quarta-feira, 13 de junho de 2012

Luís Cláudio Ferreira Silva e Marisa Corrêa Silva (A Personagem Feminina em Saramago)


RESUMO: Durante séculos a mulher foi vista como ―o outro‖, contra o qual o homem impunha seu poder, devendo ser subserviente nas sociedades patriarcais e detentoras do poder, o que descreve a nossa e as sociedades de modelo eurocêntrico em geral. Simone de Beauvoir, em Segundo Sexo, teoriza sobre as origens desse fenômeno, numa obra fundamental para entender a situação feminina. E sua estereotipação se transfere também para o campo literário, onde podemos ver personagens femininas que são dominadas pelas prerrogativas masculinas. Far-se-á uma pequena explanação dessas representações femininas no campo literário. Em seguida, focaremos três romances de José Saramago, Ensaio Sobre a Cegueira, Jangada de Pedra e Memorial do Convento, centrando o foco em personagens que, no universo desse autor, são representadas de forma pouco convencional em seus fazeres e poderes e saber se elas mantém a imagem cristalizada de mulher ou se, ao contrário, elas rompem com tais estereótipos.
PALAVRAS-CHAVE: Crítica Feminista, Personagem Feminina, Gênero, José Saramago.

1 - A condição feminina e crítica feminista

É comum mesmo em uma época que se auto-intitula moderna ouvir frases como ― lugar de mulher é na cozinha‖, ―ser mãe é padecer no paraíso‖, ―tem coisas que só os homens podem fazer‖ etc. O rompimento de muitas barreiras nos campos econômico, tecnológico e medicinal – só para citar alguns – parece não ter tido muito reflexo no que tange à condição feminina.

Claro está que nos tempos atuais as mulheres conseguiram uma certa independência financeira: hoje podem trabalhar, serem bem remuneradas e serem as responsáveis por manter financeiramente um lar. Contudo, há um eco que não cessa de incomodar os ouvidos, herança de um legado patriarcal que assolou as mulheres durante séculos. A mulher sempre foi tida como ―o outro‖ e ainda o é.

Há tempos que a mulher luta pela melhoria de suas condições, e por muito tempo não conseguiram muito avanço. De fato, a questão feminista passou a ter uma voz - talvez ―rouca‖, no entanto uma voz - nos últimos dois séculos. Vem em busca do direito de igualdade de remuneração salarial, direto a voto, entre outros. na segunda metade do século XIX o feminismo político começou a se organizar como movimento, mais especificamente na Inglaterra e nos Estados Unidos. Através de documentos e petições, esse movimento foi em busca da igualdade legislativa, ou seja, do voto, já que o mesmo significava a maior bandeira feminista, pois, a partir dele, outros objetivos poderiam ser alcançados. Contudo, foi exatamente nesta época que, na Inglaterra, durante a Era Vitoriana, a mulher foi majoritariamente discriminada, como se vê nas palavras de Zolin:

A mulher que tentasse usar seu intelecto, ao invés de explorar sua delicadeza, compreensão, submissão, afeição ao lar, inocência e ausência de ambição, estaria violando a ordem natural das coisas, bem como a tradição religiosa [...] a condição de subjugada da mulher deve ser tomada como sendo de vontade divina (ZOLIN in BONICCI & ZOLIN, p. 164).

Vê-se que se utilizou ao longo da história, e porque não dizer, utiliza-se até os dias de hoje, vários meios para manter a mulher como submissa, e um dos mais fortes é a tradição religiosa, que ―obriga‖ a mulher a manter-se como subjugada em relação ao sexo masculino dominante. Segundo Pierre Bourdieu, o estado e o clero seriam os responsáveis pela perpetuação desses valores, como ele diz em seu livro A Dominação Masculina (2005):

Teríamos que levar em consideração o papel do estado, que veio ratificar e reforçar as prescrições e proscrições do patriarcado privado [...] Sem falar no caso extremo dos estados paternalistas, realizações acabadas da visão ultraconservadora que faz da família patriarcal o principio e o modelo da ordem social como moral, fundamentada na preeminência absoluta dos homens em relação às mulheres [...] (BOURDIEU, 2005, p. 105).

