domingo, 6 de maio de 2012

Carlos Heitor Cony (As Ligações Perigosas do Jornalismo e da Poesia)


No século passado, quando nasci e me iniciei no ofício que até hoje exerço, um dos meus espantos foi descobrir que, nas Redações de antigamente, todos, do redator-chefe ao contínuo que levava os originais para a composição, todos, sem exceção, faziam poesias, sendo o soneto o estuário preferencial para o estro geral.

Eu levava então da poesia, se não um amor entranhado, um respeito religioso, uma admiração distante e sagrada. Não conhecia até então nenhum poeta em carne e osso e, no fundo, no fundo, achava que os poetas não tinham carne nem osso. Ora, direis ouvir estrelas, vai-se a primeira pomba despertada, querida ao pé do leito derradeiro, a lua banha a solitária estrada, auriverde pendão da minha terra - todos os versos que conhecia eram desossados, feitos de éter e nuvem, nada tinham a ver com os homens que conhecia e mesmo com aqueles que não conhecia.

Até que, no final de uma tarde de distante ano, subi as escadas, combalidas e decadentes, do meu primeiro jornal, um jornal que vivia de seu passado enquanto eu queria começar a viver o meu futuro.

O secretário, que depois do dono era a autoridade máxima da Redação, chamava-se Mâncio, se não estou enganado, Mâncio Teixeira, era paraense ou maranhense. Apresentei-me e apresentei meu pequeno texto, a Central do Brasil decidira cancelar uns trens por medida de economia ou coisa equivalente.

Mal me aproximei, percebi que Mâncio apressadamente escondia a lauda que estava escrevendo, metendo-a numa pilha de matérias que ele teria de ler para encaminhar às oficinas. Meio sem jeito, como se fosse surpreendido fazendo má ação, ele leu o meu texto, corrigiu uma concordância, mas elogiou a matéria. Pediu que ficasse mais um pouco por ali, talvez precisasse de mim para fechar a primeira página.

Aproveitei uma ida dele ao banheiro e dei uma espiada na pilha de matérias, para saber como sairia a edição do dia seguinte. E encontrei a folha que ele escondera afobadamente: era uma poesia, mais precisamente, um soneto. Estava no segundo terceto e continha o uivo desesperado de uma dor de corno recente e sangrada.

Não tive tempo de ler o soneto, mas fiquei pasmo. Então um secretário de Redação, com a obrigação de fechar um jornal com cotações da Bolsa, crimes na Baixada Fluminense, crise na bancada do governo, o Flamengo mudando de técnico, o prefeito prometendo acabar com as enchentes do Catumbi -e ele suava para encaixar rimas e decassílabos, dando conta da devastação em que vivia após a certeza de que era traído.

Durou pouco meu pasmo. Cedo descobri que uns pelos outros, todos faziam seus versos, uns de forma escondida, outros abertamente, pois faziam questão de passá-los de mesa em mesa, cobrando uma opinião, mas esperando um elogio.

Frequentei outras Redações, mais nobres, com gente mais ilustre. Mas nunca esqueci o Mâncio, que morreria pouco depois, de infarto fulminante, ao subir as combalidas e decadentes escadas de sua Redação. Não era paraense nem maranhense, como eu supunha, mas de Parnaíba, no Piauí, segundo vim a saber no necrológio que alguns jornais publicaram. Era viúvo e não deixou filhos. Mas publicara na mocidade um livro de poesias, com o profético título de "Versos Inúteis".

Para compensar a inutilidade dos versos do Mâncio, encontrei pelas Redações poetas de fulgurante presença nas letras nacionais. No "Correio da Manhã", durante anos, fui colega de Carlos Drummond de Andrade, era meu vizinho no Posto 6, dava-lhe carona no meu carro, nunca o surpreendi fazendo um poema ou falando de poesia.

Nem todos tinham a sua glória e serventia. Eu preferia ler poemas que eram feitos envergonhadamente nas folgas do trabalho. Um repórter que trabalhava na editoria de esporte, cobrindo o turfe, fez um soneto intitulado "O Mosteiro de Tijolos de Feltro". O setorista credenciado no Ministério da Marinha brindou-me certa vez com um enorme poema sobre Tamandaré. Pouco depois, ele ganharia a medalha do Mérito Naval por conta de seus versos.

