domingo, 8 de abril de 2012

Luís Vaz de Camões (Os Lusíadas - Canto V: O Gigante Adamastor) Análise do Canto


Inspirado em Homero e Ovídio, o episódio do Gigante Adamastor é o mais rico e complexo do poema. de natureza simbólica, mitológica e lírica. Ele se compõe de vinte e quatro estrofes (canto V, 37 - 60), assim distribuídas:

Estrofes 37-38: introdução (2)

Estrofes 39-48: Adamastor 1 (10)

Estrofe 49: transição (1)

Estrofes 50-59: Adamastor 2 (10)

Estrofe 60: epílogo (1)

Como se vê, há uma distribuição muito equilibrada das partes: das vinte e quatro estrofes, quatro se destinam à introdução, transição e epílogo; as vinte restantes, divididas ao meio, apresentam o herói da seqüência. Tanto Vasco da Gama como o Adamastor aparecem como narradores e como personagens.

No plano histórico, simboliza a superação pelos portugueses do medo do “Mar Tenebroso”, das superstições medievais que povoavam o Atlântico e o Índico de monstros e abismos. Adamastor é uma visão, um espectro, uma alucinação que existe só nas crendices dos portugueses. É contra seus próprios medos que os navegadores triunfam.

No plano lírico é um dos pontos altos do poema, retomando dois temas constantes da lírica camoniana: o do amor impossível e o do amante rejeitado.

Adamastor, um dos gigantes filhos da Terra, apaixonou-se pela nereida Tétis. Não correspondido, tenta tomá-la à força, provocando a cólera de Júpiter, que o transforma no Cabo das Tormentas, personificado numa figura monstruosa, lançada nos confins do Atlântico.

Este episódio é importante, pois nele se concentram as grandes linhas da epopéia:

1. O real maravilhoso (dificuldade na passagem do cabo).

2. A existência de profecias (história de Portugal).

3. Lirismo (história de amor, que irá ligar-se mais tarde, à narração maravilhoso da Ilha dos Amores);

4. É também um episódio trágico, de amor e morte;

5. É um episódio épico, em que se consolida a vitória do homem sobre os elementos (água, fogo, terra, ar);

Enredo

37 - A viagem da esquadra é rápida e próspera até uma nuvem que escurece os ares surgir sobre as cabeças dos navegantes.

Porém já cinco sóis eram passados
Que dali nos partíramos, cortando
Os mares nunca doutrem navegados,
Prosperamente os ventos assoprando,
Quando uma noite, estando descuidados
Na cortadora proa vigiando,
Uma nuvem, que os ares escurece,
Sobre nossas cabeças aparece.

38 - A nuvem escura que surgiu vinha tão carregada que encheu de medo os navegantes. O mar, ao longe, fazia grande ruído ao bater contra os rochedos. Vasco da Gama, atemorizado, lança voz à tempestade perguntando o que era ela, que ela lhe parecia mais que uma simples tormenta marinha. Repare que o cenário aterrador fará a imagem do Gigante ainda mais terrível e assustadora.

Tão temerosa vinha e carregada,
Que pôs nos corações um grande medo;
Bramindo, o negro mar de longe brada,
Como se desse em vão nalgum rochedo.
"Ó Potestade (disse) sublimada:
Que ameaço divino ou que segredo
Este clima e este mar nos apresenta,
Que mor cousa parece que tormenta?"

39 - Vasco da Gama não havia terminado de falar quando surgiu uma figura enorme, de rosto fechado, de olhos encovados, de postura má, de cabelos crespos e cheios de terra, de boca negra e de dentes amarelos. Esta passagem é meramente descritiva.

Não acabava, quando uma figura
Se nos mostra no ar, robusta e válida,
De disforme e grandíssima estatura;
O rosto carregado, a barba esquálida,
Os olhos encovados, e a postura
Medonha e má e a cor terrena e pálida;
Cheios de terra e crespos os cabelos,
A boca negra, os dentes amarelos.