A perpetuação de todos esses valores foi feita por meio de fortes estruturas, que, por conta de seus próprios interesses fixaram a mulher como submissa e inferior. Tanto a sociedade quanto a igreja, fixavam suas justificavas em um ponto principal: família. Segundo o autor, essas instituições pregavam a ―pureza‖ feminina em prol da constituição da família. Uma mulher revolucionária, que fugisse aos padrões, tanto de esposa fiel quanto na utilização de trajes mais ousados atingiria a moral e os bons costumes, não sendo apta, assim, a constituir família.

É, sem dúvida, à família que cabe o papel principal na reprodução da dominação e da visão masculinas; é na família que se impõe a experiência precoce da divisão sexual do trabalho e da representação legítima dessa divisão [...] Quanto à Igreja, marcada pelo antifeminismo profundo de um clero pronto a condenar todas as faltas femininas à decência, sobretudo em matéria de trajes, e a reproduzir, do alto de sua sabedoria, uma visão pessimista das mulheres e da feminilidade (BOURDIEU, 2005, p. 103).

Em outras palavras, perpetuando a família baseada na religião, perpetuava-se, então, a submissão feminina. Inclusive criam-se mitos. Vê-se o exemplo da gênese bíblica judaico/cristã que conta o nascimento de Eva, a primeira mulher, a partir de uma parte da costela de Adão, seu homem. Ela não foi criada juntamente com Adão, foi moldada a partir de uma parte do seu corpo. Deus não a criou por sua vontade simplesmente, mas por ver Adão solitário e triste, ou seja, criou-a com um único propósito: destiná-la ao homem.

Nem só sua criação é um mito de subserviência, mas também sua atitude que causou a expulsão do paraíso é também um mito que a enquadra como a megera, algo que vêm das trevas para afastar o homem de seu contato com Deus. Ao comer a maçã e a ―ludibriar‖ o homem para que esse também comesse do fruto, Eva passa a ser a culpada do desligamento com o divino. Além de serva, ela é aquela que também não se pode confiar, que tem pensamentos divergentes, que leva o homem para longe do seu verdadeiro caminho.

Simone de Beauvoir, grande referência na crítica feminista diz que nas sociedades mais primitivas, o homem tinha que sair à caça, visto que a mulher tinha que cuidar da prole. Sua inferioridade física em relação aos homens, que tinham que empenhar pedras e armas, pode até ter ajudado na construção da dicotomia de gênero, mas não foi um dos principais fatores, já que suas tarefas domésticas – fabricação de vasilhames, tecelagem, jardinagem e colheita – eram de fundamental importância na vida econômica dessas sociedades.

Porém, quando um povo passou a conquistar outro, a fazer escravos, a se impor em relação a outras tribos é que a mulher sucumbe. Ao menos é o que afirma Beauvoir em seus estudos:

Um trabalho intensivo é exigido para desbravar florestas, tornar os campos produtivos. O homem recorre, então, ao serviço de outros homens que reduz à escravidão. A propriedade privada aparece: senhor dos escravos e da terra, o homem torna-se também proprietário da mulher. Nisso consiste a grande derrota do sexo feminino (BEAUVOIR, 1949, pg. 74).

Sua submissão, segundo Beauvoir, se inicia, então, com o advento da posse e da propriedade privada. Ela já não é mais aquela com quem se divide igualmente o trabalho. Mas se torna também posse do conquistador, escrava do dominador. Anteriormente, o outro, o ser contra o qual o homem de sua tribo se impunha era um mero animal que serviria de alimento ou os outros homens de outras tribos quando essas se punham em batalha. A partir do momento em que o conceito de posse emerge, ela passa a ser o outro contra o qual o homem se impõe. Lá fora do lar, ele se impõe na guerra para suas conquistas, e essa imposição reflete dentro do lar, relegando a mulher ao seu papel de objeto-posse. A partir daí o homem reivindica a colheita, bem como os filhos: é o aparecimento da sociedade patriarcal e detentora do poder baseada na propriedade privada. Quando casada, liberta-se do pai, mas passa então a ser propriedade do marido, não tem voz, não faz suas leis, não impõe seus pensamentos.

