sábado, 19 de maio de 2012

Danilo Souza Pelloso (Seis "ladrão")


Aquela cadeira continuava a balançar na profunda insensatez. A certeza da ausência de vovó estava no meu pensamento.

No repentino lembrar do não saber o que, aquele calmo semblante fazia meus problemas parecerem mera tolice do cotidiano.

Vovô era mais carrancudo. Jogador patológico do carteado. Truco seis rato. Assim ele se divertia.

Vovó gostava de ouvir suas peripécias, principalmente quando ele pensando ganhar esperava um truco para gritar: “Seis ladrão”.

O tempo passava, assim como minhas preocupações. Vovó, de sorriso faceiro, mostrava o quanto me preocupava à toa.

– Apenas deveres de casa. – Dizia ela, em gargalhadas, a caminhar passos lentos no continuar da confecção dos biscoitinhos.

Seu comportamento fazia-me pensar que os monstros criado por mim não eram tão horripilante assim. Ela gostava do chacoalhar da cadeira, sorrindo, no ranger da madeira já envelhecida, no longo percurso de não sair para onde. Vai e vem incontido. Para companhia fazia-se o sobe e desce daquelas agulhas. Um ponto aqui, outro acolá. Assim surgiam figuras, no bordado torpe, que fazia-me pensar tratar-se da grande anônima artista.

– Seis ladrão. - Eram essas as palavras de vovô naquele intrépido jogar de cartas em destilada bebida.

Aquela velha senhora, sem pressa para uma boa prosa, gostava de provocá-lo. E como seus olhinhos brilhavam ao som do deboche.

Agora com escuro olhar, vovó continuava postada em negro vestido, rosto a maquiar em tristeza, na abrupta partida. Um caixão de fino compensado, sem brilho, esfarelando ao som da despedida. Caixa de madeira ordinária. Vovó encarcerada. As alças eram de plástico grosso, como taças em popular comemoração do espumante a não possuir o tilintar. Assim concedeu seu derradeiro.

Algo acontecera com vovó, mas o que seria? Perícia em morte acidental. Aos olhos dos oficiais, vovó com turva visão concedeu o desprazer da escorregadela na grande escadaria, açoitando a cabeça em um só golpe. Aquele brum ecoava entre paredes e versos, tentando lembrar do acontecido. Um incidente?

– Pernas a bambear a apagada carne. – Comenta a perícia.

Recordações de vovô a grande mulher. Mãos inquietas a manusear o baralho. Uma tortuosa compulsão.

Vovó continuava naquele cômico caixão de compensado. As lembranças atordoam minha mente, apoderando-se do meu pensar. Recordo-me de vovó, com sorriso afável, no enrolar da macia massa, que viraria os famosos biscoitinhos de nata. Grande idade com destreza a criação. Já vovô não esquecia o baralho: “Truco? Seis ladrões”.

Quando era açoitado no ensinar, surgia num choramingar desmedido. Vovó, no escutar, pronta para explicações. Respondia minhas indagações, ensinando-me em jabs e cruzados de direita, a me defender daqueles peraltas bambinos. Ensinava-me a arte de fazer-me entender. Bem ou mal eles iriam compreender a linguagem do gancho no queixo.

Hoje compreendo. Vovó? Uma preciosa gema. Já vovô, compulsivo no jogar. Seis ladrão. Aos gritos essas eram suas palavras. Um despautério. Vovó se divertia com a boba preocupação de vovô. De fácil zangar. Desde o sutil cair das águas, em nuvens a cometer peripécias, até a incompreensível nhem, nhem, nhem, daquele velho veículo. Tudo motivo para desabrochar seu nervosismo.

Assim vinha o jogo. Seis ladrão. Vovô nasceu, entre socos e pontapés, com enfermeiros e doutores. Intempestivo. Não aceitava ser contrariado, mas continuava a contrariar. Aquele branco fio, de andar inconstante, trazia a vovó sorrisos. Diversão da grande idade a mexer com ele. Sempre que vovô estava distraído em seus pensamentos, vovó, de mansinho, dizia para o velho escutar.

– Truco.

Ele respondia de imediato:

- Seis ladrão,- batendo na mesa.

Era uma algazarra. Não compreendia o porquê. Era seis ladrão e pronto. Lembro-me daquela vez, em que vovô entretido com as cartas na varanda, concentrado na grande partida. Eram cartas em cima de cartas quando de repente um participante gritou a fatídica palavra. Vovô era a resposta no grito que ecoou a vizinhança.

– Seis ladrão.

Neste momento a polícia interveio na tranquilidade do nosso lar. Armas em punho. Caça ao ladrão. Nervoso, vovô balbuciava, na tentativa de explicar coisa alguma. Inexistia explicação. O que falaria? Apenas um jogo de cartas? Assim vovô calado, auxiliava os policiais, na tentativa de encontrar os possíveis ladrões.

Passaram as lembranças. Ficaram os fatos. Vovó? Naquele caixão de madeira compensado. Vovô, em pé, ao lado de vovó, passando a mão no branco rosto pálido, despedindo-se, no incontido choro, do triste pensar na perda. De repente, vovó com os lábios entreabertos, num simples empurrar dos ventos, em palavras e versos, sussurra apenas para vovô.

– Truco. Seu velho safado!

Na forma incontida do emocional descontrole, vovô sem saber o que estava fazendo, bate a mão no compensado caixão, em turbulentas palavras.

– Seis ladrão.

E assim vovó sorriu e partiu, tendo a certeza do incompreensível compreender de toda a situação.

Fonte:
Painel 2012 de Novos Autores Brasileiros - Contos - Maio de 2012. Câmara Brasileira de Jovens Escritores.

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