Quando publiquei, eu mesmo, o primeiro romance, passei a ser considerado persona grata dos editores, pelo menos do meu editor, que era o Ênio Silveira, da Civilização Brasileira.

Certo fim de noite, quando a Redação começava a ficar vazia, fui chamado ao gabinete do diretor responsável pelo jornal, um personagem imponente, de olheiras dramáticas e voz cavernosa, que já se candidatara cinco vezes à Academia e cinco vezes tivera apenas um voto de um acadêmico que era positivista como ele.

Nunca me chamara, eu até suspeitava que ele nem soubesse da minha existência. Levantou-se quando entrei em sua sala, ofereceu-me um café e pediu que lesse um soneto que acabara de fazer.

Evidente que elogiei o soneto, mas exagerei um pouco. Como castigo, ele abriu uma gaveta e dela tirou um calhamaço de versos. Que lesse com atenção e, se achasse mérito naquela produção poética, a encaminhasse ao meu editor. E, para me subornar, disse que somente eu poderia escrever-lhe o prefácio.

LEMBRANÇAS

Aos 20 anos, eu sabia latim, mas não sabia tomar um bonde. Ônibus então era mais complicado; afinal, bonde andava sobre trilhos, ônibus andava onde queria, cumprindo itinerários complicadíssimos. Deixara o seminário com odes de Horácio na cabeça, era capaz de recitar trechos inteiros do "Pro Milone" de Cícero. Mas, nas coisas práticas e necessárias, era uma lástima.

Sabendo que o filho não dera para padre, o pai achou que eu devia ser jornalista, função naquela época destinada àqueles que não davam certo em nenhuma outra. O sujeito ia trabalhar num jornal como alternativa desesperada, após quebrar a cara em outros ofícios que exigiam mais sabedoria e disciplina.

As redações estavam cheias de médicos, advogados, professores, políticos de diversas origens e finalidades, alguns até que davam certo na função principal, mas enchiam o tempo com um bico mal-remunerado, que não exigia habilitação específica, nem mesmo a de escrever razoavelmente.

Era comum a existência daqueles tipos que Lima Barreto descreveu em suas "Recordações do Escrivão Isaías Caminha". O cidadão era considerado entre os médicos por ser bom jornalista e respeitado entre os jornalistas por ser um bom médico.

Foi assim que, naquela tarde, após negociações embrulhadíssimas entre o pai e um secretário de jornal, subi as combalidas escadas da "Gazeta de Notícias", jornal que já tivera sua glória, endereço famoso na rua do Ouvidor, de cujas sacadas José do Patrocínio levantara as massas a favor da Abolição.

Um tópico da "Gazeta" derrubava ministros, falia bancos, consagrava um ator, provocava uma revolução. Durante a campanha de Canudos, houve um dia em que morreu mais gente sob as sacadas do jornal do que no arraial do Conselheiro.

O jornal vivia de seu passado, e eu queria viver um futuro que, aliás, nunca tive. Não podíamos dar certo. Apresentei-me ao tal secretário, que se chamava Mâncio – jamais conheci outro Mâncio, de maneira que não lhe guardei o nome todo, por isso o Mâncio me bastava porque o julgava único e suficiente.

Era um paraense que passava o dia corrigindo as besteiras que os outros escreviam. Nas horas vagas, fazia versos – função mais do que desculpável naquele tempo. Todos, de alguma forma, faziam versos mais ou menos por obrigação existencial. Era uma forma de superar a mediocridade da vida que se levava.

Mâncio tinha na página um pequeno espaço destinado a um soneto diário que ele próprio escrevia sob o título genérico de "Perfí...dias", assim mesmo, eram perfis de adversários ou desafetos do dono do jornal. Estava exausto, já esculhambara metade dos políticos, banqueiros e pessoas gradas do Rio de então. E, como o dono do jornal variava de adversários e desafetos conforme as circunstâncias, a outra metade não perdia por esperar.

