sábado, 9 de junho de 2012

Nelson Rodrigues (Boca de Ouro)


Boca de ouro é uma tragédia carioca em três atos escrita por Nelson Rodrigues em 1959.

 O chofer de um ônibus que Nelson Rodrigues pegava para ir almoçar na casa mãe tinha todos os 27 dentes de ouro. Orgulhoso de seu xodó, dizia sempre que os dentes eram de ouro maciço, 24 quilates. Impressionado com a história, o dramaturgo resolveu escrever uma peça que combinasse a dentadura dourada do motorista com uma personagem real do submundo carioca, o bicheiro Arlindo Pimenta. 

 Assim nasceu Boca de Ouro, o bicheiro de Madureira que mandou trocar todos os dentes brancos e perfeitos de sua boca por pivôs de ouro puro. Malandro e cheio da legítima ginga carioca, Boca de Ouro nasceu numa pia de gafieira e seu primeiro banho foi com água de bica. Morre de complexo por causa da sua origem.

 Apesar da história tipicamente brasileira, a estréia de Boca de Ouro, em 19 de outubro de 60, não fez muito sucesso. Os motivos são muitos, mas certamente o principal deles foi a atuação do diretor, Ziembinski, no papel-título. Era praticamente impossível para a platéia enxergar no polonês a figura de um malandro banqueiro do bicho, repleto de swing e malícia. 

 Outro problema enfrentado pela produção da peça foi a estréia em São Paulo, pela primeira e única vez em toda a carreira do dramaturgo. O público paulista não era o mais apropriado para assistir, pela primeira vez, àquela tragédia tipicamente carioca. O marasmo foi tanto que a terceira tragédia de Nelson Rodrigues não segurou nem três semanas no Teatro Federação, chamado depois de Cacilda Becker.

 Em janeiro de 61, Boca de Ouro ressuscitou com pompa e circunstância no Rio de Janeiro. Depois da interdição da censura, trancando por alguns meses a peça, e da estréia frustrada em São Paulo, a história do bicheiro ganhou nova dimensão pelas mãos do diretor José Renato e do ator Milton Morais, no papel de título. 

 Nelson Rodrigues, em Boca de Ouro, faz implicitamente o processo metafísico da violência, da vontade de poder, e sua lição é construtiva. Ele mostra a impossibilidade do homem de, pelo furor destrutivo, chegar a salvar-se. O ressentimento, como paixão existencial, e a raiva cega que dele decorre arrastam o ser humano para o abismo do aniquilamento da morte. O homem, sem dúvida, traz consigo, no mais íntimo de sua substância ontológica, a vocação da alquimia, a sede de transfiguração, o instinto que o leva a tentar a transformação do barro em ouro. Mas este milagre só se opera na medida em que o homem se aceita e se ama na sua fragilidade, na argila perecível e corruptível que ele também é, para além de qualquer ressentimento. Nesse instante, sem o saber, eis que encontra em suas mãos a pedra filosofal que o transfigura e lhe abre as portas da luz que não se apaga.

Classificação da peça

 O crítico de teatro Sábato Magaldi classificou a peça Boca de Ouro como tragédia carioca. O próprio crítico, porém, ressalva que essa classificação tem caráter didático, não pode ser considerada rigidamente, sob pena de empobrecer o universo do ficcionista, já que as características nunca se mostram isoladas.

 Sábato conclui: "Poucos dramaturgos revelam, como Nelson Rodrigues, um imaginário tão coeso e original, e com um espectro tão amplo de preocupações psicológicas, existenciais, sociais e estilísticas."

Características

O comportamento obsessivo, paroxístico do protagonista. Nelson Rodrigues não teme o exagero: seus personagens são prisioneiros de paixões avassaladoras. Tornam-se protótipos, já que o autor ultrapassa as conveniências realistas e os constrói com um vigor desmedido.