Diz-se que a mulher acaba por tornar-se inconscientemente submissa por várias razões. Uma delas é sua passividade na relação sexual. Ela espera, passiva, a entrada ―triunfante‖ do homem, o ser ativo na relação. Logo, pode-se entender que possuir um pênis é possuir o poder dentro das relações. Se o homem impõe-se socialmente, intimamente o instrumento que o leva a permanecer com esse poder é o falo. Lê-se Beauvoir ―O homem exalta o falo na medida em que o apreende como transcendência e atividade, como modo de apropriação do outro‖ (IBIDEM, 205).

2 - A mulher na literatura

A mulher também ficou, por longas décadas e séculos, com um papel secundário nas obras literárias. Aos homens eram dedicadas as principais personagens, as discussões, aventuras e reflexões. Lucia Zolin discute a respeito do estereótipo feminino nas obras literárias. Segundo ela, nas narrativas de autores masculinos, tudo tem uma perspectiva e um direcionamento totalmente masculinos, como se todos os seus leitores também o fossem. Logo, as personagens femininas ficam deixadas em um segundo plano, seguindo paradigmas de estereótipos e papéis.

[...] as críticas feministas mostram como é recorrente o fato de as obras literárias canônicas representarem a mulher a partir de repetições de estereótipos culturais, como, por exemplo, o da mulher sedutora, perigosa e imoral, o da mulher como megera, o da mulher indefesa e incapaz, e entre outros, o da mulher como anjo capaz de se sacrificar pelos que a cercam. (ZOLIN, p. 170).

Podemos enquadrar, segundo as definições dadas acima, algumas das personagens mais importantes das Literaturas Brasileira e Portuguesa. A mulher descrita somente como corpo, feita para o sexo, aquela dedicada aos delírios da carne, sedutora e perigosa pode ser representada pela personagem. Lúcia do romance Lucíola de José de Alencar.

Lúcia saltava sobre a mesa. Arrancando uma palma de um dos jarros de flores, trançou–a nos cabelos, coroando–se de verbena, como as virgens gregas. Depois agitando as longas tranças negras, que se enroscaram quais serpes vivas, retraiu os rins num requebro sensual, arqueou os braços e começou a imitar uma a uma as lascivas pinturas; mas a imitar com a posição, com o gesto, com a sensação do gozo voluptuoso que lhe estremecia o corpo (ALENCAR, 1985, p. 42-43).

Vemos também muito fortemente na literatura o estereótipo de mulher pura, incapaz de maldade, sendo sempre representada com adjetivos alvos, elevada ao estado de anjo ou divindade:

Descansar nesses teus braços Fora angélica ventura: Fora morrer — nos teus lábios Aspirar tua alma pura! Fora ser Deus dar-te um beijo Na divina formosura! (AZEVEDO, 1996, p. 51)

Como a mulher que vive para o trabalho, servindo o homem, podemos ver Bertoleza, de O Cortiço. Sofrida, sem ter a quem recorrer, vê como único caminho trabalhar sol a sol para João Romão, português que lhe mandava e desmandava.

Como sempre, era a primeira a erguer-se e a ultima a deitar-se; de manhã escamando peixe, à noite vendendo-o à porta, para descansar da trabalheira grossa das horas de sol; sempre sem domingo nem dia santo, sem tempo para cuidar de si, feia, gasta, imunda, repugnante, com o coração eternamente emprenhado de desgostos que nunca vinham à luz. Afinal, convencendo-se de que ela, sem ter ainda morrido, já não vivia para ninguém, nem tampouco para si, desabou num fundo entorpecimento apático, estagnado como um charco podre que causa nojo (AZEVEDO, 1997, p. 133).

Resumidamente, a mulher ou é vista como angelical, submissa e fiel ou é megera, objeto de sexo e semeadora da discórdia. É claro no exemplo a seguir, retirado da obra Inocência, de Visconde de Taunay:

Esta obrigação de casar as mulheres é o diabo!.. Se não tomam estado, ficam juradas e fanadinhas...; se casam podem cair nas mãos de algum marido malvado... E depois, as histórias! Ih meu Deus, mulheres numa casa, é coisa de meter medo... (TAUNAY, 1998, p. 27).

Ou seja, há certo modelo de mulher e ―feminilidade‖, que se traduz quase como ―passividade‖, ou mesmo ―sexualidade‖ ou é demonizada como no trecho acima. São dois pólos opostos que as representam, estereotipando-se nos dois, petrificando-a em uma imagem inautêntica.

