quinta-feira, 7 de junho de 2012

Marie-Louise von Franz (O Problema da Sombra nos Contos de Fada) 1


Esclarecimento

O texto deste livro foi extraído de duas series de conferências realizadas por Marie-Louise von Franz no Insitituto C. G. Jung de Zurique; a primeira, o “Problema da Sombra nos Contos de Fada”, durante o Inverno de 1957 e a segunda, “Lidando com o Mal nos Contos de Fada”, no inverno de 1964. O estilo coloquial de comunicação foi essencialmente mantido. 
Somos gratos a Una Thomas pela transcrição destas conferências.

PRIMEIRA PARTE

O PROBLEMA DA SOMBRA NOS CONTOS DE FADA

1
A sombra e conto de fada

Antes de entrarmos em contato com o nosso material, devemos precisar com clareza a definição de sombra em psicologia, pois ela pode variar bastante e não é tão simples como supomos. Geralmente, na psicologia junguiana, definimos sombra como a personificação de certos aspectos inconscientes da personalidade que poderiam ser acrescentados ao complexo do ego mas que, por várias razões, não o são. Poderíamos portanto dizer que a sombra é a parte obscura, a parte não vivida e reprimida da estrutura do ego, mas isso é só parcialmente verdadeiro. Jung criticava seus alunos quando estes se apegavam aos seus conceitos de maneira literal, fazendo deles um sistema, e quando o citavam sem saber exata-mente do que falavam. Numa discussão acabou por dizer: "Isto não tem sentido, a sombra é simplesmente todo o inconsciente". Acrescentou que tínhamos esquecido como essas coisas haviam sido descobertas e vividas pelo indivíduo e que sempre é preciso pensar na condição atual do paciente.

Se vocês tentarem explicar alguns processos não aparentes e inconscientes a alguém, que não conhece nada de psicologia e inicia uma análise, isto é a sombra para ele. Assim numa primeira etapa de abordagem do inconsciente, a sombra é simplesmente um nome "mitológico", aquilo que me diz respeito mas que não posso conhecer diretamente. Somente quando começamos a penetrar a esfera da sombra da personalidade, investigando seus diferentes aspectos, é que surge nos sonhos, depois de um certo tempo, uma personificação do inconsciente, do mesmo sexo que o sonhador. Mas depois o paciente descobrirá que ainda existe, nessa área desconhecida, um outro tipo de reação chamada anima (ou ânimus) representando sentimentos, estados de espírito, ideias etc. Abordaremos também o conceito do Self. Por razoes práticas, Jung não achou necessário se estender além destas três etapas.

Muitas pessoas permanecem num impasse quando o problema não é apenas questão de teoria, mas de prática. Integrar a anima ou o ânimus é uma obra de arte e ninguém pode se vangloriar de tê-lo conseguido. Por isso, quando falamos de sombra devemos ter bem explícita a situação pessoal do indivíduo em questão, inclusive seu nível específico de consciência e percepção interior. Assim, numa primeira fase, podemos dizer que a sombra é tudo aquilo que faz parte da pessoa mas que ela desconhece. Geralmente, quando investigamos a sombra, descobrimos que consiste em parte de elementos pessoais e em parte de elementos coletivos. Praticamente, nesse primeiro contato, a sombra é apenas um conglomerado de aspectos em que não conseguimos definir o que é pessoal e o que é coletivo.