A morbidez que, no seu teatro, serve para aguçar a sensibilidade, abrindo desvãos psicológicos que de outra forma continuariam vedados, escondidos. Ele é "nosso primeiro dramaturgo a sublinhar de forma sistemática os comportamentos mórbidos da personalidade, coexistindo com as facetas consideradas normais".

 Mais um traço que acompanha a obra inteira: a ironia feroz (...) Os prazeres são sempre efêmeros, as alegrias escondem apenas uma realidade que não se desvendou ainda. Os desfechos irônicos e trágicos das peças remetem biograficamente às tragédias familiares, de que Nelson nunca se recuperou (por exemplo: o assassinato de seu irmão Roberto).

 Nelson Rodrigues é um mestre do "diálogo". Isento de literatice, seu diálogo é direto, enxuto, preciso, funcional. A linguagem é predominantemente coloquial.

Família e sexo: o que é socialmente transmitido como proibição, na esfera sexual e das relações afetivas, é sistematicamente violado. Neste sentido, o seu teatro constitui uma abordagem crítica à estrutura social brasileira, cujo sistema de relações e cujos valores de base têm sua aparente segurança abalada. Neste contexto se inserem os comportamentos de incesto (relação sexual entre parentes) e outras formas de relacionamento sexual culturalmente proibidas (entre pessoas do mesmo sexo, entre pessoas de raças ou classes sociais diferentes...) Na família, predomina uma aura de pudor e de repressão na esfera sexual, e o autor vai explicando a quebra de tabus familiares e sexuais, tais como a virgindade, a fidelidade, a intocabilidade entre os membros da família, o papel do pai e da mãe, e assim por diante.

A violência marca as relações inter-pessoais através de três situações típicas: a traição, o antagonismo e a exploração.

Crítica à imprensa: O teatro rodriguiano apresenta forte crítica às instâncias formadoras da opinião pública, sobretudo a imprensa, mostrando como e por que são construídos os fatos supervalorizados socialmente e como é falsa a neutralidade desses órgãos.

Estrutura

 Por ser praticamente toda embasada nas lembranças de dona Guigui, Boca de Ouro dá margem a muitas interpretações. A desunidade da peça, porém, é apenas aparente; em essência não há nenhuma contradição. As três versões para um mesmo assunto, o bicheiro, podem ter vários significados, mas certamente estão ligadas à própria condição psicológica da narradora no momento. 

 Por causa da mágoa de ter sido abandonada, dona Guigui constrói, de início, um Boca de Ouro fascínora. Capaz de matar só porque lhe lembraram sua origem, numa pia de gafieira. Assim que fica sabendo da morte dele, pelos próprios repórteres que foram entrevistá-la, a paixão de dona Guigui explode novamente e ela chega a omitir que Boca de Ouro assassinou Leleco, na segunda versão. Seu atual marido, porém, fica chocado com a coragem da mulher em declarar segredos do homem mais poderoso da região e ameaça ir embora de casa se ela continuar falando. Para preservar o casamento, dona Guigui dita ao repórter a última versão sobre o bicheiro, agora retratado como um "assassino de mulheres" que sacrificou Celeste. A narrativa de dona Guigui se interrompe quando Maria Luísa e Boca de Ouro vão para o quarto, e se passou bastante tempo, no qual aconteceu o assassinato do bicheiro, até a hora em que a grã-fina relatou a história para os jornalistas. 

 Se no 1° ato Boca mata Leleco ao ouvir o insulto contra a mãe e no 2° é Celeste quem assassina o marido, no 3° o crime volta a ser praticado pelo bicheiro, com a cumplicidade da amante, que usa um punhal. A dúvida fica com a platéia no final da peça. Dona Guigui mentiu sempre, nunca, por causa das circunstâncias? Qual a verdadeira versão? Pelas questões sem resposta que suscita nos espectadores, Boca de Ouro pode ser caracterizada como uma obra aberta.