A mulher representada na literatura, entrando num circuito, produzindo efeitos de leitura, muitas vezes acaba por se tornar um estereótipo que circula como verdade feminina. Presa de representações confunde significante e significado e busca estabelecer uma continuidade do signo com a realidade (BRANDÃO, 2006, p. 33).

3 - A mulher em Saramago

As narrativas não foram escolhidas por acaso. Há nelas personagens femininas que são marcantes por sua força de atuação. Mulher do Médico, de Ensaio sobre a Cegueira, sacrifica-se, logo no início da obra, em prol do marido. Ela o acompanha até ao manicômio onde os cegos estão sendo alojados, fingindo estar também cega para, assim, estar junto dele. A partir dessa atitude, outros fatos importantes se desencadeiam e tornam sua participação na fábula de extrema importância. A sua imunidade acaba se tornando um peso para ela mesma. Enquanto os outros estão cegos e jogados à barbárie, ela, com os seus olhos literalmente abertos, acaba por testemunhar toda a decadência humana, física e moral. No entanto, ela não se entrega, sacrifica-se novamente, desta vez em prol dos cegos de sua camarata: reivindica medicamentos para os feridos, demanda mais comida para a ala que passa fome, dá banho nas outras mulheres e ajuda os feridos.

Sua pureza, ou se preferirmos, sua não altivez, faz com que ela sequer considere a hipótese de tirar proveito da visão intacta, por exemplo, pegando mais comida para si. Ela compartilha os horrores da situação, seguindo com outras mulheres voluntárias até a ala vizinha para servirem, com seus corpos, como moeda de troca por comida para os habitantes da sua ala. E essa ―superioridade‖ que ela tem sobre os outros, ou seja, o fato de enxergar em meio a cegos, ao invés de trazer vantagens, leva-a ao perigo. Após assassinar com uma tesourada o líder da camarata que fazia das mulheres objeto de estupro e/ou prostituição, ela correu o risco de ser entregue por sua própria ala ao covil dos lobos da camarata três. Correu o risco, também, de se tornar escrava dos próprios cegos, guiando-os aos banheiros, lavando suas roupas, etc. Portanto, sua imunidade, ao mesmo tempo em que fortalece sua condição de mulher-sujeito, que se coloca como uma líder, também a coloca em perigo.

Sua força de tutora dos cegos leva-a ao encontro do abuso, recordando-nos de uma figura da mitologia celta: o rei casado com a terra, soberano cuja vida seria oferecida em sacrifício na eventualidade de seca e fome. O ditado ―em terra de cego, quem tem um olho é rei‖ é assumido por ela, mas não no sentido que normalmente se imagina: ser rei nesse contexto significa responsabilidade, cumplicidade e sacrifício, em vez de vantagens, imunidade e ócio.

Tentando fazer uma leitura e tentando encaixá-la nos estereótipos femininos encontrados na literatura escrita por homens, ela bem se aproxima daquela cuja função é se anular perante aos outros, sendo pura e compreensiva (mesmo diante da traição do marido com a amiga), já que ela realmente se sacrifica pelos outros. Porém, ela é uma personagem que foge desses estereótipos. A Mulher do Médico age, faz com que as coisas aconteçam, fortalece-se e lidera todos em meio a uma sociedade patriarcal e imunda. Ela se rebela, enfrenta o perigo ao entrar na camarata dos bandidos para assassinar seu líder. Vê-se que sua imunidade não é a razão que a faz líder, apenas reforça sua liderança dentro do manicômio e fora dele. Desde o início da obra, pode-se perceber sua determinação e convicção, ao se proclamar cega, mesmo não estando cega verdadeiramente, para acompanhar o marido até o manicômio.

Blimunda, protagonista de Memorial do Convento é filha de uma condenada à fogueira, ela conhece Baltazar justamente durante a execução de sua mãe. A sua primeira manifestação de independência ocorre aí: sem conhecê-lo, leva-o para morar consigo.

