quarta-feira, 9 de maio de 2012

Daniel Munduruku (O Menino Que Não Sabia Sonhar)


O escolhido

O pajé olhou com muito amor aquela criança que acabara de nascer. Sorriu e pensou na grande tarefa que teria pela frente: educar o menino na arte da pajelança, na tradição de seu povo. Ele seria o herdeiro da cultura que atravessou os séculos, passada de geração a geração pela memória dos antepassados, que contavam as histórias da criação do mundo.

Chegando a sua “uk'a”, (1) o pajé chamou os pais do menino e disse:

- Meus parentes, ouçam com atenção o que lhes vou dizer: em meus sonhos os espíritos dos sábios disseram que nosso povo será perpetuado graças à criança que hoje nasceu. Ela será um Grande Espírito. Para isso é preciso que vocês concordem com a educação que pretendo passar a ela.

Os pais se entreolharam e sorriram, pois sabiam que isso fazia parte da tradição milenar.

- Não podemos nem queremos contrariar a vontade do Grande Espírito. Entregaremos nosso filho quando chegar a hora.

A nominação

Inspirado pelos antepassados em sonho, Karu Bempô, o pajé, deu à criança o nome de Kaxi, a lua que brilha sobre os homens. Na cerimônia em que batizou o garoto, ele disse:

- Há muitas forças negativas que visam exterminar nosso povo. Os “pariwat” (2) dizem que somos os mais importantes habitantes desta terra, mas o que fazem é sempre o contrário do que falam. Querem comprar nossa terra e trazem a dor, a divisão e a inimizade. Poluíram
nosso “idibi”, (3) derrubaram o espírito de nossas árvores, expulsaram nossa caça. Mesmo assim, a cada ano nosso povo cresce e se fortalece. Nosso povo nunca será exterminado. Renasceremos das cinzas, se preciso for, para manter nossa história.

O modo de vida

Kaxi foi crescendo e passou a participar da vida social da aldeia Katõ. Quando não estava aprendendo a fazer artesanato, brincava com outras crianças. Na época da seca ou na meia-estação - entre abril e setembro -, acompanhava sua “ixi” (4) no plantio de “musukta”, (5) “wexik'a”, (6) “akoba”, (7) milho, cará, “kagã”. (8)

Isso acontecia após a coivara, trabalho masculino que consistia na derrubada e queimada de um pedaço de terreno a que a comunidade chamava de roça.

As mulheres cuidavam da “ku” (9) e das tarefas domésticas e os homens se ocupavam da caça, pesca, coivara, e dos arcos e flechas. Eles se reuniam nos fins de tarde para conversar e contar piadas. Era um povo muito alegre e cheio de disposição.

Kaxi participava dessas conversas. Desde pequeno, ouvia com atenção a história do contato entre brancos e índios, que resultou em muitas desgraças para seu povo. Um espírito de tristeza pairava sobre os presentes quando narravam as atrocidades que os “pariwat” cometiam contra os “baripnia” (10) de outras nações para se apossar das riquezas que havia no chão sagrado deles.

Algumas vezes Kaxi acompanhava as mulheres em suas andanças pelo mato atrás de folhas para fazer remédio. Passou a conhecer as propriedades de cura das plantas e ervas. Aprendeu a respeitar a natureza e a conversar com ela.

Ele brincava boa parte do dia. Logo pela manhã ia até o igarapé nadar, brincar ou competir. Depois, ocupava-se de alguma tarefa com a mãe ou o pai. Quando acabavam seus afazeres, as crianças se reuniam e contavam o que tinham feito: pescar com o pai, ir à roça com a mãe, ralar mandioca para fazer beiju ou jogar massa no tipiti. Então, tomavam um banho de rio, imitando “wasuyu”, (11) “poy'iayn” (12) e outros bichos.

Após o banho todos se reuniam em torno da fogueira para conversar. Um dia, seu pai lhe dissera que os brancos aprendem o seu modo de ser indo a um lugar a que chamam de escola. Kaxi achava estranha essa maneira de aprender, uma vez que as crianças não andavam pela floresta, não imitavam os pássaros, não sabiam fazer arapuca ou armadilha, e tudo lhes era dado pelo papel pesado a que chamavam dinheiro.