Exemplificando, digamos que uma pessoa tem pais de diferentes temperamentos, dos quais herdou algumas características que, por assim dizer, não se misturam bem quimicamente. Por exemplo, uma vez tive uma ana-lisanda que herdou do pai um temperamento inflamável e brutal, e da mãe uma grande suscetibilidade. Como poderia ela ser as duas pessoas ao mesmo tempo? Se alguém a contrariasse ela se defrontava com duas reações opostas. Existem possibilidades opostas numa criança que não se harmonizam entre si. Geralmente, no decorrer de seu desenvolvimento, uma escolha é feita, de modo que um lado fica mais ou menos consolidado. Sempre escolhendo uma qualidade e preferindo uma determinada atividade em detrimento de outra, através da educação e dos hábitos, estas acabam se tornando uma "segunda natureza"; as outras qualidades continuam a existir, só que debaixo do pano. A sombra se constrói a partir dessas qualidades reprimidas, não aceitas ou não admitidas porque incompatíveis com as que foram escolhidas. É relativamente fácil reconhecer esses elementos e é isto que chamamos "tornar a sombra consciente", através de uma certa dose de insight, com a ajuda de sonhos e assim por diante — e é normalmente nesse ponto que a análise é interrompida. Mas isto não significa o término de um trabalho, pois daí vem um problema muito mais difícil, diante do qual a maioria das pessoas encontra grande dificuldade: elas sabem o que é a sua sombra mas não conseguem expressá-la ou integrá-la em suas vidas. Naturalmente a mudança não agrada às pessoas de seu meio, pois isto significa que elas também têm que se readaptar. Uma família ficaria simplesmente furiosa se um membro até então doce e cordato de repente se tornasse agressivo, dizendo Não às suas ordens. Isso conduz a muitas críticas e o ego da pessoa em questão também se ressente da situação. A integração da sombra poderá não dar certo e o problema chegará então a um impasse. É um ato de grande coragem enfrentar e aceitar uma qualidade que não nos é agradável, que se escolheu esconder por muitos anos. Mas se a pessoa decidir não aceitá-la, acabará sendo apanhada pelas costas. Uma parte do problema é enxergar e admitir a existência da sombra, constatar que alguma coisa aconteceu, que algo irrompeu; mas o grande problema ético surge quando se decide expressar a sombra consciente-mente. Isso requer grande cuidado e reflexão, para que não se produza uma reação perturbadora. Gostaria de lhes dar um exemplo disso.

Pessoas do tipo sentimento estão sempre prontas a serem cruéis e mesquinhas ao julgar seus amigos. Por um lado se sentem bem com as pessoas mas, por dentro e por trás, são capazes de ter pensamentos e julgamentos extremamente negativos a seu respeito. Outro dia eu estava num hotel com uma pessoa do tipo sentimento. Eu sou do tipo pensamento e acontece que estava com uma tremenda pressa quando a avistei, de modo que apenas a cumprimentei rapidamente. Daí ela achou que eu a odiava, que estava furiosa com ela e que não queria passar o dia em sua companhia, que eu era uma pessoa fria e insociável etc. De repente o tipo sentimento passou a ter pensamentos negativos, com toda uma explicação para o fato de eu tê-la cumprimentado apressadamente.

No estágio inicial a sombra é todo o inconsciente — um acúmulo de emoções, julgamentos e assim por diante. Vocês poderiam achar que minha amiga foi envolvida pelo pensamento negativo do ânimus — mas o que aconteceu realmente foi uma explosão de pensamentos negativos (neste caso a função inferior), emoção brutal (sombra) e alguns julgamentos destrutivos (neste caso o ânimus). Se estudarem essas explosões negativas, vocês poderão distinguir entre a figura que chamamos de sombra e a faculdade de julgamento que na mulher chamamos de ânimus. Depois de um certo tempo as pessoas descobrem essas qualidades negativas em si mesmas e conseguem não apenas vê-las mas expressá-las, o que significa abdicar de certas idealizações e padrões. Isso acarreta sérias considerações e uma boa dose de reflexão, caso a pessoa em questão não queira ter uma ação destrutiva sobre as coisas que a cercam. Então, visto que podemos descobrir nos sonhos elementos que parecem não ser pessoais, dizemos que a sombra consiste em parte de material pessoal e em parte de material impessoal e coletivo.

Todas as civilizações, mas especialmente a cristã, têm sua própria sombra. Esta é uma afirmação banal, mas se vocês estudarem outras civilizações verão em que ponto elas são melhores que a nossa. Na índia, por exemplo, as pessoas estão na nossa frente no que diz respeito ao desenvolvimento espiritual e filosófico em geral, mas seu comportamento social nos choca. Se andarem pelas ruas de Bengala, verão um grande número de pessoas obviamente morrendo de fome; elas estão in extremis e ninguém se importa com isso pois esse é o seu karma — cada um deve se preocupar consigo mesmo, com a sua própria salvação; importar-se com o outro significaria simplesmente entrar em considerações terrenas. Para nós europeus essa atitude social estraga tudo, pois é revoltante ver gente morrendo de fome e ignorar o fato. Chamaríamos a essa condição de sombra da civilização hindu; sua extroversão está abaixo do limite e sua introversão, acima. Poderia ser que o lado luminoso não tivesse consciência do lado sombrio, o que é óbvio para uma outra civilização.