Nota-se, também, que no casal Baltazar/Blimunda há uma igualdade de papéis. Não há, entre eles, dominador e dominado. Ao contrário, no casal da nobreza, ou seja, na relação entre o Rei e a Rainha, fica evidente a condição da mulher em relação ao patriarca: a soberana serve apenas para a reprodução; em outras palavras, para dar um herdeiro varão ao trono. A esterilidade da soberana pode desgraçá-la, uma vez que transferiria a coroa para um parente próximo do rei. Em meio à nobreza, a relação de poder existente na esfera social se transfere para a esfera matrimonial. Na pobreza, percebe-se, como dito acima, que o casal se coloca no mesmo nível hierárquico: outro ponto importante na leitura de Blimunda. Vê-se que nas classes populares a mulher tem maior liberdade e nem mesmo a virgindade, dentro dessas classes, é considerada um bem tão precioso. Essa liberdade de ação é bem explorada por Saramago, em contraposição à mulher anulada socialmente e sem força de ação, ou seja, a Rainha. Enquanto uma leva um homem para morar consigo e estabelece dentro do seu relacionamento uma igualdade hierárquica de papéis, a outra é anulada pela configuração de poder existente dentro do casamento entre nobres.

Por força de sua ―estranheza‖, ou seja, seu poder de visão (Blimunda podia ver as pessoas por dentro, tanto seu interior físico quanto suas vontades, se estivesse em jejum) ela se torna imprescindível para o vôo da Passarola. . Ora, se o vôo pode ser lido, no romance, como metáfora da liberdade, o papel de Blimunda como a única personagem que pode reunir os elementos (vontades) imponderáveis, etéreos, que serão necessários na engenharia renascentista dessa liberdade, ganha um significado inequívoco.

Depois do sumiço de seu companheiro, que fez um vôo com a Passarola e nunca mais foi visto, Blimunda peregrina todo o chão de Portugal em busca de seu amado. Procura-o por nove anos, indo de terra em terra, povoado em povoado, cidade em cidade. Tal atitude poderia ser considerada, por um lado, como uma atitude de submissão e fidelidade ao seu marido; por outro, pode-se considerar essa posição de Blimunda como força de mulher-sujeito, por ser fiel a si, ao seu amor, aos seus princípios, enfrentando as convenções sociais de sua época, recebendo o rótulo de louca que vem não se sabe de onde e vai não se sabe para onde. Chega até mesmo a enfrentar um apedrejamento nessa sua peregrinação. Contudo, ela não esmorece, vai até o fim, e encontra seu amado a arder na fogueira da Santa Inquisição.

Para finalizar a respeito de Blimunda, ela também não se encaixa nos paradigmas preconceituosos enraizados na literatura. De indefesa Blimunda nada tem. Como classificar como indefesa alguém que, ao sofrer tentativa de estupro por um frade, tem força para matá-lo e fugir. Megera ela é tampouco. Sabe-se que Blimunda, na busca por Baltazar, é perseguida por esse frade, e só comete o crime em legítima defesa. Sua busca incansável por seu amor e a resistência ao apedrejamento mostram sua força, a de uma mulher que consegue se destacar em um universo falocêntrico e patriarcal, fugindo aos padrões de representação feminina.

Para ambas as personagens, os efeitos e acontecimentos inexplicáveis ajudam no fortalecimento de suas personalidades. Porém, tais fenômenos apenas acrescentam força à já firme personalidade dessas mulheres, são apenas uma força que as leva emergirem de um mar dominado pelo masculino. Tanto a Mulher do Médico quanto Blimunda fogem dos estereótipos femininos arraigados na Literatura. Em se tratando da primeira, desde o início da obra ela toma sua posição de líder e enfrenta todos os problemas que lhe atravessam o caminho. Quando a situação está se encaminhando para uma dominação total, tanto moral e física, por parte dos bandidos da ala três, ela toma uma decisão: assassinar seu líder. E o faz apesar de sua consciência acusá-la de que acabara de matar um homem. Sua ―não altivez‖ em não se aproveitar da sua imunidade para tornar-se uma tirana também reforça seu caráter. É mulher que atua em meio a uma sociedade onde os homens ditam as regras.

