A menina deu uma risada gostosa.

— Grande coisa! Adivinhei porque conheço você. Fique sabendo, seu bobo, que as meninas são muito mais espertas que os meninos...

— Mas não têm mais muque! — replicou ele com orgulho, fazendo-a apalpar a dureza do seu bíceps que a ginástica escolar havia desenvolvido. E concluiu: — Com este muque e a sua esperteza, Narizinho, quero ver quem pode com a nossa vida!

Os presentes dos demais foram também distribuídos ali mesmo. Rabicó teve uma fita nova, de seda — e os restos do farnel que Pedrinho trouxera (e foi isso o que ele mais apreciou). Emília recebeu um serviço de cozinha completo — fogãozinho de lata, panelas, e até um rolo de folhear massa de pastel.

— E para vovó que é que trouxe? — perguntou Narizinho.

— Adivinhe, já que é tão adivinhadeira — disse ele.

— Eu só adivinho quando é você mesmo quem escolhe os presentes. Mas o presente de vovó aposto que não foi você quem escolheu, foi tia Antonica...

Pela segunda vez Pedrinho abriu a boca. Aquela prima, apesar de viver na roça, estava se tornando mais esperta do que todas as meninas da cidade.

— Tem razão. É isso mesmo. O presente de vovó quem o escolheu e comprou foi mamãe. Você precisa me ensinar o segredo de adivinhar as coisas, Narizinho...

Nesse momento dona Benta apareceu na varanda e Pedrinho correu a abraçá-la.

Dali a pouco estavam todos reunidos na sala de jantar, ouvindo notícias e histórias da cidade. Tia Nastácia trouxe da cozinha a gamela de massa, para não perder uma só palavra ao mesmo tempo que ia enrolando os bolinhos. Súbito, uma brisa soprou mais forte e um ringido se fez ouvir — nhem, nhim...

Pedrinho interrompeu a conversa, de ouvido atento.

— O mastro de São João!... — murmurou enlevado. – Quantas vezes no colégio me iludi com os ringidos das portas, imaginando que era a bandeira do nosso mastro!... Como vai ele?

— Já desbotado pelas chuvas e com um rasgão na bandeira bem em cima da cabeça do carneirinho — respondeu a menina.

O dia de São João era o grande dia de festa no Sítio do Pica-pau Amarelo. Reuniam-se lá todas as crianças dos arredores, para soltar bombinhas e pistolões e dançar em torno da fogueira. Pedrinho jamais faltou a essa festa anual, como jamais deixou de queimar o dedo.

Um ano em que não queimou o dedo ficou muito admirado.

Nos últimos tempos era Pedrinho quem pintava o mastro, caprichando em formar arabescos de todas as cores, cada ano dum estilo diferente. Também era ele quem fornecia a bandeira com o retrato de São João menino, de cruz ao ombro e cordeiro no braço.

Trazia-a da cidade, depois de percorrer todas as casas de negócio a fim de comprar a mais bonita.

— Está bem — disse dona Benta logo que soube das principais novidades. — Pode ir brincar com Narizinho, que tem um mundo de coisas a contar.

Os dois primos dirigiram-se ao pomar aos pinotes. Era lá, debaixo das velhas árvores que trocavam confidências e planejavam as grandes aventuras pelo mundo das maravilhas.

O assunto do dia foi o extraordinário caso da boneca.

— Parece incrível! — dizia Pedrinho. — Quando recebi sua carta contando que Emília falava, não quis acreditar. Mas hoje vejo que fala e fala muito bem. É espantoso !

— No começo — explicou Narizinho — Emília falava muito atrapalhado e sem propósito. Agora já está melhor, mas, mesmo assim, quando dá para falar asneiras ou teimar, ninguém pode com a vidinha dela. Sabe que já é condessa?

— Sim? Condessa de quê?

— De Três Estrelinhas, nome que ela mesma escolheu. Mas estou com vontade de mudar. Condessa é pouco. Emília merece ser marquesa.

— Marquesa de Santos?

— Não. Marquesa de Rabicó.

— É verdade!... Podemos fazer de Rabicó um marquês e casar Emília com ele!

— Isso mesmo. Tenho pensado muito nesse arranjo e até já o propus à Emília.

— E ela aceitou?

— Emília é muito vaidosa e cheia de si. Mas eu sei lidar com ela. Quando chegar a ocasião darei um jeito.