Ele me olhou penalizado, tão jovem, sabendo latim (o pai fazia questão de proclamar essa minha única e problemática qualidade) e ali à sua frente, aguardando uma missão que fosse útil a mim e necessária à nação. Como não lhe passasse pela cabeça que eu não soubesse fazer sonetos, pediu-me que fizesse o "Perfí...dias" do dia seguinte. E deu-me o tema: Carlos Lacerda, que naqueles dias fazia campanha contra o prefeito que isentara o jornal de não sei quantas multas e emolumentos vários.

Apesar da pouca idade, eu já fizera muita coisa reprovável nos meus 20 anos, mas nunca me atrevera a fazer um soneto. Os maiores criminosos, capazes de violar sepulturas, violentar freiras e degolar criancinhas, conservam sempre um limite moral. Por exemplo, não comem carne nas sextas-feiras da Quaresma.

Recebida a missão, procurei um lugar para desovar os 14 versos dos quais dependeria o meu futuro. À frente do Mâncio havia uma mesa e cadeira empoeiradas e vazias, que me pareceram apropriadas para a função de fazer um soneto contra o Carlos Lacerda, que eu nem sabia ao certo quem era, nem o que fazia.

Houve um brado retumbante na redação. O próprio Mâncio levantou-se, vermelho de indignação: "O que é isso? Esta cadeira é do Olavo Bilac!". Levei um susto. Pelo que imaginava, Bilac havia morrido há anos, mas tive a sensação de que de repente ele iria surgir, vindo da rua ou do banheiro, para sentar ali, espanar a mesa e fazer um daqueles sonetos que lhe deram glória.

Pasmo, tendo iniciado tão mal minha carreira de jornalista e sem esperança de me recuperar às custas de um soneto imortal, lá fui eu para os fundos da redação, junto ao pessoal do turfe. Vencida a primeira dificuldade, logo tive outra: teria de encontrar uma rima para "Lacerda" e a única que eu sabia era impublicável nos jornais daquele tempo.

Mesmo assim, desovei os 14 versos que me garantiram, senão um futuro, ao menos um sanduíche de salame com caldo de cana, que o próprio Mâncio me pagou, numa pastelaria da rua Senhor dos Passos.

O SONETO

Era magro, feio, merecia o superlativo: era magérrimo e feiíssimo. Usava óculos, fumava de piteira, a voz rachada, andava mal vestido, mas tinha – milagre jamais explicado – um carrinho inglês que sempre estava de bateria arriada e precisava ser empurrado.

Trabalhava num vespertino, seu texto era barroco, cobria festividades cívicas e religiosas. Era – segundo o meu pai – uma boa alma, embora fosse ruim de corpo. Um dia, me levou para um canto da redação e recitou-me um soneto de sua lavra, os olhos faiscando de lascívia contrariada.

Esqueci o soneto minutos depois. Guardei por uns tempos o final, aquilo que os parnasianos chamavam de "chave de ouro". Transcrito em papel talvez não impressione.

Dito por ele, num canto empoeirado da redação, com sua voz rachada, a piteira nas mãos trêmulas, era uma apoteose da dor: "Passei bem junto a ela. E decerto ela nem soube que eu passei tão perto e nem suspeita que eu segui chorando!". O verso quebrado e a exclamação final faziam parte da poética e das redações daquele tempo.

Chamava-se Cardim. Domingos da Silva Cardim se não me engano. Casara-se com uma viúva tão feia e magra como ele, também boníssima alma. Não tinham filhos.

Por isso ou aquilo, Cardim apaixonava-se com freqüência e, quanto menos correspondido, mais apaixonado ficava. Deve ter feito outros sonetos, circulou pela redação um poema pornográfico e anônimo que desde o redator-chefe até o contínuo que ia buscar café na esquina atribuíram ao estro do Cardim.

Cardim morreu como um passarinho – naquele tempo era comum esse tipo de morte. O tempo passou, esqueci dele, mas nunca esqueci aquele final de lascívia contrariada. Outro dia, bestamente, depois de um dia inglório e triste, cara mais uma vez quebrada, me surpreendi recitando em causa própria: e ela nem soube que eu passei tão perto e nem suspeita que eu segui chorando!

Fonte:
http://www.sonetos.com.br/cony.php

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