 Nelson Rodrigues, na estrutura de sua peca, mostra, sem qualquer dúvida, a sua intenção de universalizar certas realidades inconsciente fundamentais, que Boca de Ouro representa. Tanto é assim que o personagem só aparece, como presença autônoma, na primeira cena, no dentista, quando manda arrancar todos os dentes sadios para substituí-los por uma dentadura de ouro. Neste gesto o personagem define, desde logo, com um vigor absoluto, o cerne de seu projeto existencial. Boca de Ouro escolhe aí o caminho da potência onipotente da força desmesurada e agressiva através da qual espera agarrar a invulnerabilidade a que aspira. Os dentes naturais são perecíveis, envelhecem e morrem. Seu poder de domínio triturador está limitado pelas travas insuperáveis da condição humana. Boca de Ouro, ao optar pela dentadura que lhe deu o nome, busca transfigurar-se e imortalizar-se pelo caminho da agressão primitiva, aquém ou além do bem e do mal. Nesta medida, coroado rei por si mesmo (corado nos dentes), sentado no trono de seu despotismo sem limite, o personagem transcende o subúrbio e se configura como herói da espécie, violento e terrível.

 Em virtude desta dimensão mítica é que Boca de Ouro, como ser autônomo, individual e individuado, já não mais aparece na peça. Ele existirá pelos olhos dos outros, terá as múltiplas faces que os outros lhe atribuem, será, além de si próprio, a encarnação das fantasias de onipotência que os outros, através dele, buscam exprimir. Esta é a linha psicológica pela qual a peça ganha unidade e profundidade, uma vez que os personagens: D.Guigui, Agenor, os jornalistas, a comparsaria que faz fila no necrotério, o locutor de rádio ao falar de Boca de Ouro, falam também de si e, ao criar a sua imagem mítica, se revelam nos seus sonhos de poder e despotismo. Os demais personagens ligados ao Boca de Ouro, e trazidos à cena pela narrativa de D. Guigui ao repórter, participam deste mesmo, desdobramento de planos psicológicos e, sendo vivos e autônomos, também representam focos de clarificação que iluminam o herói da peça e são por ele iluminado, desvendando, por último, a realidade interna da narradora que os faz viver.

 Qual será, por fim, o significado profundo da peça de Nelson Rodrigues, e que alcance ético poderá ter? A chave da pergunta nos é dada pelo próprio autor, através da força intuitiva dos símbolos que cria. Boca de Ouro, nascido de mãe pândega, parido num reservado de gafieira, tendo perdido o paraíso uterino para defrontar-se com uma realidade hostil e inóspita, sentiu-se condenado à condição de excremento. Seu primeiro berço foi a pia de gafieira, onde a mãe, aberta a torneira, o abandonou num batismo cruel e pagão. Esta é a situação simbólica pela qual o autor, com um vigor de mestre, expressa o exílio e a angústia humana do nascimento, o traumatismo que nos causa, a todos, o fato de sermos expulsos do Éden e rojados ao mundo, para a aventura do medo, do risco e da morte. Boca de Ouro, frente a esta angústia existencial básica, escolheu o caminho da violência e do ressentimento para superá-la. Ele, excremento da mãe, desprezando-se na sua imensa inercidade de rejeitado, incapaz de curar-se desta ferida inaugural, pretendeu a transmutação das fezes em ouro, isto é, da sua própria humilhação e fraqueza em força e potência. Esta alquimia sublimatória ele a quis realizar através da violência, da embriaguez do poder destrutivo pelo qual chegaria à condição de deus pagão, cego no seu furor, belo e inviolável na pujança de sua fúria desencadeada. Ao útero materno mau, que o expulsou e o lançou na abjeção, preferiu ele, na sua fantasia onipotente, o caixão de ouro, o novo útero eterno e incorruptível onde, sem morrer, repousaria. Acabou mal esse Boca de Ouro, esse belo sinistro, terrível e ingênuo herói, tão grande e tão miserável na sua revolta contra a condição humana. Ele que, pela violência homicida, pretendeu realizar o velho sonho da alquimia, de transmutação dos elementos, transformando-se a si próprio em ouro imperecível, acabou lançado à sarjeta, com a cabeça no ralo, crivado de punhaladas, reduzido à matéria de que tinha horror.

