domingo, 8 de abril de 2012

Vicência Jaguaribe (A Última Visita)


A autora é de Fortaleza / CE

Quando o último dos irmãos morreu, os herdeiros resolveram vender o casarão da família. Lá a avó criara todos os filhos e de lá o marido e ela própria haviam partido em sua viagem definitiva. Lamentei profundamente aquela venda. Mas ninguém tinha dinheiro para restaurar a enorme casa praticamente em ruínas. Vendêramos, na verdade, o terreno, o local. A estrutura de alvenaria estava condenada.

Antes da entrega da chave ao comprador, senti vontade de rever a casa. Sozinha, entrei no casarão, maior por estar vazio. Fechei a porta e dispus-me a percorrer os aposentos. De repente, a casa ganhou vida — som, cheiro, cor e movimento. E um estranho frio que me fez cruzar os braços.

A sala de visitas enfeitou-se com as modestas cadeiras de vime e com o rádio. Ouvi, então, a voz de minha avó, perguntando quem estava ali. Assustei-me. E, como uma criança que acaba de ser surpreendida fazendo arte, recuei para o vão da janela. Mas a voz tornou a soar e tive de responder:

— Sou eu, vovó. Vou entrando. — Resolvi mergulhar naquele cenário que tinha certeza (tinha mesmo essa certeza?) ser fruto de minha imaginação. Mas eu não quisera penetrar aquele planeta habitado somente por lembranças — as lembranças de meus mortos? Então? Agora não fazia sentido recuar. Tinha de ir em frente. Também não sabia se estava sentindo medo ou se era só a emoção das lembranças.

Enfiei-me pelo comprido corredor, atravessei a sala de jantar e entrei na copa. Sentada diante da almofada, a avó criando suas peças de renda. Era assim que eu a recordava sempre.

No primeiro momento, assustei-me. Não, assustei-me, não, surpreendi-me. Pois era de se esperar que a avó estivesse exatamente ali, diante da almofada, tecendo suas peças de renda. Os dedos ágeis jogavam os bilros de uma mão para outra. De vez em quando, reunia-os todos na mão esquerda, e a mão direita subia até o papelão, para mudar a posição dos espinhos que marcavam os arabescos do desenho da peça.

A avó parou o movimento das mãos e encarou-me:

— Que é que você faz aqui, minha filha?

Sua voz soou entre triste e preocupada. Perdera o tom autoritário que sempre a caracterizara.

— Vim ver a casa. A senhora sabe que ela foi vendida?

— Sei. E fiquei com pena. Uma casa tão boa! Que guarda grande parte da história de nossa família! Mas entendi. Ela se tornou um estorvo, não foi?

— Não é bem assim, não, vovó — tentei contemporizar.

Ela baixou novamente a cabeça e voltou aos seus bilros.

— Onde está a Aldenora, vovó? — Perguntei sobre a menina que ela havia criado e que morrera há alguns anos.

— A Aldenora foi para a casa dos pais. Você gostava dela, não gostava?

Respondeu-me, sem tirar a vista dos bilros e do papelão. De repente, parou as mãos e tirou do bolso do vestido uma peça de renda, enrolada em um fino pedaço de madeira. Entregou-me.

— É para você. Faça uma blusa de cambraia de linho e enfeite com ela.

Nesse momento, senti um aroma que me trazia a infância e, junto com ela, a Aldenora. Era o aroma do arroz temperado da avó, no qual, depois de pronto, ela salpicava uma colher de vinagre. Minha avó levantou-se e dirigiu-se ao velho fogão a lenha.

— Vou tirar o arroz do fogo, senão ele queima.

Mudei por um instante a direção do olhar e, quando voltei a procurar minha avó, não mais a vi. Nem a ela, nem à almofada, nem à cadeira. Olhei para as mãos e lá estava a peça de renda. Então não fora ilusão. Voltando-me para a área descoberta que acompanhava as salas e ia até o quintal, assustei-me: a trepadeira de pequeninas flores cor de rosa, que formava um grande caramanchão, estava mais viva e bonita do que nunca. Enfiei a renda no bolso da calça jeans e puxei um galho longo e cheio de flores. Mas esta trepadeira morrera juntamente com a vovó! E ninguém conseguira que pegasse novamente. Como é que estava tão bonita agora? Enrolei o flexível galho no pescoço, à guisa de colar.

Transpus a cozinha olhando para o fogão a lenha, cujas chamas crepitavam como se alguém acabasse de alimentá-lo com as finas achas que a vovó conservava no chão. E, em cima da chapa, a panela da qual exalava o cheiro de arroz temperado e salpicado de vinagre. Apressei o passo e ganhei o quintal. O grande quintal de minha avó, com uma cacimba que fornecia água também para a casa vizinha, onde morara, por muito tempo, uma enteada sua — a tia Adélia.

No meio do quintal, cordões de estender roupa, com algumas peças penduradas, molhadas como se alguém as tivesse lavado há pouco. Abaixei-me e recolhi uns galhos de boa-noite plantados na cova de um coqueiro. Olhei em frente. Lá, o quarto grande que abria para a outra rua e que, no meu tempo de criança, já se encontrava em ruína. Pegado a ele, outro espaço coberto — o depósito da lenha que alimentava o fogão, com as achas subindo até o teto, exatamente como antes, e o portão pelo qual se podia entrar e sair do casarão. Ali gostávamos de brincar, sempre debaixo dos carões da vovó — este não era lugar pra brincar; podem se machucar na lenha; pode aparecer uma cobra...

Resolvi sair pelo portão mesmo. Não me daria o trabalho de percorrer toda a casa para alcançar a porta da frente. Ou era medo o que sentia? Fosse o que fosse, como havia trazido a chave do portão — no meu tempo de criança, ele só tinha uma tramela e um ferrolho por dentro —, resolvi que sairia mesmo por ali. Olhei em direção à casa, como a despedir-me de minhas lembranças. Vindo em minha direção, já no meio do quintal, minha avó, acompanhada de um grupo de pessoas relativamente numeroso. Algumas não consegui identificar, mas outras, sim — ou porque com elas havia convivido ou porque as vira em fotografia.

Mesmo com as pernas fraquejando e sentindo a cabeça rodar, resolvi sair daquele local impregnado dos fluidos da morte. Abri o portão e, sem olhar para trás, transpus a soleira e tranquei-o. Cheguei em casa tremendo.

— De onde você vem desse jeito? E o que é isso no seu pescoço?

— Da casa da vovó — respondi, enquanto puxava o galho de trepadeira, que trazia como um colar. Que significava aquilo? O que tinha nas mãos não era aquele galho cheio de flores, mas um galho seco, sem flores, um galho morto.

— E na mão, o que você tem?

Abri a mão e lá estavam folhas e flores secas de boa-noite. Escorregando-me do bolso da calça, minha tia viu a bela peça de renda de almofada. Pegou-a e começou a desenrolá-la.

— De onde você tirou isso, menina? Que peça linda! — Era a voz de uma prima que comercializava artesanato.

— Comprei no mercado — menti —, mas só tinha essa peça. Não sei nem quem me vendeu. — Fechei a mentira, para não ter que dar explicações.

Fonte:
Câmara Brasileira de Jovens Escritores. "Contos Fantásticos" - Edição Especial 2012 - Fevereiro de 2012

Nenhum comentário: