sexta-feira, 11 de maio de 2012

Moacyr Scliar (Era uma Vez um Conto, parte 1) O Conto se Apresenta


Olá!

Não, não adianta olhar ao redor: você não vai me enxergar. Não sou uma pessoa como você. Sou, vamos dizer assim, uma voz. Uma voz que fala com você ao vivo, como estou fazendo agora. Ou então que lhe fala dos livros que você lê.

Não fique tão surpreso assim: você me conhece. Na verdade, somos até velhos amigos. Você já me ouviu falando de Chapeuzinho Vermelho e do Príncipe Encantado, de reis, de bruxas, do Saci-Pererê. Falo de muitas coisas, conto muitas histórias, mas nunca falei de mim próprio. É o que eu vou fazer agora, em homenagem a você. E começo me apresentando: eu sou o Conto. Sabe o conto de fadas, o conto de mistério? Sou eu. O Conto.

Vejo que você ficou curioso. Quer saber coisas sobre mim. Por exemplo, qual a minha idade.

Devo lhe dizer que sou muito antigo. Porque contar histórias é uma coisa que as pessoas fazem há muito, muito tempo. É uma coisa natural, que brota de dentro da gente. Faça o seguinte: feche os olhos e imagine uma cena, uma cena que se passou há muitos milhares de anos. É de noite e uma tribo dos nossos antepassados, aqueles que viviam nas cavernas, está sentada em redor da fogueira. Eles têm medo do escuro, porque no escuro estão as feras que os ameaçam, aqueles enormes tigres, e outras mais. Então alguém olha para a lua e pergunta: por que é que às vezes a lua desaparece? Todos se voltam para um homem velho, que é uma espécie de guru para eles. Esperam que o homem dê a resposta. Mas ele não sabe o que responder. E então eu apareço. Eu, o Conto. Surjo lá da escuridão e, sem que ninguém note, falo baixinho ao ouvido do velho:

- Conte uma história para eles.

E ele conta. É uma história sobre um grande tigre que anda pelo céu e que de vez em quando come a lua. E a lua some. Mas a lua não é uma coisa muito boa para comer, de modo que lá pelas tantas o grande tigre bota a lua para fora de novo. E ela aparece no céu, brilhante.

Todos escutam o conto. Todo mundo: homens, mulheres, crianças. Todos estão encantados. E felizes: antes, havia um mistério: por que a lua some? Agora, aquele mistério não existe mais. Existe uma história que fala de coisas que eles conhecem: tigre, lua, comer - mas fala como essas coisas poderiam ser, não como elas são. Existe um conto. As pessoas vão lembrar esse conto por toda a vida. E quando as crianças da tribo crescerem e tiverem seus próprios filhos, vão contar a história para explicar a eles por que a lua some de vez em quando. Aquele conto.

No começo, portanto, é assim que eu existo: quando as pessoas falam em mim, quando as pessoas narram histórias - sobre deuses, sobre monstros, sobre criaturas fantásticas. Histórias que atravessam os tempos, que duram séculos. Como eu.

Aí surge a escrita. Uma grande invenção, a escrita, você não concorda? Com a escrita, eu não existo mais somente como uma voz. Agora estou ali, naqueles sinais chamados letras, que permitem que pessoas se comuniquem, mesmo à distância. E aquelas histórias - sobre deuses, sobre monstros, sobre criaturas fantásticas - vão aparecer em forma de palavra escrita.

E é neste momento que eu tenho uma grande idéia. Uma inspiração, vamos dizer assim. Você sabe o que é inspiração? Inspiração é aquela descoberta que a gente faz de repente, de repente tem uma idéia muito boa. A inspiração não vem de fora, não; não é uma coisa misteriosa que entra na nossa cabeça. A boa idéia já estava dentro de nós; só que a gente não sabia. A gente tem muitas boas idéias, pode crer.

E então, com aquela boa idéia, chego perto de um homem ainda jovem. Ele não me vê. Como você não me vê. Eu me apresento, como me apresentei a você, digo-lhe que estou ali com uma missão especial - com um pedido:

- Escreva uma história.

Num primeiro momento, ele fica surpreso, assim como você ficou. Na verdade, ele já havia pensado nisso, em escrever uma história. Mas tinha dúvidas: ele, escrever uma história? Como aquelas histórias que todas as pessoas contavam e que vinham de um passado? Ele, escrever uma história? E assinar seu próprio nome? Será que pode fazer isso? Dou força:

- Vá em frente, cara. Escreva uma história. Você vai gostar de escrever. E as pessoas vão gostar de ler.

Então ele senta, e escreve uma história. É uma história sobre uma criança, uma história muito bonita. Ele lê o que escreveu. Nota que algumas coisas não ficaram muito bem. Então escreve de novo. E de novo. E mais uma vez. E aí, sim, ele gosta do que escreveu. Mostra para outras pessoas, para os amigos, para a namorada. Todos gostam, todos se emocionam com a história.

E eu vou em frente. Procuro uma moça muito delicada, muito sensível. Mesma coisa:

- Escreva uma história.

Ela escreve. E assim vão surgindo escritores. Os contos deles aparecem em jornais, em revistas, em livros.

Já não são histórias sobre deuses, sobre criaturas fantásticas. Não, são histórias sobre gente comum - porque as histórias sobre as pessoas comuns muitas vezes são mais interessantes do que histórias sobre deuses e criaturas fantásticas: até porque deuses e criaturas fantásticas podem ser inventados por qualquer pessoa. O mundo da nossa imaginação é muito grande. Mas a nossa vida, a vida de cada dia, está cheia de emoções. E onde há emoção, pode haver conto. Onde há gente que sabe usar as palavras para emocionar pessoas, para transmitir idéias, existem escritores.

Alguns deles - grandes escritores - você vai conhecer agora. O José Paulo Paes, que já morreu, escrevia poemas, escrevia artigos, escrevia contos... Ele adorava crianças e adorava palavras: e, por causa disso, escreveu “A Revolta das Palavras”. Você já imaginou isso, as palavras se revoltando? Pois é. Se o Conto pode falar, as palavras podem se revoltar, não é verdade? Isso é o que José Paulo Paes diz. E depois tem o Milton

Hatoum. Ele é do Norte, de Manaus. E escreve uma linda história que se passa em Xapuri, no Acre. E o Marcelo Coelho, que é jornalista, fala sobre o primeiro dia na escola. Lembram disso? Lembram do primeiro dia na escola? O Marcelo vai ajudar vocês a lembrar. Já o Drauzio Varella é médico, um grande médico que é também escritor. Mas os médicos, e os escritores, também tiveram infância, também fizeram travessuras, e é disso que o Drauzio vai falar para vocês.

E, já que eles estão aqui, posso ir embora, porque agora vocês estão em muito boa companhia. Vou em busca de outros garotos e outras garotas. Para quem vou me apresentar:

- Eu sou o Conto.

Fonte:
Era uma vez um conto. São Paulo : Companhia das Letrinhas, 2002.
Moacyr Scliar; José Paulo Paes; Milton Hatoum; Marcelo Coelho; Drauzio Varella

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