domingo, 6 de maio de 2012

José Galas / PI (Caderno de Poemas)


ENGENHO DE LETRAS

Cansado de letras cansadas
letras de ofício
quase tão mortas
quanto o fim do dia.

É mais o que engendram
do que o engenho delas
que atrofia.

É como porfia de partilha:
uns a querem morta
outros nua.
De nada adianta copular
com a forma.
O que sobrevive
é de pura teimosia.

E pensar que o tempo passa
entre o dedal e a linha
quase num suspiro.

CABEÇA DE POETA

Não um troféu se safári, ornamento.
Um bicho vivo arrastando a carcaça
para não morrer em lugar comum:

O instinto transmutado
longe das doces palavras.

DIÁSPORA

Aqueles aos quais me apeguei
estão distantes agora
Uns morreram por terra
outros correram por fora
De sorte que nada resta
afora gibão e espora
Eu mesmo me plantei aqui
entre o mar, o sertão e a espera.

Se perguntares a quem combato
Digo-te: a mim mesmo
bicho do mato.

ARRANJOS FLORAIS

não queira no galho
colher a rosa viva
nem no livro agasalhar
a pétala caída

CRIADOR DE GATOS

deixe-me dormir
amanhã tenho tempo de sobra:
frito ovo arrumo a casa faço carinho no gato
ah!? não tenho gato!?
tanto faz
com tempo sou capaz de inventar
um.

UMA JANELA AO LADO DA CAMA

nenhuma aurora
nem pomar
meus olhos dão para alqueires
de luzes,
os automóveis passam desligados
e estou cansado desse sabor...

O HOMEM E O TEMPO

O homem pára,
fuma seu cachimbo.

Que matéria ousaria perturbá-lo?
O tempo não é feito de têmporas
nem o homem de tâmaras.
Cada um a seu feitio
engendram-se.

O homem fuma,
o tempo esfuma-se
e não passa.

CARAMUJO

às vezes me encontro caramujo
o mar vem, rola...
o caminho percorrido a água apaga
a onda passa
o mar me devolve.

ANTROPOFLOR

A flor é diferente
na boca de cada poeta
Pode ser palavra só
sem aroma, adorável
palavra beija-flor
um conto
A flor na boca de cada poeta
é a flor
que ele come.

Fonte:
Antonio Miranda.

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