sexta-feira, 6 de abril de 2012

Mia Couto (A Viagem da Cozinheira Lagrimosa)


Antunes Correia e Correia, sargento colonial em tempo de guerra. Se o nome era redundante, o homem estava reduzido a metades. Pisara um chão traiçoeiro e subira pelas alturas para esse lugares onde se deixa a alma e se trazem eternidades. Correia não deixou nem trouxe, incompetente até para morrer. A mina que explodira era pessoal. Mas ele, tão gordo, tão abastado de volume, necessitava de duas explosões.

- Estou morto por metade. Fui visitado apenas por meia-morte.-

Perdera a vida só num olho, um lado da cara todo desfacelado. O olho dele era faz-conta um peixe morto no aquário do seu rosto. Mas o sargento era tão apático, tão sem movimento, que não se sabia se de vidro era todo ele ou apenas o olho. Falava com impulso de apenas meia-boca. Evitava conversas, tão doloroso que era ouvir-se. Não apertava a mão a ninguém para não sentir nesse aperto o vazio de si mesmo. Deixou de sair, cismado em visitar no obscuro da casa a antecâmara do túmulo. O Correia perdera interesses na vida: ser ou não ser tanto lhe desfazia. As mulheres passavam e ele nada. E ladainhava: "- estou morto por metade- ".

Agora, reformado, sozinho, mutilado de guerra e incapacitado de paz, Antunes Correia e Correia tomava conta de suas lembranças. E se admirava do fôlego da memória. Mesmo sem o outro hemisfério não havia momento que lhe escapasse nessa caçada ao passado. - _Das duas uma: ou minha vida foi muito enorme ou ela fugiu-me toda para o lado direito da cabeça- . Para as recordações virem à tona ele inclinava o pescoço.

- Assim escorregavam directamente do coração- , dizia ele.

Felizminha era a empregada do sargento. Trabalhava para ele desde a sua chegada ao bairro militar. Nos vapores da cozinha a negra Felizminha arregaçava os olhos. Enxugava a lágrima, sempre tarde. Já a gota tombara na panela. Era certo e havido: a lágrima se adicionando nas comidas. Tanto que a cozinheira nem usava tempero nem sal. O sargento provava a comida e se perguntava porquê tão delicados sabores.

- É comida temperada a tristeza- .

Era a invariável resposta de Felizminha. A empregada suspirava: - ai, se pudesse ser outra, uma alguém- . Poupava alegrias, poucas que eram.

- Quero guardar contentamento para gastar depois, quando for mais velhinha- .

Metida a sombra, fumo, vapores. Nem sua alma ela enxergava nada, embaciada que estava por dentro. A mão tiritacteava no balcão. O recinto era escuro, ali se encerravam voláteis penumbras. A cozinha é onde se fabrica a inteira casa.

Certa noite, o patrão entrou na cozinha, arrastando seu peso. Esbarrou com a penumbra.

- Você não quer mais iluminação na porcaria desta cozinha?

- Não, eu gosto assim.-

O sargento olha para ela. A gorda Felizminha remexe a sopa, relambe a colher, acerta o sal na lágrima. O destino não lhe encomendou mais: apenas esse encontro de duas meias vidas. Correia e Correia sabe quanto deve à mulher que o serve. Logo após o acidente, ninguém entendia as suas pastosas falas. Carecia-se era de serviço de mãe para amparar aquele branco mal-amanhado, aquele resto de gente. O sargento garatunfava uns sons e ela entendia o que queria. Aos poucos o português aperfeiçoou a fala, mais apessoado. Agora ele olha para ela como se estivesse ainda em convalescença. O roçar da capulana dela amansa velhos fantasmas, a voz dela sossega os medonhos infernos saídos da boca do fogo. Milagre é haver gente em tempo de cólera e guerra.

- Você está magra, anda a apertar as carnes?

- Magra?-

Pudesse ser! A tartaruga: alguém a viu magrinha? Só os olhos lhe engordavam, barrigando de bondades. A gorda Felizminha gemia tanto ao se abaixar que parecia que a terra estava mais longe que o pé.

- Me esclareça uma coisa, Felizminha: porquê essa choração todos os dias?

- Eu só choro para dar mais sabor aos meus cozinhados.