40 - A figura era tão enorme que poder-se-ia jurar ser ela o segundo Colosso de Rodes. Surge no quarto verso a introdução da fala do Gigante, cuja voz fazia arrepiar os cabelos e a carne dos navegantes.

Tão grande era de membros, que bem posso
Certificar-te que este era o segundo
De Rodes estranhíssimo Colosso,
Que um dos sete milagres foi do mundo.
Cum tom de voz nos fala, horrendo e grosso,
Que pareceu sair do mar profundo.
Arrepiam-se as carnes e o cabelo,
A mi e a todos, só de ouvi-lo e vê-lo!

41 - O gigante chama os portugueses de ousados e afirma que nunca repousam e que tem por meta a glória particular, pois chegaram aos confins do mundo. Repare na ênfase que se dá ao fato de aquelas águas nunca terem sido navegadas por outros: o gigante diz que aquele mar que há tanto ele guarda nunca foi conhecido por outros.

E disse: "Ó gente ousada, mais que quantas
No mundo cometeram grandes cousas,
Tu, que por guerras cruas, tais e tantas,
E por trabalhos vãos nunca repousas,
Pois os vedados términos quebrantas
E navegar nos longos mares ousas,
Que eu tanto tempo há já que guardo e tenho,
Nunca arados d’estranho ou próprio lenho:

42 - Já que os portugueses descobriram os segredos do mar, o gigante lhes ordena que ouçam os os sofrimentos futuros, conseqüências do atrevimento de cruzar os mares.

Pois vens ver os segredos escondidos
Da natureza e do úmido elemento,
A nenhum grande humano concedidos
De nobre ou de imortal merecimento,
Ouve os danos de mi que apercebidos
Estão a teu sobejo atrevimento,
Por todo largo mar e pola terra
Que inda hás de sojugar com dura guerra.

43 - O gigante afirma que os navios que fizerem a viagem que Vasco da Gama está fazendo terão aquele cabo como inimigo. A primeira armada a que se refere Adamastor é a de Pedro Álvares Cabral, que perdeu ali quatro de suas naus: o dano - o naufrágio – foi maior que o perigo, pois os navegantes foram surpreendidos.

Sabe que quantas naus esta viagem
Que tu fazes, fizerem, de atrevidas,
Inimiga terão esta paragem,
Com ventos e tormentas desmedidas!
E da primeira armada, que passagem
Fizer por estas ondas insufridas,
Eu farei d’improviso tal castigo,
Que seja mor o dano que o perigo!

44 - O gigante afirma que se vingará ali mesmo de seu descobridor, Bartolomeu Dias, e que outras embarcações portuguesas serão destruídas por ele. As afirmações são ameaçadoras, como se verá: o menor mal será a morte.

Aqui espero tomar, se não me engano,
De quem me descobriu suma vingança.
E não se acabará só nisto o dano
De vossa pertinace confiança:
Antes, em vossas naus verei, cada ano,
Se é verdade o que meu juízo alcança,
Naufrágios, perdições de toda sorte,
Que o menor mal de todos seja a morte!

45 - É citado D. Francisco de Almeida, primeiro vice-rei da Índia, e sua vitória sobre os turcos. O gigante continua ameaçador: junto a ele continua a haver perigo.

E do primeiro ilustre, que a ventura
Com fama alta fizer tocar os céus,
Serei eterna e nova sepultura,
Por juízos incógnitos de Deus.
Aqui porá a turca armada dura
Os soberbos e prósperos troféus;
Comigo de seus danos o ameaça
A destruída Quíloa com Mombaça.

46 - Nesta estrofe o gigante cita a desgraça da família de Manuel de Sousa Sepúlveda, cujo destino será tenebroso: depois de um naufrágio, sofrerão muito.

Outro também virá, de honrada fama,
Liberal, cavaleiro, enamorado,
E consigo trará a fermosa dama
Que Amor por grão mercê lhe terá dado.
Triste ventura e negro fado os chama
Neste terreno meu, que, duro e irado,
Os deixará dum cru naufrágio vivos,
Pera verem trabalhos excessivos.