Terminado o assunto Emília, começou o assunto Reino das Águas Claras. Narizinho contou a série inteira daquelas maravilhosas aventuras, despertando em Pedrinho um desejo louco de também conhecer o príncipe-rei. De nada se admirou, conforme o seu costume. Tanto ele como Narizinho achavam tudo tão natural! Só estranhou que o Pequeno Polegar tivesse fugido da sua historinha.

— Isso, sim, não deixa de me intrigar — disse ele. — Se Polegar fugiu é que a história está embolorada. Se a história está embolorada, temos de botá-la fora e compor outra. Há muito tempo que ando com esta idéia — fazer todos os personagens fugirem das velhas histórias para virem aqui combinar conosco outras aventuras. Que lindo, não?

— Nem fale, Pedrinho! — exclamou a menina pensativa. — O que eu não daria para brincar neste sítio com a menina da Capinha Vermelha ou Branca de Neve...

— Eu só queria pilhar cá o Aladino da lâmpada maravilhosa, para tirar a prosa dele! — ajuntou Pedrinho que voltara da cidade com fumaças de valentia.

— E eu só queria Capinha. Tenho tanta simpatia por essa menina... Aqueles bolos que ela costumava levar para a vovó que o lobo comeu — que vontade de comer um daqueles bolos...

Uma voz conhecida veio interrompê-los:

— Narizinho! Pedrinho! O café está na mesa.

— Duvido que fossem melhores que os de tia Nastácia! — disse o menino erguendo-se.

E dispararam para casa.
–––––––––
Continua... A Viagem

Fonte:
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. I. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa

Olivaldo Junior (Projeto)

Pintura de Salvador Dali
Um dia, eu vou estar à sombra do mundo,
e tudo o que vivi de mal será um sol sem sal,
que não me aquece, nem me ilumina mais.
Mais ainda: eu serei menino que quer Natal,
serei rapaz cujo carnaval é todo o mundo
que se põe fenomenal, mas sem nada de mais.
Mais ainda: eu serei adulto que quer amor,
serei senhor cujo coração é o bem profundo
que queria ter feito, e fez.

Fonte:
Texto enviado pelo autor

Simone Athayde (A Ilha Triste)


Emanuel andava apressado, esperando que aquela última oportunidade que lhe tinham acenado fosse real. Por tantos dias vagara, sem rumo e comida, que o espírito já lhe fraquejava e ele não sabia mais quanto tempo ia suportar viver daquele modo ingrato.

Não tinha nada naquela vida: nem estudo, nem dinheiro, nem tampouco lugar pro pouso noturno. Virara pouco mais que um vagabundo, e se ainda não roubara é que sua mãe, quando viva, soubera lhe ensinar o que era certo. Preguiça não tinha, era capaz de fazer qualquer serviço, mas havia tanta gente mais necessitada que ele, tanto desemprego, que só podia pôr a culpa naqueles tempos difíceis.

Enfim, com a cabeça estourando com o calor daquela terra, com o estômago nas costas de não comer nenhuma refeição decente em muitos dias, chegou ao tal porto, que apesar de ter muitos barcos velhos, muito peixe sendo limpo ali mesmo na praia, dava até gosto de ver: um mar azul que era uma lindeza só.

Parou perto do primeiro barco que viu e perguntou ao homem, que de tão ocupado com o que fazia, nem se preocupou em fitá-lo:

“Bom dia. Fiquei sabendo de um serviço lá na ilha Triste. Queria saber se o senhor pode me levar até lá.”

O homem levantou os olhos, perscrutando o jovem.

“Só quem faz essa viagem é o Preto Genésio, mas o senhor deve estar com muita precisão pra querer trabalho naquele lugar.”

“Ah, isso tô mesmo! Mas onde encontro o tal homem?”

“O barco dele sempre fica de frente pro bar. É pertinho, não tem como errar.”

Então Emanuel agradeceu, e estava tão satisfeito que não percebeu que o homem lhe queria falar mais alguma coisa, que parecia preocupado. Foi andando mais rápido até avistar o tal bar e um homem negro enrolando um cigarro de palha, sentado no barco sem se preocupar com o balanço excessivo produzido pelas embarcações que chegavam ou partiam. Alheio ao balanço das águas e ao movimento do mundo.