 Depois de morto, roubaram-lhe a dentadura. Eis o nosso rei destronado, devolvido à sua solidão, fraco e pobre como o mais fraco e mais pobre dos seres.

Diálogos e personagens

"Mais uma vez, Nelson atribui pouca importância à realidade, mero respaldo da aventura interior. Além de fundamentar a figura mítica de Boca de Ouro, o dramaturgo empenha-se em seguir as flutuações da subjetividade. Em Pirandello, a personagem é múltipla, porque emite imagens diferentes para cada interlocutor. Mas, para o mesmo interlocutor, essa imagem se mantém inalterada. Nelson vai mais longe no processo de sondagem: dependendo sobretudo do estado emocional do contemplador, a personagens adquire para ele fisionomias diversas, freqüentemente contraditórias. A dimensão psicológica se enriquece, assim, até o infinito. Engrossando as fileiras de importante vertente da ficção contemporânea, Nelson traz à tona o sutil jogo de intersubjetividades". (Sábato Magaldi)

Boca de Ouro traz de volta à obra do dramaturgo alguns elementos de Vestido de Noiva. Nesta sua célebre peça, a ação dramática é, na verdade, a projeção exterior da mente de Alaíde, mulher que foi atropelada por um carro e acaba morrendo. O público fica informado dessa "aventura da subjetividade", nas palavras do crítico Sábato Magaldi, a partir da comunicação do acidente ao jornal e, depois, ao ouvir as manchetes gritadas pelos jornaleiros. Em Boca de Ouro, a ação é projeção da mente contraditória de dona Guigui, antiga amante do bicheiro. Os flashbacks, matéria dramática da peça, são frutos da confusão mental de dona Guigui e servem para desnudar Boca de Ouro aos olhos do público. A ação é toda manipulada por ela. 

Enredo

 Há, na obra de Nelson Rodrigues, duas fases distintas, embora complementares. em primeiro lugar, existe a fase mítica, em que o autor trabalha predominantemente com realidades arquetípicas, sem qualquer compromisso substancial com o mundo objetivo.

 Já na sua segunda fase, balzaquiana, por assim por dizer, Nelson Rodrigues faz com que seus personagens desçam do Olimpo e se plantem no chão do mundo, no chão do subúrbio carioca, de onde passam a brotar com um vigor e uma autenticidade admiráveis. Esta transição se processa, no entanto, sem prejuízo dos aspectos míticos da obra, que continuam encravados no coração do teatro de Nelson Rodrigues e lhe conferem a sua grandeza poética e a sua universalidade.

 Em Boca de Ouro, esse casamento entre o particular e o universal, entre o subúrbio, no que dele tem de mais peculiar, e a simbologia arcaica do inconsciente, no que esta possui de mais genérico, se faz de maneira psicológica e artisticamente perfeita. É claro que tal inserção de planos pode confundir e desorientar a crítica, mesmo avisada e experiente. Daí, por exemplo, a impressão de "salada", de desunidade, que um crítico da lucidez e da experiência de Paulo Francis denuncia em seu contato com a obra. Esta desunidade é, porém, aparente e não essencial. Ela decorre da perplexidade do espectador ante o encontro entre o mito e o subúrbio, e das surpresas e desdobramentos que surgem deste conúbio. Boca de Ouro, sendo um autêntico rei do jogo do bicho, brasileiríssimo e suburbano, é, ao mesmo tempo, o fulvo felino imemorial que nos habita a todos, o leão de Judo onipotente que cada um alimenta nas testas de sua fantasia profunda, todo músculo e toda força, além da morte, além do risco, além da solidão e do abandono.

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