- Ainda eu tenho razões para tristezas, mas você...

- Eu de onde vim tenho lembrança é de coqueiros, aquele marejar das folhas faz conta a gente está sempre rente ao mar. É só isso, patrão- .

A negra gorda falou enquanto rodava a tampa do rapé, ferrugentia. O patrão meteu a mão no bolso e retirou uma caixa nova. Mas ela recusou aceitar.

- Gosto de coisa velha, dessa que apodrece.

- Mas você, minha velha, sempre triste. Quer aumento no dinheiro?

- Dinheiro, meu patrão, é como lamina... corta dos dois lados. Quando contamos as notas se rasga a nossa alma. A gente paga o quê com o dinheiro? A vida nos está cobrando não o papel mas a nós, próprios. A nota quando sai já a nossa vida foi. O senhor se encosta nas lembranças. Eu me amparo na tristeza para descansar- .

A gorda cozinheira surpreendeu o patrão. Lhe atirou, a queimar-lhe a roupa:

- Tenho ideia para o senhor salvar o resto do seu tempo.

- Já só tenho metade de vida, Felizminha.

- A vida não tem metades. É sempre inteira- ...

Ela desenvolveu-se: o português que convidasse uma senhora, dessas para lhe acompanhar. O sargento ainda tinha idade combinando bem com corpo. Até há essas da vida, baratinhas, mulheres muito descartáveis.

- Mas essas são pretas e eu com pretas...

- Arranje uma branca, também há ai dessas de comprar. Estou-lhe a insistir, patrão. O senhor entrou na vida por caminho de mulher. Chame outra mulher para entrar de novo- .

Correia e Correia semi-sorriu, pensativo.

Um dia o militar saiu e andou a tarde toda fora. Chegou a casa, eufórico, se encaminhou para a cozinha. E declarou com pomposidade:

- Felizminha: esta noite ponha mais um prato- .

A alma de Felizminha se enfeitou. Esmerou na arrumação da sala, colocou uma cadeira do lado direito do sargento para que ele pudesse apreciar por inteiro a visitante. Na cozinha apurou a lágrima destinada a condimentar o repasto.

Aconteceu, porém, que não veio ninguém. O lugar na mesa permaneceu vazio. Essa e todas as outras vezes. _única mudança no cenário: o assento que competia à ausente visita passava da direita para a esquerda, esse lado em que não havia mundo para o sargento Correia.

Felizminha duvidava: essas que o patrão convidava existiam, verídicas e autênticas?

Até que, uma noite, o sargento chamou a cozinheira. Pediu-lhe que tomasse o lugar das falhadas visitadoras. Felizminha hesitou. Depois, vagarosa, deu um jeito para caber na cadeira.

- Decidi me ir embora- .

Felizminha não disse nada. Esperou o que restava para ser dito.

- E quero que você venha comigo.

- Eu, patrão? Eu não saio da minha sombra.

- Vens e vês o mundo.

- Mas ir lá fazer o quê, nessa terra...

- Ninguém te vai fazer mal, eu prometo- .

Daí em diante, ela se preparou para a viagem. Animada com a ideia de ver outros lugares? Aterrada com a ideia de habitar terra estranha, lugar de brancos? Nem rosto nem palavra da cozinheira revelavam a substancia de sua alma. O sargento provava a refeição e não encontrava mudança. Sempre o mesmo sal, sempre a mesma delicadeza de sabor. No dia acertado, o militar acotovelou a penumbra da cozinha:

- Venha, faça as malas- .

Saíram de casa e Felizminha cabisbaixou-se ante o olhar da vizinhança. Então o sargento, perante o público, deu-lhe a mão. Nem se entrecabiam bem de tão gordinhas, os dedos escondendo-se como sapinhos envergonhados.

- Vamos- , disse ele.

Ela olhou os céus, receosa por, daí a um pouco, subir em avião celestial, atravessar mundos e oceanos. Entrou na velha carrinha, mas para seu espanto Correia não tomou a direção do aeroporto. Seguiu por vielas, curvas e areias. Depois, parou num beco e perguntou:

- Para que lado fica essa terra dos coqueiros?-

Fonte:
Mia Couto. Contos do Nascer da Terra. Vol.1. Porto: CPAC, 1998.

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