terça-feira, 10 de abril de 2012

Alcantara Machado (As Cinco Panelas de Ouro) Parte 3


De barriga para o ar imaginava tão depressa, tão grandiosamente, que lutava contra a imaginação. Deus existe. Se existe. A justiça divina não falha. E vem mais depressa do que se pensa. Dormiu triste e humilhado e acordou rico. Primeiro pagava os impostos. Não precisava mais de esmolas. Depois São Paulo. Aplicava o cobre bem aplicado. Depois Rio. Depois Europa. Não. Estados Unidos. Conhecer aquele colosso. Pára, imaginação. O dinheiro é para as obras da matriz. Olhe o castigo do céu. Mas não é justo isso. Quem tem o segredo do tesouro é dono do tesouro. Depois não havia perigo. Ia de noite no cemitério e desenterrava a dinheirama. Pára, imaginação. O Crispim zelador já queimou uma madrugada os dois polacos da Colônia Sobieski que queriam avançar nos florões de bronze dos túmulos. Do Padre Dito mesmo. Subornar também não adianta. Quer dizer: é impossível. Melhor é revelar o segredo. Falar com Padre Zoroastro e revelar não: vender o segredo. Pára, imaginação. Padre Zoroastro não acredita nessas coisas. Homem, arranjava um capanga, matava o Crispim e pronto. Pára, excomungada. Bobagem. Aquele retrato ali no Diário é da Greta Garbo. Ô boa. Onde será que ela mora? Pára, sem-vergonha, cachorra, desgraçada. E o Zéquinha Silva presidente da comissão? Desaforo. É preciso arranjar outro presidente, outro tesoureiro: ele. Ai está. Regime novo: gente nova.

E o cobre com o tesoureiro.

- Você já está acordada Esmeralda?

- Eu não dormi.

- Que maçada! Vamos enterrar a excelentíssima?

- Enterre você sozinho. Você sabe que eu não gosto de ver enterro.

Dorotéia Cabral foi sepultada dentro de uma lata de gasolina e perto de um mamoeiro. Nicolau tomou mais duas xícaras de café, se arranjou e saiu. Foi para o escritório da Luz e Força. Não parava sentado. Também não parava em pé. O gerente estranhou tanto nervosismo. Perguntou:

- Que é que há?

- Osvaldo Aranha. Isto é. desculpe, nada. Dormi mal esta noite. A Dorotéia Cabral morreu.

- Não diga! Dona Esmeralda deve ter ficado bem triste?

- Ficou. Está doente até. Se me der licença eu vou ver como é que ela vai indo.

Padre Zoroastro não estava em casa. Nicolau ficou indeciso sem saber se devia ou não procurá-lo na matriz. Talvez fosse melhor conversar num lugar mais discreto. Porém a coisa era urgente. Era. Ia. Não ia. Começou a andar. Foi andando. Foi. De repente apressou o passo e tomou o caminho do cemitério.

Encontrou Crispim chupando num pito de barro perto do portão, ouvindo as queixas de um coveiro despedido por não ter mentalidade revolucionária.

- Que é que vem fazer aqui, Seu Nicolau? Morte em casa, ainda que mal pergunte?

- É. Morreu a Dorotéia Cabral. Mas não isso não.

- Morreu? De quê?

- Não sei. Doença de cachorro.

O túmulo do Padre Dito era logo na entrada. Olhou enviesado para ele.

- Estou pensando em mandar fazer um túmulo pra minha sogra.

Foi ver a sepultura da sogra. Era lá no fundo. Estavam abrindo uma cova perto.

- Quem é que vai ser enterrado?

- O Bastião.

- O Bastião da Filarmônica?

- Não. O pegador de cachorro.

- É o mesmo.

- Terceiro cachaceiro que a gente enterra este mês.

Deu uns passos em torno da sepultura da sogra para fingir que tomava a medida. E veio voltando. Bem devagarzinho. Olhando os túmulos. Aqui jaz o Doutor Manuel Bacalhau. Esse também morreu de cachaça. A memória de Dona Iracema Vaz de Castro Soares. Pra quê dona agora? Passou a vida toda na cozinha. Viandante, pára! Aqui repousam os restos mortais de Monsenhor Benedito Moura.