“O senhor é Seu Genésio?”

“Pode falar “Preto”. Preto Genésio é como todo mundo me chama”, disse o homem sem levantar a cabeça.

“Tarde. É que quero ver o serviço lá na ilha Triste. Um moço me falou que só o senhor é que faz essa viagem.”

“Verdade. Vai ter que conversar com o dono. Se ele gostar de você, te dá o trabalho.”

“Ele vai gostar. Mas o senhor pode me levar lá agora? E quanto custa? Não posso pagar muito.”

“Você me paga quando receber. Eu estou sempre indo praquelas bandas mesmo, não vai me faltar oportunidade de cobrar.”

Emanuel riu e pulou pro barco. A viagem começou e o preto ia lento, lentamente. O jovem tinha ficado atrás dele, de modo que não podia ver o rosto escuro enquanto conversavam. Não que falassem muito, na verdade, demorou bem uns dois minutos até que o barqueiro começasse uma cantiga triste, e mais uns três até que resolvesse falar.

“Tá vendo a ilha?”

“Tô. É uma lindura! Por que um lugar tão bonito pode ter um nome tão triste?”

Mas o homem não respondeu, e continuou com a cantiga.

“Há de ser um serviço duro. Veio uma chuva brava, uma ventania louca, e derrubou o barracão do homem trabalhar.”

“Não tenho medo da lida. É bom que tenha muito trabalho mesmo, porque assim fico uns dias de barriga cheia.”

“Também não há de lhe pagar muito, mas não é tratante. Se acertar, paga.”

“Antes pingar que faltar.”

Por fim chegaram. A beleza daquele lugar e o vento bom que soprava ali caíram nele como feitiço. Abriu os pulmões pra respirar fundo aquele ar, e quando olhou de novo pra ilha, viu sobre um pequeno monte, uma mulher que parecia um anjo. Tinha os cabelos da cor do ouro, tão longos e lisos que, com o vento, voavam. O rosto era tão perfeito que não parecia real. No instante em que ele se virou para perguntar ao preto quem era aquela maravilha, eis que ela desapareceu.

“Você viu, Preto? Quem é aquela?”

O barqueiro ficou muito sério. Só então Emanuel reparou nos olhos dele, que eram opacos, quase brancos.

“Quer um conselho, amigo? Não vá atrás de aparição. Faça seu trabalho, que o mais pode ser muito perigoso. Venho aqui toda semana trazer mantimentos e pegar as peças que o homem faz. Ele é artista. Na minha próxima viagem posso levar você de volta, se tiver terminado o serviço. E não enrole, quanto menos conversar e mais rápido andar, melhor pra você. Até logo.”

“Não vai me esperar?”

“Não vai ser preciso. Ninguém mais ia querer esse serviço. O homem sabe disso.”

Então Emanuel agradeceu, um pouco encabulado com tantos conselhos. Ao estender a mão pra cumprimentar o homem, sentiu um calafrio: o preto era mesmo cego.

Emanuel atravessou a areia e a parte pedregosa que vinha depois até avistar a casa. Era uma construção muito simples, não parecia ter sido feita com capricho. Havia um cômodo na parte superior e, da janelinha aberta, Emanuel pôde ver que alguém o observava. Bateu palmas e chamou. Como demorassem pra atender, andou por trás da casa, até chegar ao barracão que havia sido destruído pela chuva.

“Um estrago e tanto, né?”

Emanuel levou um susto, mas logo se recompôs. Com o chapéu nas mãos, abaixou a cabeça num cumprimento. O homem olhava-o severo, não lhe deu nenhum sorriso.

“Foi uma chuva como nunca se viu, pensei que não ficava vivo. Mas a minha casa é mais bem construída. Esse barracão foi eu que fiz e por isso não resistiu. Agora preciso de alguém que saiba trabalhar, porque não posso levar prejuízo de novo.”

“ Metade do cômodo se foi”, disse Emanuel observando atentamente. “Mas posso fazer isso ficar uma belezura.”

“E quanto tempo demora?”

“Pra um homem sozinho é serviço pra duas semanas, no mínimo.”

“Tá brincando”, disse o homem, muito irritado. “Te dou uma semana, e te ajudo se for preciso. Se não der conta pode ir dando o fora.”