Os rituais religiosos

À medida que crescia, Kaxi ia sendo iniciado nos costumes de seu povo. Caçava, pescava, plantava e colhia junto com os adultos. Aprendia sempre mais sobre a história dos antepassados, as guerras travadas entre as várias nações, as pinturas e tatuagens corporais. E ficava atento aos vários rituais que aconteciam na aldeia. A maioria era dirigida pelo pajé: nominação, ou batismo, cura de doenças, ritos de iniciação e purificação, cerimônias de casamento, enterro dos mortos.

Nos seus dez anos de idade, considerava extremamente bonita a índole do seu povo quando se tratava de resgatar os ideais míticos, alcançar o estado de êxtase e adquirir sabedoria. Era assim que Kaxi se sentia quando participava dos rituais: em êxtase!

Um dia, após a sessão de cura do pajé, Kaxi se aproximou dele e perguntou à queima-roupa:

- Padrinho, o que o senhor estava fazendo no corpo daquela mulher?

O pajé, cansado do trabalho que realizara, sorriu para o menino e disse-lhe:

- Pequeno pajé, passe amanhã em minha “uk'a”. Antes, porém, vá até o mato e traga algumas folhas de fumo para mim.

Kaxi respondeu:

- Amanhã estarei lá quando o sol se encontrar no seu ponto mais alto.

Naquela noite, Karu Bempô teve o presságio de que havia chegado a hora de começar a preparar o garoto para a missão que o esperava. O pajé sonhou que era uma grande ave e sobrevoava a Amazônia. Durante o vôo viu grandes clareiras na mata, máquinas que comiam árvores, rios sujos. Visitou vários povos, amigos e inimigos, e viu a deterioração da sua cultura. Voou para junto de seu povo e o viu desnorteado pela aproximação dos brancos; sua gente fugia pela ausência de um espírito forte que lhe desse coragem de lutar pelo chão.

Aproximou-se mais do solo e viu a si mesmo agonizando, incapaz de auxiliar sua gente. Assustado, ele acordou. Caminhou até o terreiro e chorou. Chegara a hora de preparar o espírito de Kaxi para ajudar o povo a lutar.

No dia seguinte, o pajé disse a Kaxi:

- Pequeno pajé, é hora de contar-lhe um segredo. Estamos vivendo um momento delicado. Nosso povo corre o risco de não ter continuidade. Há pessoas que querem acabar com nossa cultura, roubando as riquezas de nossa mãe Terra. Você sabe que nosso povo sempre foi amistoso com os “pariwat”. Isso enfraqueceu nosso espírito guerreiro, e os brancos se aproveitaram dessa fraqueza para criar rivalidade entre nós. Precisamos de alguém que tenha a sabedoria dos antepassados e a juventude do guerreiro, e ajude o povo a resistir com bravura. Os espíritos dos antepassados escolheram você para ser esse líder. Não precisa assustar-se, vai demorar um pouco, ainda; mas você deve começar sua instrução a fim de saber mais e, acima de tudo, aprender a sonhar.

- O que tenho que fazer? - perguntou o jovem índio.

- A partir de agora, ficará sob minha guarda. Serei seu guia e lhe passarei o conhecimento necessário para enfrentar tudo com coragem e certeza.

- E meus pais?

- Seus pais já sabiam que isso iria acontecer.

- Por que eu?

- Não sei - disse o pajé. - O destino não é determinado por nós mesmos: somos guiados pelos antepassados.

- Tenho condições para me tornar um líder? - perguntou, curioso.

- Todos têm. Aprender não é difícil. É mais difícil dispor-se a aprender e a aprender com vontade, e saber que o que se faz não é para si mesmo e sim para toda a comunidade.

Kaxi levantou-se, olhou com carinho para o pajé e disse:

- Estou pronto, padrinho. Que seja como querem os espíritos.

A iniciação

- O pajé é um líder religioso. É ele quem preside os rituais mais importantes da aldeia, pois está investido do poder das forças cósmicas que atuam por meio dos antepassados. O pajé é uma grande energia. Sem ele, a gente se enfraquece, perde o alicerce que mantém o equilíbrio das forças espirituais, e se divide.