Se alguém vivesse sozinho seria praticamente impossível perceber sua própria sombra, pois não haveria ninguém para lhe dizer qual seria a sua imagem. É preciso um espectador. Se levarmos em consideração a reação do espectador, poderemos falar da sombra de diferentes civilizações. Por exemplo, muitos orientais acham que nossa atitude coletiva é completamente inconsciente com relação a certos fatos metafísicos, e que ingenuamente nos deixamos levar por ilusões. É assim que eles nos vêem, mas não é assim que nos vemos. Devemos ter uma sombra de que ainda não nos demos conta, da qual não temos consciência; e a sombra coletiva é particularmente ruim porque cada um apoia o outro em sua cegueira — é somente nas guerras ou nos ódios entre nações que se revela algum aspecto da sombra coletiva.

Assim, podemos dizer que os europeus possuem algumas qualidades negativas ou incompatíveis que foram reprimidas pelo indivíduo, o qual por sua vez também leva consigo qualidades negativas do grupo ao qual pertence — qualidades de que geralmente não tomou consciência. A sombra coletiva também surge sob outra forma: quando em pequenos grupos ou sozinhos, certas qualidades nossas se reduzem, crescendo porém repentinamente quando estamos num grupo maior. Esse fenómeno compensatório típico ocorre com introvertidos retraídos que no fundo desejam ser brilhantes, um grande personagem no meio da multidão. Com o extrovertido ocorre o contrário. Quando sozinho o introvertido diz que não é ambicioso e que não se importa com isso, que não se envolverá em intrigas ambiciosas, que realmente será ele mesmo, satisfeito com sua introversão. Basta introduzi-lo numa multidão onde haja extrovertidos ambiciosos e rapidamente ele estará contaminado pela infecção. Isso é comparável à situação de uma mulher que corre a uma loja para comprar alguma coisa barata e outras mulheres vão correndo atrás dela e compram a mesma coisa; ao chegarem em casa se perguntam, surpresas: "mas, afinal de contas, por que comprei isto?"

Se alguém só sente ambição quando está em grupo, podemos dizer que aí se trata de sombra coletiva. Às vezes você se sente bem, interiormente, mas ao entrar num grupo onde o diabo está solto, fica meio perturbado, como aconteceu com alguns alemães quando iam aos encontros do partido nazista. Refletindo em casa eles poderiam ser anti-nazistas, mas nesses encontros alguma coisa se acendia e eles ficavam, como alguém comentou, "como que possuídos pelo demónio". Temporariamente eles foram dominados mais pela sombra coletiva do que pela pessoal.

O mal coletivo é ainda personalizado nos sistemas religiosos através da crença nos espíritos das trevas e demónios do mal. Uma pessoa da Idade Média voltando do tal encontro diria que tinha sido possuída pelo demónio e que agora estava livre novamente. O próprio diabo exemplifica tal personificação da sombra coletiva. Por outro lado, podemos dizer que se os demónios cole-tivos nos afetam, é porque devemos ter algo deles em nós — caso contrário não nos afetariam e a porta de nossa psique não estaria aberta à sua entrada. Quando partes de nossa sombra pessoal não estão suficientemente integradas, a sombra coletiva pode passar furtivamente por essa porta. Conseqiientemente devemos estar conscientes da existência desses dois aspectos, porque este é um problema ético e prático capaz de causar enormes danos.

Suponhamos que um analisando se comporte de maneira ultrajante em grupo. Se tentarmos fazê-lo ver que a culpa foi sua, ele se sentirá oprimido e objetiva-mente isso não seria correto, pois em parte aí se encontra a sombra coletiva. Além disso, ele teria um grande sentimento de culpa. Existe uma espécie de norma interior secreta, a respeito de quanto um ser humano pode suportar a sombra. Não é saudável ignorá-la nem absorvê-la demais. Uma dose excessiva impede que a pessoa funcione psicologicamente. Quando alguém tem a consciência pesada, deve então considerar um pouco mais a própria sombra; mas o pior é que geralmente não se distingue a própria consciência que fica embaçada quando se olha para a sombra muito de perto — e este é um problema muito sutil.

Estou me referindo a estes aspectos a fim de esclarecer o fato de que existe um aspecto individual e outro coletivo na sombra, a sombra do grupo. De certa forma, esta última consistiria na soma de todas as sombras individuais e seria algo que não perturba o grupo, sendo visível somente a grupos externos. Em outras palavras, se reunirmos três ou quatro intelectuais típicos, com os mesmos interesses, eles dirão que passaram uma noite maravilhosa em discussões intelectuais, sem no entanto perceberem que entre si o contato humano foi ruim; mas um simples camponês ali presente diria que a reunião foi horrível. Quando todos têm o mesmo problema, tudo parece maravilhoso! Provavelmente nós, europeus, possuímos muitas características que nos passam despercebidas, pois para nós, elas são normais. Este é o nível normal de consciência em indivíduos e também em grupos.