Emanuel pediu calma. Sabendo que não haveria como ir embora, disse que poderia dar conta do serviço no prazo estabelecido. Então o homem, que apesar de ser forte, já tinha muitas rugas, cabelos brancos e uma barriga proeminente, começou a lhe explicar melhor o serviço, as regras que deveria cumprir, e o quanto pagaria. Disse que não gostava de conversa, nem que ficassem de andanças na sua ilha, nem que fossem na sua horta e comessem seus frutos, que já eram poucos, e que dormisse ali mesmo no barracão porque não gostava de se misturar com ninguém. Vivia sozinho que era como gostava.

Emanuel sentiu vontade de perguntar da moça, mas achou melhor não, e depois de ouvir tamanha ladainha, pensou que poderia se dar a um pequeno atrevimento.

“Posso começar agora mesmo, moço, mas é que estou com muita fome. Será que o senhor pode me arrumar nem que seja um pedaço de pão?”

O homem mandou que ele começasse a trabalhar, que logo lhe traria o que comer. E assim foi feito. Emanuel começou com a lida e algum tempo depois lhe veio uma refeição completa e farta, tão gostosa que não parecia ter sido feita por um homem que dizia viver sozinho. Depois que comeu, descansou alguns minutos e trabalhou sob a vista do patrão o resto do dia. Só parou com o escuro, porque o outro não tinha lampiões de sobra. Quando perguntou onde podia tomar um banho, teve que ouvir mais desaforos.

“Você gosta de mordomias, heim, moço? Do lado esquerdo da praia aonde vocês chegaram, tem um riachinho, que é de onde tiro minha água. Não é fria nessa época do ano, é até muito aprazível.”

Emanuel resignou-se, mas estava tão cansado que acabou por dormir depois da refeição noturna, tão boa e farta quanto a anterior. No outro dia, acordou com a aurora, e foi logo procurar o riachinho. Era um lugar bonito, agradável, e a água realmente não era fria. Ficou nu e se demorou por lá, até que viu, já com a luz plena da manhã, a mesma moça do dia anterior. Tratou de vestir-se, mas ela não estava envergonhada de vê-lo nu. Porém, quando foi conversar, ela fugiu.

Não contou nada pro patrão, mas passou o dia inteiro pensando naquela jovem. Quando foi jantar, descobriu, debaixo do arroz, um bilhete escrito com letras tortas e feias:

“Vá se banhar a meia-noite”.

E assim Emanuel fez. Mas não se banhou nu, por pudor ou medo, e acabou rápido pra esperar uma nova aparição. Ela demorou, mas veio. Desta vez chegou perto, e tinha olhos tristes.

“Quase não pude vir. Ele não dormia.”

“O que ele é seu?”

“Meu pai. Mas parece um monstro, porque me tranca nesse lugar maldito e nunca, nunca deixa que ninguém me veja. Sou tão infeliz...”

“Por que ele faz isso?”

“Diz que é pra me proteger. Diz que nunca vai me entregar para homem algum.”

“Quer que eu te ajude?”

Então ela sorriu, e Emanuel soube que poderia ser tragado por aqueles olhos verdes profundos.

“Quero que me conte coisas. Me fale sobre o que acontece do outro lado do mar.”

Emanuel começou a falar da sua vida, do que as pessoas faziam no continente. Lara, como ela se chamava, encantava-se com tudo, empolgada como criança.

“Tenho que ir”, disse, ao se assustar por ver que o dia amanhecia.

“ Não vá ainda.”

“Volto amanhã, na mesma hora.”

E ficou tão perto do rosto de Emanuel que ele pôde sentir o hálito de alecrim que exalava do sorriso dela.

“Me beija”, ela pediu.

O jovem obedeceu, mas ao invés de sentir-se feliz, teve um estranho pressentimento. Lembrou-se das palavras do preto, e soube que ali começava sua perdição.

A outra noite chegou e novamente conversaram muito, mas Lara não deixou que Emanuel a beijasse, para que ele não pensasse mal dela. E foi no quarto dia que aconteceu o acidente, que mudaria o rumo da vida de Emanuel (ou talvez o rumo de sua vida já estivesse traçado antes que ele colocasse os pés no barco do Preto).