A partir daquele dia Kaxi passou a acompanhar o pajé em toda parte. Muitas vezes ficava dias e dias na casa dos homens sozinho a pensar sobre os ensinamentos do pajé. A cada dia aprendia coisas novas e agora, com doze anos, era o momento de passar pelo ritual da maioridade. Teria de provar a todos que já era um homem, um guerreiro e estava pronto para o matrimônio. Durante um mês, ele e mais vinte e quatro ficaram em retiro na casa dos homens, onde eram iniciados pelos pais e padrinhos na arte da caça, pesca e sobrevivência na mata. Kaxi sabia que o teste consistia em permanecer alguns dias sozinho na floresta e
dela tirar a sobrevivência necessária para vencer a prova e voltar para casa como um bravo, trazendo nas mãos alguma caça grande.

Terminado o retiro, os vinte e cinco adolescentes cantaram e dançaram por um dia inteiro no centro da aldeia. Ao despontar a lua, os homens se reuniram e o cacique assim se expressou:

- É hora de novos guerreiros provarem que são dignos de pertencer a esta nação. Encontrarão perigos e armadilhas feitas pela mãe Natureza, mas lembrem-se de que a Natureza é nossa irmã e não nossa inimiga. Vão com o Grande Espírito que anima nossa luta, vão com coragem, e que Deus os acompanhe.

Na floresta

Nos primeiros dias de viagem, o grupo permaneceu unido. Aos poucos, foram se separando. Segundo a tradição, quanto mais sozinhos ficassem, mais coragem teriam.

Após seis dias de viagem sem encontrar carne para alimentar-se, Kaxi armou a rede, chamada uru, deitou-se e recordou as palavras de Karu Bempô:

- Sonhar é a mais antiga forma de aprendizado do nosso povo. Resistimos a muitas batalhas porque soubemos ouvir a voz dos antigos, que nos falavam em sonhos. É pelo sonho que nos metamorfoseamos nos seres da natureza para ver mais adiante, viajar para longe e reconhecer os perigos que nos rodeiam. O pajé é o intérprete oficial dos sonhos na comunidade. Sem ele, o espírito das pessoas fica fraco e facilmente é vencido pelas forças inimigas.

- Mas como interpretarei o sonho de outras pessoas?

- Há tempo para tudo, meu rapaz. Um dia, você dominará os símbolos naturais dos sonhos. As pessoas não precisarão contar seus sonhos, porque você mesmo os contará a elas. É o que acontece comigo.

Quando Kaxi sonhava, não conseguia entender o sonho; bastava contá-lo ao pajé e já recebia respostas prontas. Recordou também uma noite em que os dois saíram para colher plantas na beira da floresta.

Kaxi afastou-se um pouco do pajé e, quando voltou, percebeu que o padrinho cantava uma melodia triste contando que estava chegando a hora de se reunir ao Grande Espírito. Uma intensa luz o rodeava.

- Estou prestes a passar para outra realidade. Estou triste porque não pude fazer mais pelo nosso povo, mas feliz porque ele fica em boas mãos, pois você tem se mostrado um ótimo discípulo, capaz de grandes sacrifícios.

Kaxi não quisera entabular conversa com o pajé naquele dia. Sabia que ele estava triste e não desejava perturbá-lo. No dia seguinte, aproximara-se do velho e indagara sobre a função de um líder religioso na aldeia. Karu Bempô respondera:

- Um pajé é como um médico, um profeta. Cura as feridas do corpo, pois as doenças são espíritos ruins, “cauxi”, (13) que habitam o corpo do doente. E cura as feridas da alma, procurando unir o que está desunido. O pajé, meu filho, é alguém que mostra caminhos. Os “pariwat” acham que o pajé é um enganador, porque tira da floresta os remédios que curam o corpo. Eles acham que o mal vem de fora: são comidas mal digeridas, cansaço, preocupação. Nós, pajés, acreditamos que a doença possui alma própria; ela entra no espírito da pessoa para desarmonizá-la.

A rede de Kaxi balançava num ritmo lento e constante. Ele só tinha em mente a fala do pajé antes de partir para a floresta:

- Quando você voltar, não estarei mais aqui, mas meu coração o acompanhará sempre. Enquanto estiver na floresta provando sua coragem, o Grande Espírito virá me buscar. Continuarei a ser seu guardião, pois nosso espírito continua a viver com os outros espíritos num plano mais elevado que este para proteger os que caminham nesta vida. Você já está preparado. Este é o seu momento.