- Então, Crispim, não vieram mais roubar os bronzes do túmulo, não?

- Que esperança! Eu tenho sono leve e pontaria certeira!

- Sei...

De cada lado do túmulo tinha um canteirinho de cravos. O anjo de mármore jogava flores sobre a lousa. Já tinha jogado cinco. Faltava ainda jogar três.

- O caixão está debaixo da terra?

- O senhor não esteve no enterro, Seu Nicolau? Está no gavetão. Debaixo da terra está Nhá Belarmina. Faz uns vinte anos. O túmulo foi feito por Padre Dito quando muito uns dois meses antes de morrer.

- Tem razão. Não me lembrava.

Túmulo sólido, pesado. Gavetão duro de abrir. Tampa bem encaixada. Nem se perceberia que era tampa se não fosse o argolão de bronze.

- Monsenhor Benedito de Moura. Homem bom. Um santo.

- Que dúvida! Cada vez que vinha aqui arranjar o jardinzinho...

- Que jardinzinho?

- Ué! O jardinzinho que tinha! Antes do túmulo só tinha um jardinzinho e uma cruz no meio. Desse jardinzinho é que Padre Dito cuidava todas as semanas que Deus dava. Quando podia ajudava ele. E ele já sabe: me...

Nicolau disse de repente:

- Até outro dia, Crispim!

Não podia mais. Se ficava mais um minuto se traía contava tudo. Mas meu Deus do céu, como é difícil a gente guardar um segredo assim dentro da gente. Hoje mesmo precisava resolver tudo. Senão não agüentava: morria de aflição. Agora é ir almoçar que já são horas. Nem se discute: Padre Dito com a desculpa de arranjar a sepultura da velha o que fazia era enterrar ouro e mais ouro, o filho da m...

- Está falando sozinho, rapaz?

- Hein? Ah sim! Estava fazendo uns cálculos. Estou com muita pressa. Lembranças em casa. Passar bem, Abílio. Apareça.

Depois do almoço mandou Dona Esmeralda dizer para o major e o Antônio Vicente que estava doente sem poder sair de casa mas que queria muito conversar com eles. Eles que viessem logo. E na reunião convenceu os companheiros políticos de que era uma infâmia a permanência de perrepistas na comissão das obras da matriz. Era preciso organizar outra com o major na presidência e ele Nicolau feito tesoureiro.

Assentado isso Dona Esmeralda foi buscar Padre Zoroastro. Padre Zoroastro foi dizendo que sim com a cabeça mas na hora de resolver a coisa falou:

- Está tudo muito certo. Porém não pode ser.

- Por que que não pode ser?

- Não pode ser porque Zéquinha Silva é pessoa - não é - de muita confiança do bispo. É.

E não permitiu mais que Nicolau abrisse a boca. Não é? é, os amigos bem compreendiam a situação. não é? é, apertou a mão dos três, foi-se. Botando Nicolau no auge da indignação. Começou a injuriar Padre Zoroastro, a falar o diabo do bispo, a dizer coisas de Zéquinha Silva, da filha de Zéquinha Silva. Insinuou mesmo que entre Dona Isolina e Padre Zoroastro havia grossa patifaria. Então o major saiu de seu silêncio espantado:

- Mas afinal de contas, Nicolauzito dos meus pecados, o caso não tem assim tanta importância. Não se trata de cargos políticos. São cargos - como direi - são cargos... técnicos!

- Olha a grande besteira!

De seu lado Antônio Vicente não percebia também a causa de tanto ódio. Está claro que seria melhor arranjar outra comissão mas o bispo não querendo não valia a pena brigar com o bispo por tão pouco.

- Eu acho assim. Com saias a gente não briga que saí perdendo na certa.

Nicolau ia e vinha na sala bufando. Tapava os ouvidos quando os outros falavam, dava murros na parede, dizia palavrões. E por fim estourou:

- Vocês querem saber o que há, não é verdade? Vocês estão cheirando qualquer segredo, não é isso? Pois têm toda a razão: há um segredo! Eu conto. Não tenham medo não!

Contou à moda dele. E porque os outros assumiram uns ares incrédulos, até caçoistas, contou, gritou duas, três, quatro vezes o sonho da mulher.

