quarta-feira, 16 de maio de 2012

Milton Hatoum (Nas Asas do Condor)


Quase morri de medo nas asas do Condor. Voei, voei muito alto, mas a verdade é que renasci...

Quando?

Faz muito tempo, mas me lembro do dia, mês e ano: 7 de setembro de 1958. Lembro-me também do lugar, pois há lugares da infância que ficam bem guardados na memória. Naquela época, na manhã do Dia da Independência, eu estava na beira do rio Xapuri, lá no Acre, brincando com meus amigos... Nós cavávamos buracos na areia a fim de encontrar ovos de tracajá. Em cada buraco havia dezenas de ovos que as nossas mãos transformavam em pequenas pirâmides e colinas brancas... Suávamos sob o calor inclemente, e, de vez em quando, a gente mergulhava no rio, nadava e voltava para a praia à procura de ovos... Quando terminei de construir a terceira pirâmide, tive minha primeira crise de asma. Senti falta de ar, e abri a boca para tentar respirar...

Não há nada pior do que sentir falta de ar, porque, sem ar, eu, você e o mundo inteiro não podemos viver. Meus amigos, assustados, correram até minha casa e viram minha tia Leila limpando um peixe na varanda. Apontaram para a beira do rio, e um deles disse que meu rosto estava estufado e vermelho. Tia Leila, a mais dramática de minhas tias, pensou que eu tinha me afogado no rio e correu para avisar minha mãe, que correu para o rio e entrou nas águas do Xapuri. Estava tão nervosa que não me viu na beira do rio e, é claro, não me veria nas águas do rio. Quando voltou para a praia, seu vestido azul colado no corpo e seus cabelos longos escorridos lhe davam um ar engraçado. Assim, vi minha mãe e tive vontade de rir, mas se eu mal conseguia respirar, imagine se podia rir. Minha mãe, atônita, correu para avisar meu pai, e no meio do caminho ela se lembrou de que meu pai não estavaem casa, nem na cidade. Meu pai estava viajando num barco. Ele descia e subia o rio Acre, vendendo tecidos e roupas ou trocando tecidos e roupas por pélas de borracha e sacos de castanha. Nossa casa ficava na praça Plácido de Castro, a menos de cem metros da prefeitura da cidade. Minha mãe se lembrou de que havia um médico em Xapuri, o Dr. Monte, um médico de Rio Branco que a cada dois meses visitava a cidade. Mas o Dr. Monte tinha ido atender um doente em Brasiléia, lá na fronteira com a Bolívia. Então, apavorada, ela se dirigiu à prefeitura, pois o prefeito era primo de meu pai. O prefeito correu para a praia e me viu estendido na areia, cercado por pirâmides e colinas de ovos de tracajá. Meu rosto devia estar vermelho que nem melancia, porque o prefeito olhou para mim e disse:

- Por Deus, o menino tá sufocado!

Ele olhou para o céu e disse para minha mãe e tia Leila:

- Fiquem aqui, eu vou cuidar desse menino.

Ele me pegou pelos braços. Carregou-me como se eu fosse um boneco de pano e me levou até o carro dele, um “Ford” velho e enferrujado que nunca saía da cidade, porque não havia estrada de Xapuri a nenhum lugar, nem de nenhum lugar a Xapuri. Mas havia uma estrada de barro que cortava a floresta e terminava numa pista de cascalho que devia ter uns duzentos metros. Não sabia para onde o prefeito me levava. Então eu ouvi a voz dele:

- Lá está ele, lá está o bonitão!

E quem era ele, o bonitão?

O Condor...

Nos braços do prefeito eu entrei no Condor. Era um avião verde e prateado, um bimotor alemão que passava por Xapuri a cada quinze dias e fazia uma viagem impressionante para São Paulo. O Condor escalava em seis cidades (duas da Bolívia e quatro do Brasil) antes de aterrizar na capital paulista. O prefeito, que sabia pilotar, disse ao dono do Condor que ia dar uma volta comigo. Além da falta de ar, comecei a sentir medo. Nunca viajara de avião, e agora estava num aviãozinho que parecia um sapo metálico. Tremia de medo, e, com medo e falta de ar, sentado na cabina, percebi que o avião corria na pista de cascalho. Fechei os olhos...

Minha primeira aventura: voar com falta de ar aos dez anos de idade. Quando abri os olhos, a cidade parecia uma maquete, uma cidade de brinquedo, vi os dois rios, o Acre e o Xapuri, como se fossem duas cobras amarelas. O Condor ainda chacoalhava, o barulho dos motores era infernal e o vento que entrava pela janelinha da cabina tinha a força de um furacão. Aos poucos, fui me acostumando com aquela idéia louca de voar. Estava nervoso, mas no ar. Era um milagre... e também uma alegria, pois navegando no espaço, não sei por quê, comecei a respirar melhor... Já não sentia a angústia de estar perdendo o fôlego, de abocanhar em vão um punhado de ar.

Voltava a ser como você, que respira pelo nariz, normalmente, sem ânsia, sem sufoco. O prefeito-piloto, ao notar minha melhora, sorriu. Logo depois ele riu e disse:

- Agora vamos conhecer as nuvens.

Ele puxou um pouquinho o manche, o Condor começou a subir, subir... E subimos tanto que entramos nas nuvens, essas nuvens que lá de baixo parecem enormes blocos de mármore, que nem esculturas aéreas flutuando no céu azul da Amazônia. Nuvens de todos os tamanhos e formas: nuvem-dragão, nuvem-serpente, nuvem-tartaruga, nuvens que são formas do céu da minha infância. Depois começamos a baixar, e sobrevoamos o rio Acre, sinuoso, barrento, como uma cobra-d'água sem fim. Vi um barquinho navegando perto de uma vila, imaginei que podia ser o barco de meu pai e dei um adeus na janelinha da cabina. Depois o Condor baixou ainda mais. O piloto apontou para uma árvore e disse: uma sumaumeira. Outras árvores: a castanheira, a seringueira, árvores enormes que eu via do alto. No meio da floresta, vi uma cortina esverdeada, com tons de amarelo. O piloto me disse que era um bambuzal. Vi o barracão de um seringal, o

Soledad, e canoas que pareciam de papel pardo, pequeninas e frágeis. Em vinte minutos de vôo vi coisas que só podia imaginar.

Hoje, quase quarenta anos depois desse vôo, penso que escrever uma história se parece com isso: voar, ver o que nunca vimos... imaginar.

Aterrizamos na pista de cascalho. No galpãozinho à beira da pista, minha mãe e tia Leila estavam ao lado do dono do avião. Minha mãe xingou o prefeito-piloto de louco e irresponsável; tia Leila, de cara emburrada, mal falou com ele. Mas quando me viram são e salvo, respirando como uma criança sadia, ficaram aliviadas.

Olhei para o avião na pista, e me despedi daquele sapo metálico que havia me curado. Enfim, agradeci aos céus, mas nunca perdi o medo de voar. Anos depois, iria voar muito, e em aviões ainda menores que o Condor. Mas aquele vôo foi inesquecível.

Até hoje me lembro daquela manhã em que voei no Condor e vi lá do alto o mundo da minha infância.

Fonte:
Era uma vez um conto. São Paulo : Companhia das Letrinhas, 2002.
Moacyr Scliar; José Paulo Paes; Milton Hatoum; Marcelo Coelho; Drauzio Varella

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