Enquanto o patrão ajudava a carregar umas vigas pesadas para reconstruir a última parte do telhado, eis que não suportou o peso da madeira. Ao tombar, a viga caiu sobre seu tórax, num impacto que o fez urrar como um animal. O homem empalideceu e continuou gritando, sentindo muita dor. Seu sofrimento foi tanto que chamou atenção de Lara, que da casa, ouviu os gritos e achou melhor acudir. Chegou desesperada, mas quando o homem a viu, deu-lhe grande bronca.

“O que está fazendo aqui? Já para dentro.”

“Fiquei com medo que morresse.”

Enquanto isso Emanuel não sabia se tirava a viga de cima do homem, ou se admirava a beleza de Lara, mas por fim pediu:

“Moça, me ajude aqui. Esta viga é pesada, tem que ser tirada com jeito, pra não machucar mais ele.”

Sem que pudesse protestar, o homem viu os dois se ajudarem até conseguir livrá-lo. Depois, não se importou mais de ser amparado por eles até a parte interna da casa.

No quarto, que ficava no andar superior, havia uma cama de casal enfeitada com uma colcha muito bonita. Lara ajeitou o homem com tanto carinho que ele relaxou e não se preocupou mais com o intruso.

O rapaz foi ficando por ali, ajudando a jovem a colocar emplastos de ervas. Ela disse que uma costela fora quebrada, pelo menos. Por fim, vencido pela dor e pelo cansaço, o homem dormiu, e Lara e Emanuel foram para a parte de baixo, onde num cômodo único, ficava uma mistura de cozinha e sala. Numa mesa mais afastada, estavam esculturas muito estranhas e belas.

“É ele quem faz. As pessoas do outro lado gostam, é assim que vivemos.”

“São bonitas.”

“Ele tira o barro aqui da ilha mesmo. É o segredo dele: um tipo de barro especial que dá esse tom, esse brilho.”

Depois ela lhe serviu comida, e aproveitaram para se beijar, embora timidamente. Depois de algum tempo o homem chamou-os.

“Rapaz, obrigada por me socorrer. Eu devia ter deixado você me ajudar com o peso, mas fui teimoso. Agora você já conhece meu tesouro: essa é minha mulher, Lara. Pode comer aqui conosco até terminar seu serviço, e pode se banhar aqui em casa se quiser. Mas sou um homem ciumento. Não admito falta de respeito.”

“De maneira nenhuma, senhor, não sou homem de cuspir no prato que come”, disse isso enquanto ainda se embasbacava com o que o homem dissera, de ser Lara mulher dele, e não filha.

Despediu-se e reparou que Lara movia os lábios, sem emitir som, pedindo que fosse ao riacho.

Na hora costumeira ela chegou. Emanuel ficou lívido ao vê-la nua. Ela o abraçou e disse, desconsolada:

“Ele mentiu sobre eu ser mulher dele, mas é um monstro, dorme comigo. E agora que já você já sabe, quero que fique comigo.”

Emanuel quis negar, quis sair correndo, mas afundou-se naquele corpo macio, que amava, e sentiu tanto contentamento quanto angústia.

O patrão continuava de repouso, mas permanecia na parte térrea da casa, de olho em Lara. Por causa do acidente, o trabalho de Emanuel atrasou, e findada a semana, ele teve que ir com a mulher até o barco do Preto. Este levou tanto susto quando percebeu que eles estavam juntos, que perdeu o costume de ficar mais calado, e falou aflito.

“O que você faz com essa perdição, filho?”

Emanuel contou só do acidente, mas o preto, com seu instinto de cego, sentiu neles o cheiro do amor, e soube de tudo o mais.

“Ele vai descobrir. Você tá perdido.”

“Ora, descobrir o quê?”, perguntou a bela.

“Você sabe. Quer desgraçar a vida dele igual desgraçou a minha?”

“Do que você tá falando, Preto?”

¬“Da minha cegueira. Foi o homem dela quem fez isso comigo, só porque um dia, depois de muito tempo que vinha aqui, vi ela e disse que era a coisa mais linda do mundo. Ele me enfiou o canivete nos olhos, me colocou no barco, e o empurrou pro mar, e disse que aquilo era pra eu aprender a não desejar o que era dele.

Emanuel ficou pálido feito cera, aterrorizado com a história, mas Lara ficou desmentindo, nervosa.

“Por que não ficou quieta no seu canto? Você gosta é de desgraçar os outros.”