Em Jangada de Pedra, livro do mesmo escritor, Joana Carda, que acabara de perder do marido, encontra quatro pessoas com as quais se passaram fenômenos inexplicáveis durante o desprendimento da Península Ibérica do resto da Europa. Joana Carda é única figura feminina em meio a três homens, e mesmo assim ela se sobressai tomando atitudes, dizendo coisas que só uma mulher de forte caráter pode fazer. Ao se apaixonar por José Anaiço, Carda (que curiosamente significa ―um tipo de máquina que desembaraça as fibras têxteis‖ e ao mesmo tempo ―máquina que dilacera carnes‖) não hesita, toma a atitude de beijá-lo, mesmo correndo o risco de ser considerada fútil perante aos outros:

Disse Joana adeus até amanhã, e no último instante, quando já tinha um pé no chão, virou-se para trás e beijou José Anaiço, na boca, pois então, não esse disfarce de face ou comissura, foram dois relâmpagos, um de rapidez, outro de choque, mas deste prolongaram-se o efeito, o que não seria o contato dos lábios, tão doce, se tivesse prolongado (SARAMAGO, 2006: 134 - 135).

Se a atitude de Joana Carda fosse atribuída a um homem, este estaria seguindo a ordem natural das coisas. Entretanto, atribuída a uma mulher, essa atitude poderia ser vista com ―maus olhos‖. Mas Carda não teme tais preconceitos, sua vida já estava desintegrada com a perda do casamento, ela arrisca amar e não se arrepende. Toma outras iniciativas como aquela que quando se estava por decidir quem dormiria aqui ou ali na casa de Joaquim Sassa, tendo apenas uma cama de casal, Joana Carda decide e põe fim ao impasse:

Mas dois minutos ainda não tinha passado e aí estava Joana Carda a dizer em voz clara, Nós ficamos juntos, em verdade está o mundo perdido se as mulheres tomam iniciativas deste alcance, antigamente havia regras [..] mas nunca por nunca ser este despautério, esta falta de respeito diante de um homem de idade, e ainda dizem que as andaluzas têm o sangue quente, vejam esta portuguesa, a Pedro Orce que aqui vai nunca nenhuma disse assim cara a cara, Nós ficamos juntos (SARAMAGO, 2006: 148, 149).

Este irônico comentário do narrador só reafirma sua posição de mulher-sujeito, definição dada pela crítica feminista àquela personagem que age e toma decisões no universo patriarcal e detentora do poder. Joana Carda decide passar a noite com José Anaiço. Isto não a torna vulgar, e em muitos pontos da obra vê-se em Joana Carda uma mulher que, apesar do sofrimento, é decidida e se mostra, por vezes, caridosa e de bom coração. O próprio narrador afirma seu brio, vê que Joana Carda é uma mulher que decide reagir, que não espera pelos outros. Vê-se o que ele pensa da personagem no trecho em que os quatro amigos estão ficando sem dinheiro e se preocupam em como consegui-lo:

Mas talvez não venha a ser preciso chegar a tais extremos de ilegalidade, aqui no Porto irá também José Anaiço à agência do banco onde guarda as economias, Pedro Orce trouxe todas as suas pesetas, de Joana Carda é que nada sabemos quanto ao particular dos recursos, pelo menos já vimos que não parece mulher para viver de caridades ou expensas de macho (SARAMAGO, 2006: 152).

Joana Carda é daquelas pessoas que não esperam, já sendo redundante, agem. No trecho em que o cão aparece, é ela que entende que o cão quer que eles o sigam. E nas indefinições de ir ou não com ele, ela decreta: Estou pronta a ir para onde ele nos levar, se foi para isso que veio, quando chegarmos ao destino saberemos (Ibidem: 133). Ela torna-se, pode-se assim interpretar, um ícone a ser seguido. Sua liberdade e determinação a levam ao encontro dos três amigos, e a fazem decidir seguir viagem com eles, atitude de extremo enfrentamento em se tratando de uma sociedade patriarcal e detentora do poder. Isso se torna claro quando, ao regressar a casa dos parentes para passar a noite, Joana Carda, no entrar da noite, conta que decidira ir viajar com os três homens:

[...] Quando todos já dormirem na Figueira da Foz, ainda duas mulheres estarão a conversar numa casa de Ereira, no segredo da noite, Quem me dera ir contigo, diz a prima de Joana, casada e mal-maridada (SARAMAGO, 2006: 135).

A prima, que tem como impedimento para uma viagem deste tipo o mau casamento, e que provavelmente não se separa devido aos valores da sociedade patriarcal, lança em Joana, desquitada e valente, seus anseios, eis a razão do: ―Quem me dera ir contigo‖.