Kaxi sentia-se desmotivado, enfraquecido, solitário. Não sentia a mínima vontade de prosseguir no rito de iniciação para a vida adulta. Além disso, ainda não aprendera a “jexeyxey”. (14) Como dar conta de tamanha responsabilidade?

Finalmente, o sonho

Pensando nisso, o pequeno pajé adormeceu e sonhou. Seu padrinho o guiou pelos caminhos do sonho. Kaxi entrou no espírito de uma “jakora”, (15) felino comum na floresta amazônica. Percorreu grande extensão de mata e viu homens e máquinas destruindo árvores; em seguida transformou-se em águia, sobrevoou os rios e inquietou-se. Foi cobra, entrou no espírito das árvores e ouviu sua dor. Transformou-se em “idibi” para sentir a dor dos rios, encharcados de detritos. Kaxi inquietou-se, mas não deixou de ver a inquietude de seus irmãos. Muitos usavam “doti” (16) para cobrir o corpo, envergonhados de andarem harmonizados com a mãe Terra; outros, fascinados pela tecnologia do homem branco, ouviram a caixa que fala e engana. Viu a luta de um irmão com outro por causa do papel pesado; viu seu povo com vergonha de acreditar no Grande Espírito; viu seus irmãos com medo de morrer porque se sentiam culpados de terem nascido "selvagens".

O pequeno pajé viu muitos guerreiros fortes atirados pelo chão por uma água de fogo que os deixava fora de si. Viu homens brancos que traziam essa água e negociavam para comprar suas terras. Kaxi voltou para o seu corpo e ao despertar chorou muito. Em seguida sentiu-se fraco e abatido, como se muitos dias houvessem passado. Sentia, porém, que agora estava mais preparado.

Nesse momento Kaxi viu um grande clarão na floresta. Em torno dele pairavam luzes maravilhosas. Notou um rosto conhecido a sorrir-lhe. Era Karu Bempô. Diante de tanta felicidade por se saber detentor de um conhecimento secular, Kaxi sentiu as pernas enfraquecerem e desfaleceu.

Acordou depois de algumas horas. O cansaço havia desaparecido, a fome não. Sabia que tinha uma grande missão a cumprir junto a seu povo. Sentou-se à beira da rede e ficou pensando em tudo o que tinha visto e sentido, e percebeu que era uma sensação muito agradável poder visualizar o futuro e ver com clareza os pontos que deveria atacar. Sentia-se harmonizado, completo e unido ao espírito do velho pajé que havia lhe passado todo o conhecimento que agora possuía.

Com esse espírito de gratidão Kaxi percebeu que estava na hora de retornar para o seio de sua gente. O ritual tinha sido um sucesso, pois descobrira sua verdadeira vocação. Mas ainda era preciso encontrar uma caça grande para servir à comunidade como pagamento. Ali perto encontrou uma manada de “bio”; (17) caprichou na pontaria, ferindo uma delas bem no coração. No entanto, ainda sentia fome. A uns cem metros viu uma pequena cutia à procura de alimento. Desferiu uma mortal flechada sobre o animal, que caiu desfalecido. Acendeu o fogo, assou a carne e comeu, tranqüilo. Em seguida se pôs a caminho da aldeia.

Estava cumprida uma missão: o aprendizado com seu querido padrinho Karu Bempô... Teria que iniciar outra bem mais difícil, a de conduzir seu povo rumo ao futuro e à sobrevivência...
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Nota:
(1) Uk'a é uma palavra munduruku que significa "casa".
(2) Homem branco (não índio).
(3) Água, rios.
(4) Mãe.
(5) Mandioca.
(6) Batata-doce.
(7) Banana.
(8) Cana.
(9) Roça.
(10) Parentes.
(11) Pássaros
(12) Macacos.
(13) Feitiço.
(14) Sonhar.
(15) Onça.
(16) Roupas.
(17) Anta.


Fonte:
Conta que eu conto (Ana Maria Machado, Angela-Lago, Daniel Munduruku, Heloisa Prieto, Roger Mello ; apresentação de Tatiana Belinky ; ilustrações de Mariana Massarani. - 1a. ed. - São Paulo : Companhia das Letrinhas, 2002. (Coleção Literatura em minha casa ; v. 2)

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