Eu gostaria de corrigir um ponto. Mais acima disse que somente quando um grupo agride outro é que percebe sua sombra; mas não fui totalmente exata, pois em muitas civilizações há rituais religiosos que visam precisamente tornar o grupo consciente de sua própria sombra. Em nossa civilização cristã isto corresponderia à missa negra, onde se blasfema o nome de Cristo, se beija o ânus de um animal em nome do demónio e assim por diante; o que importa é que se faz exatamente o contrário do que se considera sagrado. Esses festivais anti-religiosos morreram e tendem a ser esquecidos, mas foram uma tentativa de mostrar a sombra ao povo. Em muitas civilizações primitivas existem bufões que exercem a função de realizar as regras do grupo ao contrário. Riem quando deveriam ficar sérios, choram quando os outros riem etc. Por exemplo, em certas tribos da América do Norte, uma pessoa é eleita para realizar de forma ritualística o oposto do estabelecido pelas regras sociais do grupo. Provavelmente, a ideia é que há outro lado que também deve ser reconhecido. Trata-se de um festival de catarse da sombra. Se alguém desejar conhecer um remanescente genuíno desses rituais na Suíça, basta ir até Basileia na época do Carnaval (embora atualmente a atmosfera seja perturbada pela presença de muitos estranhos) e então verá como um grupo mostra a sombra coletiva de uma forma genuína e bonita. No exército suíço fala-se do mascote da companhia, alguém inconscientemente escolhido para ser o bo-de-expiatório, geralmente um homem com uma estrutura de ego fraca compelido a se comportar como sombra do grupo. Tal situação pode produzir trágicos resultados. Encontramos o mesmo esquema na família, onde a ovelha negra é forçada a carregar a sombra dos outros.

Agora podemos examinar um problema correlato: o que os contos de fada representam, ou deixam de representar, e em que medida podemos encará-los como material psicológico? Para compreendermos isso devemos nos perguntar qual é a provável origem dos contos de fada, e qual a sua função em nossa civilização. Como o Instituto Jung é uma escola, somos infelizmente obrigados a repetir certos princípios fundamentais. É como ligar a vitrola — de modo que me desculpem se agora eu lhes apresentar apenas uma rápida visão do problema.

Antigamente, até mais ou menos o século XVII, os contos de fada não eram destinados apenas às crianças, mas também a adultos das classes mais baixas da população como lenhadores e camponeses, divertindo-se as mulheres a ouvi-los enquanto fiavam. Havia inclusive (e ainda podemos encontrá-los em algumas vilas na Suíça), narradores profissionais de contos de fada, sempre solicitados a repetidamente narrar contos de fada. Esses narradores às vezes são pouco inteligentes, meio desequilibrados e neuróticos; mas também podem ser particularmente saudáveis e normais — enfim, há de tudo. Se você lhes perguntar por que narram contos de fada, alguns dirão que herdaram essa função, outros que aprenderam com a cozinheira, ou que é uma tradição que passa de pessoa a pessoa. Sabemos agora que existem contos de fada do tipo coletivo e que são passados de uma geração a outra como nas antigas tradições — é uma espécie de sabedoria popular. As teorias a respeito da origem dos contos de fada variam bastante: algumas dizem que são remanescentes degenerados de mitos e doutrinas religiosas, outras afirmam que eles provêm de uma parte degenerada da literatura. Já se disse também que eles são uma espécie de sonho, mais tarde contados como estórias. A meu ver, sua origem pode ser percebida através do seguinte exemplo típico.