4 - Considerações finais

Em guisa de conclusão, todas as personagens analisadas contribuem, através de suas atitudes, para uma desconstrução dos estereótipos femininos mais conhecidos (a megera, a santa e sedutora/perigosa), contribuindo também para uma desconstrução da ideologia de diferença de gêneros: a dicotomia homem/mulher, em que um sempre é dominante e o outro dominado. É importante, ao fim, frisar que não há um ―super-heroísmo‖ nas mesmas, e nem esse é o norte da crítica feminista. Elas sofrem, passam por tribulações, e são pessoas absolutamente comuns, mas com uma diferença: agem. O que se quer é mostrar mulheres normais que podem, sim, ser ativas, tomarem decisões e ter um nível de igualdade em relação aos homens. Nota-se nas três personagens que elas dividem os papéis com seus companheiros, tomando decisões, participando ativamente da fábula.

Quanto à Blimunda, seus poderes a fortalecem como mulher que atua, porém, mesmo sem eles, ela continua sendo agente, tomando iniciativas sempre que mudanças sejam necessárias, tomando decisões quando os outros não fazem. Ela também não se submete à dominação masculina e detentora do poder, adota uma postura, juntamente com Baltazar, de igualdade dentro de um ―casamento‖. Vê-se uma nítida diferença de valores em comparação com o casal da nobreza, em que se tem o Rei como centro e dominador e a Rainha como mero objeto para reprodução e com vontades e atuações praticamente nulos. Em se tratando de Blimunda, sua independência contribui para sua força de ação e realização de suas vontades.

Entende-se, por fim, que a Mulher do Médico contém muito dos aspectos que tanto a crítica feminista reivindica: uma igualdade de papéis entre homem/mulher, uma mulher com características fortes e força de mudança, que seja determinada, espirituosa e líder e mesmo assim continue sendo uma mulher, com todas as suas peculiaridades femininas. Ela não pode ser julgada como indefesa ou pacífica só porque ―entende‖ a traição do marido, bem como não há nada de mulher megera ou perigosa só pelo assassinato que ela cometeu. Outras características dizem justamente o contrário: a força de lutar por pessoas que não conhece, enfrentando situações perigosas, entrando no covil do inimigo e assassinando o líder rival. Pode-se dizer que a personagem Mulher do Médico é um exemplo para a desconstrução da dicotomia que tanto a crítica feminista luta para desfazer.

E sobre Joana Carda, coloca-se aqui a fala do narrador relatando o espanto dos homens em relação à inteligência e força desta personagem: ―Vê-se na cara de José Anaiço e de Joaquim Sassa que vão desorientados, a mulher que desceu à cidade de pau a proclamar impossíveis actos de agrimensora saiu-lhes filósofa nos campos do Mondego‖ (SARAMAGO, 2006: 127).

Referências bibliográficas
ALENCAR, José de. Lucíola. São Paulo: Ática, 1985
ALMEIDA, Júlia Lopes de. A Intrusa. Pará de Minas: Virtual Books, 2002.
AZEVEDO, Aluísio de. O Cortiço. São Paulo: Ática, 1997.
AZEVEDO, Álvares de. Lira dos Vinte Anos. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
BOURDIEU, Pierre. A Dominação Masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005.
BRANDÃO, Ruth Silviano. Mulher ao Pé da Letra – A Personagem Feminina na Literatura. Belo Horizonte, UFMG, 2006.
SARAMAGO, José. Ensaio Sobre a Cegueira. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
SARAMAGO, José. A Jangada de Pedra. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
SARAMAGO, José. Memorial do Convento. São Paulo: Círculo do Livro, 1982.
TAUNAY, Visconde de. Inocência. São Paulo: Martin Claret, 1998.
ZOLIN, Lucia Osana. Desconstruindo a Opressão – A Imagem Feminina em a República dos Sonhos de Nélida Piñon. Maringá: EDUEM, 2003.
ZOLIN, Lucia Osana. Crítica Feminista. In: BONICCI, Thomas & ZOLIN, Lucia Osana. Teoria Literária: Abordagens Histórias e Tendências Contemporâneas. Maringá, EDUEM, 2004.

Fonte:
II Seminário Nacional em Estudos da Linguagem: 06 a 08 de outubro de 2010 Diversidade, Ensino e Linguagem UNIOESTE - Cascavel / PR

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