“Não vê que é mentira, Emanuel? Se fosse verdade, por que ele voltaria aqui depois de tudo?”

“Porque é o único caminho que sei fazer sem meus olhos. O caminho que já sei de cor dentro da minha alma; e porque seu homem nunca mais me amolou, e me paga direito.”

Lara não deixou o preto falar mais. Puxou Emanuel, carregando os mantimentos na outra mão. Mais na frente pararam. Emanuel estava dos mais acabrunhados.

“Vai deixar de me amar por causa disso?”

Emanuel a abraçou, sem ter coragem de perguntar de novo se aquela história era verdadeira, mas sabendo que mesmo se fosse, Lara não tinha culpa.

“Foge comigo, Lara, na próxima viagem.”

“A gente não precisa esperar até lá. Ele tem um barco escondido lá nas bandas do riachinho.”

“Então a gente pode ir agora mesmo, se você quiser. Ele nunca vai descobrir nosso rumo.”

Lara abaixou a cabeça, e Emanuel viu que ela não tinha muita certeza se queria fugir.

“Eu vou, mas não hoje, com ele tão doente. Quero que melhore mais.”

“Se melhorar muito, pode descobrir nosso plano.”

“Não. Daqui a dois dias. E vamos pra casa, que já demoramos muito.”

Viveram normalmente até o dia combinado, encontrando-se enquanto o homem dormia. Quando chegou a tal noite da fuga, caiu uma chuva violenta e Emanuel ficou chateado, achando que não poderiam ir. Foi jantar na cozinha, como o patrão permitira.

“O serviço tá indo bem.”

“É, mais dois dias e tá pronto.”

“Não vai ter jeito de você dormir lá essa noite. Pode ficar aqui na cozinha. Eu e Lara vamos nos deitar.”

Emanuel concordou, abaixando a cabeça, ressabiado em pensar que sua bela ia dormir com aquele. Aninhou-se num canto perto do fogão, que era onde estava mais quente, e só acordou com Lara chamando. A ilha parecia tremer com tanto trovão e relâmpago que caia do céu.

“Que pena. Acha mesmo que não dá?”

“Era procurar a morte nesse mar.”

“Então me beija.”

“Aqui não, Lara, é perigoso ele acordar.”

“Ele dorme feito pedra.”

E Lara começou a beijá-lo, apesar da resistência dele. E tanta era a disposição dela, que Emanuel até se esqueceu do perigo e deixou-se levar. Mas não durou muito tempo. Da rústica escada o homem gritou, com feição assustadora.

Desceu com tanta destreza como se não estivesse machucado, e investiu contra Emanuel com um soco violentíssimo.

Lara gritava, tentando defender o jovem, mas o homem a empurrou e continuou batendo em Emanuel. Este conseguiu desvencilhar-se e aplicou-lhe um golpe nas costelas, que o fez cair no chão com um gemido. Lara e Emanuel ficaram parados, olhando para ele, até que o jovem achou que tinham que ir mesmo embora e puxou a bela pelas mãos. Mas o homem levantou-se e sem que Emanuel percebesse, pegou uma faca sobre a mesa e avançou contra ele. Lara gritou, avisando-o, e Emanuel teve tempo de se defender, esmurrando o homem e jogando a faca longe. Porém, o outro era muito forte. Prensou o jovem contra a parede, enquanto tirava da cintura uma arma antes escondida, o canivete.

Emanuel segurava o braço dele, mas não tinha forças para resistir muito mais. Pediu desesperado:

“A faca, Lara! A faca!”

Mas Lara não se mexeu. Permaneceu grudada à parede, e seus lindos olhos nem piscavam.

Então Emanuel perdeu as forças, e o homem cravou-lhe o canivete muitas vezes, até perceber que se esvaia. E Lara permaneceu encostada à parede, silenciosa.

Então o homem descansou poucos minutos. Depois, sem dizer uma só palavra, carregou o corpo até a horta, que Emanuel em vida nunca pudera visitar. Com uma pá cavou um buraco, ao lado de quatro canteiros altos, onde estavam plantados pés de alecrim, e onde havia quatro cruzes.

O homem, molhado pela chuva e pelo suor, parou um pouco seu trabalho para olhar em direção à janela, e sorriu. E Lara lhe sorriu também.

Fonte:
http://www.simoneathayde.com.br/contemas.asp