Numa família suíça existia, na época de Napoleão, uma crónica familiar dizendo que um dia o moleiro foi caçar uma raposa e de repente ela começou a falar: pedia ao moleiro que não a matasse, pois ela o tinha ajudado em seu trabalho no moinho. Quando ele voltou para casa encontrou seu moinho girando sozinho. Pouco tempo depois o moleiro morreu. Recentemente, um estudante de folclore foi a essa vila, e lá perguntou aos mais idosos se conheciam alguma coisa a respeito do moleiro, recolhendo várias versões da antiga estória. Um dos velhos deu a mesma versão mas disse que depois a raposa correu por entre as pernas do moleiro, o que lhe provocou uma infecção fatal na pele. Assim, nessa parte do país, supõe-se que a raposa cause esse tipo de doença. Portanto um elemento novo foi acrescentado à estória original. Outra variação dizia que o moleiro foi a uma festa, e lá seu copo de vinho quebrou, e daí ficou sabendo que a raposa era a alma-bruxa de uma tia morta. (Dizem que as almas das raposas são almas de bruxas). A estória se ampliou, sendo-lhe acrescentado material ar-quetípico, exatamente como acontece nas fofocas.

Assim, podemos perceber como se origina uma estória: existe sempre um núcleo que se forma a partir de experiências parapsicológicas ou sonhos. Se ela contém um assunto que existe na vizinhança, a tendência é de ocorrer uma amplificação. Temos agora a estória de um moleiro perseguido por uma antiga bruxa, que ele quase matou e que depois o mata. Essa estória ainda não é um conto de fada, apenas o início. O nome do moleiro permaneceu inalterado. Mas suponhamos que a cozinheira da aldeia vá a uma outra aldeia contar essa estória: provavelmente o moleiro teria outro nome ou seria apenas chamado de o moleiro. Todos os elementos que não interessam a essa aldeia cairão fora, permanecendo na memória somente o que for arquetípico. Sempre me surpreendo com o fato de que posso me lembrar melhor do material arquetípico do que de outras coisas — ele sempre deixa uma impressão eterna, de modo que é sempre lembrado. Um jovem professor fez uma experiência a esse respeito. Contou duas estórias, sendo que somente uma continha elementos mitológicos, e fez com que seus alunos redigissem ambas, três dias depois. É óbvio que o conto mitológico foi lembrado, com maior precisão.

Enquanto certos níveis da população não possuíam rádio nem jornal, seu grande interesse consistia nas estórias — e assim podemos ver como se origina um mito. Acredito que é assim que surgem os contos de fada. Entretanto, não afasto a teoria de que às vezes existem remanescentes de literatura degenerada. Por exemplo, vocês podem encontrar o mito de Hércules diluído em uma estória na Grécia de hoje. Ele foi reduzido a uma estrutura básica, permanecendo seu material arquetípico, e são esses elementos de formas religiosas do passado que reaparecem no material do conto de fada. Elementos diferentes aparecem juntos e as estórias são contadas porque ainda são interessantes e excitantes, mesmo se não compreendidas. O fato de que agora estejam relegadas às crianças revela uma atitude típica — que eu diria define nossa civilização — segundo a qual o material arquetípico é encarado como algo infantil. Se essa teoria a respeito de sua origem é verdadeira, os contos de fada refletem a estrutura psicológica elementar do homem muito mais do que os mitos e as produções literárias. Como certa vez disse Jung, quando estudamos os contos de fada podemos estudar a anatomia do homem. Em geral, o mito está mais inserido na civilização. Não se pode conceber a Épica de Gilgamesh separada da civilização Babilônico-Sumeriana, ou a Odisseia longe da Grécia. O conto de fada, porém, pode migrar melhor, pois é tão elementar e tão reduzido aos seus elementos estruturais básicos que faz sentido para qualquer um. Certa vez, um missionário foi enviado a uma das Ilhas da Po-linésia e o primeiro contato que conseguiu foi através de um conto de fada, o laço comum. Entretanto isso é verdade somente cum grano salis.

Tendo estudado contos de fada por um bom período, cheguei à conclusão de que existem típicas ramificações europeias e africanas de contos de fada, e embora possa me enganar com a troca de nomes de tais contos, é ainda bem visível o parentesco entre eles. De certa forma os contos de fada são também influenciados pela civilização em que surgiram, mas muito menos que os mitos, devido à sua estrutura mais elementar. Pesquisadores do comportamento animal têm observado que certos rituais na vida animal contêm elementos estruturais básicos. Todas as espécies de patos realizam uma certa dança antes de se acasalarem, que consiste em certos movimentos da cabeça e das asas e em outros pequenos movimentos: é a forma ritual do macho cortejar a fêmea. Os behavioristas acharam que esse ritual tinha a ver com os genes e assim cruzaram diferentes espécies de patos, criando uma nova espécie e observando seu comportamento. Descobriram que algumas vezes a antiga dança ritual era aceita mesmo não sendo característica de nenhuma das espécies cruzadas, ou que a dança de um dos parceiros se repetia de forma reduzida, ou que havia uma combinação de duas formas. Certos elementos estruturais na dança do macho estavam sempre presentes, enquanto outros variavam.