47 - O gigante diz que os filhos queridos de Manuel de Sousa Sepúlveda morrerão de fome e sua esposa será violentada pelos habitantes da África, depois de caminhar pela areia do deserto.

Verão morrer com fome os filhos caros,
Em tanto amor gerados e nascidos;
Verão os Cafres, ásperos e avaros,
Tirar à linda dama seus vestidos;
Os cristalinos membros e preclaros
À calma, ao frio, ao ar verão despidos,
Despois de ter pisada longamente
Cos delicados pés a areia ardente;

48 - Os sobreviventes do naufrágio verão Manuel de Sousa Sepúlveda e sua esposa, que morrerão juntos, ficarem no mato quente e inóspito.

E verão mais os olhos que escaparem
De tanto mal, de tanta desventura,
Os dous amantes míseros ficarem
Na férvida e implacábil espessura.
Ali, despois que as pedras abrandarem
Com lágrimas de dor, de mágoa pura,
Abraçados, as almas soltarão
Da fermosa e misérrima prisão.

49 - O gigante continuaria fazendo as previsões se Vasco da Gama não o interrompesse perguntando quem era aquela figura maravilhosa. O monstro responderá com voz pesada porque relembraria seu triste passado.

Mais ia por diante o monstro horrendo
Dizendo nossos fados, quando, alçado,
Lhe disse eu: - Que és tu? Que esse estupendo
Corpo certo me tem maravilhado!
A boca e os olhos negros retorcendo
E dando um espantoso e grande brado,
Me respondeu, com voz pesada e amara,
Como quem da pergunta lhe pesara:

50 - O gigante se apresenta: ele é o Cabo Tormentoso, nunca conhecido pelos geógrafos da Antigüidade, última porção de terra do continente africano, que se alonga para o Pólo Sul, extremamente ofendido com a ousadia dos portugueses.

Eu sou aquele oculto e grande Cabo
A quem chamais vós outros Tormentório,
Que nunca a Ptolomeu, Pompônio, Estrabo,
Plínio e quantos passaram fui notório.
Aqui toda a africana costa acabo
Neste meu nunca visto promontório,
Que pera o Pólo Antártico se estende,
A quem vossa ousadia tanto ofende.

51 - Adamastor diz que era um dos Titãs, gigantes que lutavam contra Júpiter e que sobrepunham montes para alcançar o Olimpo. Ele, no entanto, buscava a armada de Neptuno, nos mares.

Fui dos filhos aspérrimos da Terra,
Qual Encélado, Egeu e Centimano;
Chamei-me Adamastor e fui na guerra
Contra o que vibra os raios de Vulcano;
Não que pusesse serra sobre serra,
Mas conquistando as ondas do Oceano,
Fui capitão do mar, por onde andava
A armada de Neptuno, que eu buscava.

52 - Adamastor cometeu a loucura de lutar contra neptuno por amor a Tétis, por quem desprezou todas as Deusas. Um dia a viu nua na praia e apaixonou-se por ela, e ainda não há algo que deseje mais do que ela.

Amores da alta esposa de Peleu
Me fizeram tomar tamanha empresa;
Todas as Deusas desprezei do Céu,
Só por amar das águas a princesa;
Um dia a vi, coas filhas de Nereu,
Sair nua na praia e logo presa
A vontade senti de tal maneira,
Que inda não sinto cousa que mais queira.

53 - Como jamais conquistaria Tétis porque era muito feio, Adamastor resolveu conquistá-la por meio da guerra e manifestou sua intenção a Dóris, mãe de Tétis, que ouviu da filha a seguinte resposta: como poderia o amor de uma ninfa agüentar o amor de um gigante?

Como fosse impossíbel alcançá-la
Pola grandeza feia de meu gesto,
Determinei por armas de tomá-la
E a Dóris meu caso manifesto.
De medo a Deusa então por mi lhe fala.
Mas ela, cum fermoso riso honesto,
Respondeu: - Qual será o amor bastante
De ninfa, que sustente o dum Gigante?

