sábado, 19 de maio de 2012

Nilto Maciel (Naomar de Almeida: O Homem como Natureza)


À medida que o tempo passa mais o homem se distancia do animal. E se aproxima da máquina. Em alguns mitos o animal chegou a ser divindade, como o fauno. Também entre os indígenas brasileiros vamos encontrar mitos em que o homem se confunde com o animal, como a caipora, gênio protetor dos animais.

Gisé, que ilustrou Ernesto Cão, visualizou magistralmente a personagem ambígua de Naomar de Almeida. A personagem aparece em flashes. Sendo uma história fragmentada (espelho estilhaçado), é composta também de fragmentos de muitas histórias de um cidadão comum que se enamora, se casa, trabalha, dirige carro. Na sua essência, um ser incomum que se perde nas ruas e nos becos, atraindo os cães da cidade. Diferentemente de Quincas Borba, que são dois: o homem e o cão, Ernesto é um ser dividido, espécie de Gregor Samsa em estado de pré-metamorfose. Homem-cão.

Diz-se metáfora o livro de Kafka. Entretanto, não se denominam assim as histórias fantásticas na literatura de cordel. Quem sabe, o criador de Joseph K. quis simplesmente escrever uma história extraordinária?

No capítulo final do Quincas Borba, Machado argumenta: “Mas, vendo a morte do cão narrada em capítulo especial, é provável que me perguntes se ele, se o seu defunto homônimo é que dá o título ao livro” (...) Naomar evitou a pergunta e deu ao seu romance o duplo título: Ernesto Cão. Não evitou, porém, a “questão prenhe de questões, que nos levariam longe”, como diz Machado no mesmo final do romance. Porque, quem há de dar resposta única a uma pergunta como esta: Ernesto era cão?

Como as divindades e os gênios, certos personagens são multiformes. Em alguns casos, porque os mitos variam de região para região. Em outros, porque, na narrativa em que o modo de narrar importa mais do que o tema, a personagem tende a se tornar como as cores na escuridão – e vai se “formar” segundo a “visão” de cada leitor.

Na idade dos reatores atômicos, qual o significado da caipora? Apenas muito maior do que quando os próprios índios cometiam o crime de fazer da caça mais do que uma forma de sobrevivência. Quando o homem se distancia cada vez mais do animal e da natureza, a história de um homem que adquire a natureza canina significa uma lição diante do desespero geral.

Fonte:
Nilto Maciel

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