- Caramba, carambolas! - disse o major. - É muito capaz de ser verdade mesmo! E olhem que as ervas são muitas!

- Mas quatro quintas partes são pro Nicolau - disse Antônio Vicente com um jeitinho malandro. - Quase tudo é pro Nicolau! E o resto pra matriz!

- Naturalmente! - disse Nicolau.

O major coçou a nuca, fechou os olhos, pensou, depois falou:

- Mas o nosso Nicolau tem que ser cordato, tem que ser camarada. Que diabo! A gente pode entrar aí num entendimentozinho... Hein? Que e que diz a isso o nosso amigo?

Nicolau não disse nada. E começou a andar de novo pisando duro. Houve um silêncio cacete. Antônio Vicente acabou com ele:

- Talvez... Eu também penso assim... A bolada é grande, dá para satisfazer todos... Você não acha, Nicolau?

- Digam com franqueza! Vamos! Desembuchem! O que vocês querem é ganhar no negócio, levar sua vantagenzinha, não é?

Os dois tentaram protestar mas Nicolau cortou a palavra deles:

- Pois muito bem! Eu já esperava isso! Quanto é que vocês querem? Mas fiquem desde já sabendo que da minha parte eu não cedo um tusta, ouviram bem? Agora na que é pras obras da matriz podem avançar à vontade!

O acordo custou. Mais de uma vez Antônio Vicente pegou no chapéu e ofendido ameaçou se retirar. O major porém não deixava.

- Senta-te aí, homem! Não saias que te arrependes logo!

E foi ele que disposto a não perder o negócio forçou Nicolau a se contentar com sessenta por cento. Ele e Antônio Vicente se comprometiam a auxiliar o amigo em qualquer terreno recebendo cada um quinze. Os dez restantes seriam para as obras da matriz.

- Está bem. Mas não está de acordo com a vontade de Padre Dito.

- Deixa-te de bobagens, homem! Tu modificas o sonho e acabou-se! Quem é que vai provar que o padre disse coisa diversa à tua patroa? Olhe que até me acode um trocadilho bem feliz: fica o dito do Padre Dito por não dito e pronto! Otimíssimo, hem? Não há nada como um bom negócio para pôr a gente alegre! Eu até sou capaz de pagar uma cervejinha!

Nicolau recusou. E despediu os amigos. Precisava de sossego para estabelecer um plano seguro a ser executado sem perda de tempo. Pensou o resto do dia, pensou parte da noite e na manhã seguinte combinou a coisa com os sócios.

Os 18 de Copacabana foram convocados para as 19 horas em casa do major. Compareceram dez. Nicolau arranjou mais uns malandros e marcharam todos incorporados para casa de Zéquinha Silva. A fim de exigir a renúncia coletiva da comissão. Ou ao menos a do presidente e tesoureiro que era o genro do presidente. Mas Zéquinha Silva mandou dizer que não recebia ninguém. E quando a coisa já estava quente chegaram Padre Zoroastro, o Doutor Salomão e o Prefeito Idílio. Discutiram na rua mais de meia hora. Afinal os 18 de Copacabana concordaram em que no dia seguinte haveria uma reunião na Câmara Municipal a fim de se resolver com calma e definitivamente o assunto, presentes as autoridades, interessados e pessoas conspícuas de Jataí-Vila. Concordaram a muque (Paulista não tem ânimo bélico! costumava afirmar o Prefeito Idílio) porque o Doutor Salomão mandou chamar o destacamento.

Nicolau pensou a noite toda, gastou a manhã limpando o revólver, encheu o tambor, pôs outras balas no bolso, beijou a mulher aflita, respondeu carrancudo ao sorriso da vizinha sua comadre, tomou a Rua Siqueira Campos (antiga Júlio Prestes), atravessou o Largo Juarez Távora (antigo de São Paulo), deu um esbarrão distraído no Solicitador Raimundo de Matos, não pediu desculpa, também não ouviu o palavrão do solicitador, passou pelo Correio sem perguntar se havia carta, entrou na Câmara Municipal com a braguilha da calça aberta.

- Abotoa aí! - disse o major.
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continua...

Fonte:
http://www.portalsaofrancisco.com.br/alfa/alcantara-machado-obras/contos-avulsos.php

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