54 - Continua a resposta de Tétis: ela, para livrar o Oceano da guerra, tentará solucionar o problema com dignidade. O gigante afirma que, já que estava cego de amor, não percebeu que as promessas que Dóris e Tétis lhe faziam eram mentirosas.

Contudo, por livrarmos o Oceano
De tanta guerra, eu buscarei maneira
Com que, com minha honra, escuse o dano.
Tal resposta me torna a mensageira.
Eu, que cair não pude neste engano
(Que é grande dos amantes a cegueira),
Encheram-me, com grandes abondanças,
O peito de desejos e esperanças.

55 - Uma noite, louco de amor e desistindo da guerra, aparece-lhe o lindo rosto de Tétis, única e nua. Como louco, o gigante correu abrindo os braços para aquela que era a vida de seu corpo e começou a beijá-la.

Já néscio, já da guerra desistindo,
Uma noite, de Dóris prometida,
Me aparece de longe o gesto lindo
Da branca Tétis, única, despida.
Como doudo corri de longe, abrindo
Os braços pera aquela que era a vida
Deste corpo e começo os olhos belos
A lhe beijar, as faces e os cabelos.

56 - Adamastor não consegue expressar a mágoa que sentiu, porque, achando que beijava e abraçava Tétis, encontrou-se abraçado a um duro monte. Sem palavras e imóvel, sentiu-se como uma rocha diante de outra rocha.

Oh! Que não sei de nojo como o conte!
Que, crendo ter nos braços quem amava,
Abraçado me achei cum duro monte
De áspero mato e de espessura brava.
Estando cum penedo fronte a fronte,
Que eu polo rosto angélico apertava,
Não fiquei homem, não; mas mudo e quedo
E junto dum penedo outro penedo!

57 - Adamastor invoca Tétis, perguntando porque, se ela não amava, não o manteve com a ilusão de abraçá-la. Dali ele partiu quase louco pela mágoa e pela desonra procurando outro lugar em que não houvesse quem risse de sua tristeza.

Ó Ninfa, a mais fermosa do Oceano,
Já que minha presença não te agrada,
Que te custava ter-me neste engano,
Ou fosse monte, nuvem, sonho ou nada?
Daqui me parto, irado e quase insano
Da mágoa e da desonra ali passada,
A buscar outro mundo, onde não visse
Quem de meu pranto e de meu mal se risse.

58 - Os Titãs já foram vencidos e soterrados para maior segurança dos deuses, contra quem não é possível lutar. Adamastor anuncia, então, seu triste destino.

Eram já neste tempo meus Irmãos
Vencidos e em miséria extrema postos,
E, por mais segurar-se Deuses vãos,
Alguns a vários montes sotopostos.
E, como contra o Céu não valem mãos,
Eu, que chorando andava meus desgostos,
Comecei a sentir do fado imigo,
Por meus atrevimentos, o castigo:

59 - A carne do gigante se transformou em terra e os ossos em pedra; seus membros e sua figura alongaram-se pelo mar; os Deus fizeram dele um Cabo. Para que sofra em dobro, Tétis costuma banhar-se nas águas próximas.

Converte-se-me a carne em terra dura;
Em penedos os ossos se fizeram;
Estes membros que vês e esta figura
Por estas longas águas se estenderam;
Enfim, minha grandíssima estatura
Neste remoto Cabo converteram
Os Deuses; e, por mais dobradas mágoas,
Me anda Tétis cercando destas águas.

60 - O gigante desapareceu chorando e o mar soou longínquo. Vasco da Gama ergue os braços ao céu e pede aos anjos que os casos futuros contados por Adamastor não se realizem.

Assi contava; e, cum medonho choro,
Súbito d’ante os olhos se apartou.
Desfez-se a nuvem negra e cum sonoro
Bramido muito longe o mar soou.
Eu, levantando as mãos ao santo coro
Dos Anjos, que tão longe nos guiou,
A Deus pedi que removesse os duros
Casos que Adamastor contou futuros.

Fonte:
Passeiweb

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