Se aplicarmos isto ao homem, podemos dizer que há certas estruturas básicas do comportamento psicológico que pertencem à espécie humana em geral e outras mais desenvolvidas em um grupo ou raça e menos predominantes em outros. Os contos de fada têm uma estrutura que reflete os traços humanos mais gerais. Desempenham um grande papel porque através deles podemos estudar as mais básicas estruturas de comportamento. Mas para mim há também uma razão prática: através do estudo de contos de fada e mitos podemos vir a conhecer certos complexos estruturais, tornando-nos mais capazes de distinguir entre o que é e o que não é individual, e ver as possíveis soluções. Por exemplo, se estudarmos o mito do complexo materno, ou seja, a relação afetiva e o comportamento instintivo do menino com sua mãe, e todas as consequências psicológicas dessa relação refletidas nos mitos, poderemos distinguir características típicas. O menino procura desenvolver características do herói, mais precisamente as do rapaz de tipo femíneo como Átis, Adónis ou Baldur, que morre jovem e tende a recusar a vida, especialmente em seu lado sombrio. Segundo esses mitos, o jovem herói que amava a mãe era morto por uma figura masculina ctôni-ca, e isto significa que o momento crucial para o jovem nessa situação é o momento em que ele ou é psicologicamente morto por um javali ou, recusando-se a aceitar a sua sombra, provavelmente — se o caso se verifica nos dias de hoje — se torna piloto e morre num acidente, ou vai para as montanhas e cai.

Se vocês estiverem seguindo um caso em análise no qual o mito não aparece, no qual os sonhos são pessoais, provavelmente poderão reconhecer aspectos mitológicos nas figuras que aparecem nos sonhos desse tipo de jovem: por exemplo, no amigo que lembra Marte, ou no javali. Estas figuras poderão ter um nome pessoal mas vocês perceberão o modelo básico, sua possível solução e desenvolvimento — se conhecerem o mito. Vocês não devem proclamá-lo, pois isso seria impor uma ideia mitológica; mas terão uma melhor compreensão do caso. Naturalmente ainda somos influenciados pelo pensamento mitológico quando lidamos com essa sombra masculina obscura do analisando. Podemos talvez contar o mito, dizendo que isto lembra o mito de Átis-Adônis, e assim trazer à tona a solução. Tal pessoa sentirá então que seu problema não é exclusivo e insolúvel, mas que já foi resolvido mil vezes de uma certa forma; isso inclusive diminui a pretensão, da pessoa, pois ela sentirá que faz parte de uma situação geral e que sua neurose não é única. O mito também tem um impacto mágico nos níveis que não podem ser alcançados por uma conversa intelectual; ele provoca a sensação de déjà entendu e não obstante é sempre novo e estimulante.

O exame da sombra nos contos de fada deve portanto focalizar não a sombra pessoal mas a sombra co-letiva e grupai. Assim podemos estabelecer apenas uma visão geral do caminho que a sombra percorre — e só isto, para mim, já é muito válido. As pessoas tendem a pensar no meu ego e não percebem que nós consideramos o ego também uma estrutura geral e um arquétipo. É um arquétipo, no sentido de que se baseia numa disposição inata para desenvolver um ego e produzir certos tipos de reações e representações. Pode-se dizer que na maioria das civilizações, em toda parte e em diferentes graus, existe esta tendência a desenvolver um complexo do ego: o que é conhecido como "eu" é uma estrutura geral humana inata. Nas primeiras fases da infância muita energia é gasta na construção do complexo do ego; havendo perturbações no meio ambiente, o processo se altera e esse impulso, entre outras coisas, pode causar um extremo egoísmo. Essa tendência inata seria o aspecto não pessoal do complexo, mas há também outra tendência inata, ainda que menos forte, para se separar do ego; é essa cisão que concede um aspecto arquétipo à figura da sombra. Somente essas estruturas gerais se refletem nos contos de fada, podendo ser influenciadas pelas civilizações nas quais os contos se originam.
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continua…

Fonte:
Marie-Louise Von Franz. A sombra e o mal nos contos de fada. [tradução Maria Christina Penteado Kujawski]. São Paulo : Paulus, 1985. Disponível em http://groups.google.com/group/digitalsource

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