segunda-feira, 4 de junho de 2012

Ruth Rocha (Atrás da Porta)


A casa do Carlinhos era uma casa antiga, pegada à Escola Dona Carlotinha de Araújo Cintra.

Antigamente, quando a avó do Carlinhos estava viva, ela ocupava as duas casas, que eram uma só.

Depois que a Dona Carlota morreu, a família separou o casarão em dois.

Uma parte foi doada para a escola. E, na outra, ficou morando a família do Carlinhos.

Carlinhos gostava muito da avó, então vivia brincando no quarto que tinha sido dela.

Dona Carlotinha era aquele tipo de avó que todo mundo quer ter. Brincava com os netos de teatrinho, de acampamento no quintal, de amarelinha, tocava violão, cantava e contava histórias.

E que histórias! Dava a impressão de que ela sabia todas as histórias do mundo.

De fadas, de lobos ferozes, de meninos e meninas que desobedeciam aos pais (era dessas histórias que Carlinhos mais gostava), de reis, de piratas e de marinheiros.

O quarto de D. Carlotinha era todo forrado de madeira. E ainda tinham ficado nele alguns livros, muitas fotografias antigas, objetos estranhos, caixinhas de música, caleidoscópios, tinha um jogo engraçado com uma bola e um espeque, que a mãe do menino chamava de bilboquê.

Carlos se lembrava de uns livros grandes, com muitas figuras, que D. Carlota lia para ele, mas eles tinham sumido. Assim como um retrato da avó, muito mais moça, com um vestido bonito de cetim, com flores e bordados.

A mãe e o pai de Carlinhos viviam atrás dele, insistindo que ele precisava ler mais.

Mas os livros que davam para ele, do mesmo jeito que os livros que a professora mandava ler, eram muito sem graça, para quem tinha conhecido as histórias de D. Carlotinha.

Carlinhos, nas horas vagas, ficava mexendo em tudo que tinha no quarto da avó. E tanto escarafunchou dentro das gavetas, no fundo dos armários, nas molduras e nos bordados que enfeitavam as paredes, que um dia, ele rodou uma rosa entalhada num friso, a rosa estalou, a madeira se moveu e abriu-se uma porta na parede.

Era de noite. E do outro lado estava escuríssimo. Mas, embora Carlinhos tenha ficado com um pouco de medo, foi buscar uma vela e entrou pela porta, que ele já estava chamando de misteriosa.

A luz da vela tremia muito e levou algum tempo para que Carlinhos enxergasse o que estava lá dentro.

Então o coração do menino começou a bater forte, porque ele estava numa sala enorme, toda forrada de estantes de livros e no fundo, pendurado na parede, estava o retrato de sua avó, tão bonita, moça, num lindo vestido comprido, com um livro na mão.

Para Carlinhos, aquela era uma coisa mágica, era como se fosse um sonho, um espaço desconhecido.

Depois que passou a primeira emoção, o menino começou a olhar os livros nas estantes. Tinha livros de todos os tamanhos, de capas de todas as cores.

De repente Carlinhos encontrou um daqueles livrões que sua avó costumava mostrar a ele.

O menino abriu o livro com o coração batendo. Lá estava a história do Trenzinho do Nariz Frio; a do Marinheiro Tatuado; a dos Patos que Cantavam o Hino Nacional. E tinha a história da Menina que não Gostava de Nada, da Torre de Babel e uma, muito engraçada, que se chamava Enquanto eles Dormem no Japão.

Carlinhos chegou a ler uma ou duas, mas percebeu, de repente, que estava amanhecendo.

Ele não sabia bem por que, mas não queria que descobrissem o seu segredo.

Então botou o livro no lugar e voltou para o quarto da avó. Dormiu um bocadinho e sonhou com aqueles livros todos e sonhou com sua avó, tão alegre, tão engraçada, tão querida!

O menino ficou com muito sono o dia todo, até tirou uma soneca depois do almoço, o que espantou muito sua mãe.

E à noite, depois que todos foram dormir, lá foi ele outra vez para a sala misteriosa, que Carilinhos não entendia bem onde ficava. Ele achava que aquela sala era um milagre que sua avó tinha preparado só para ele.

E leu bastante, riu muito de umas gravuras e cartões-postais engraçados que descobriu, encontrou um teatro de bonecos com que brincava no tempo da avó.

No dia seguinte, o menino não pôde resistir e contou sobre a sala ao seu melhor amigo, o João.

À noite, depois que todos foram dormir, Carlinhos desceu as escadas bem devagarinho e abriu a porta da frente.

Lá estava o João, que tinha trazido a irmã, a Tuca. Os dois estavam loucos para conhecer a sala misteriosa.

E a Tuca também não pôde resistir.

No dia seguinte ela trouxe a prima, a Julinha. E a Julinha trouxe o Marcelo e o Marcelo trouxe o Cláudio, o Cláudio trouxe o Miguel e o Miguel...

Cada um trazia sua própria vela para poder ver os livros, ler à vontade e brincar com as mil coisas interessantes que todos os dias eles iam descobrindo.

Então aconteceu uma coisa engraçada.

Começou a correr pela cidade um boato que a escola Dona Carlotinha de Araújo Cintra estava cheia de fantasmas.

As pessoas juravam umas para as outras que tinham visto luzes... Luzes que andavam atrás das janelas. Luzes que tremiam...

O vigia, seu Virgolino, que na verdade dormia a noite inteira, jurava que eram mentiras, "onde é que já se viu?".

Mas muitas pessoas afirmavam que tinham visto pessoalmente as tais luzes.

Dona Gertrudes Afonseca e Silva, que morava do outro lado da praça e ficava vigiando na janela a noite toda, confirmava:

- São fantasmas, sim senhor! Já vi cada sombra enorme lá dentro. Cruz credo!

E o seu Benício de Carvalho Pinto, que sofria de insônia e andava pela cidade a noite toda, confirmava:

- Fantasmas! Dos bons! Eu é que não passo mais pela pracinha!

Os pais do Carlinhos, dona Joana e seu Antonio, ouviram falar dos tais fantasmas, mas, como eles não acreditavam nessas coisas, não ligaram muito.

Até que um dia, a Joana levantou à noite para beber água e levou o maior susto com aquela fila de crianças de pijama, que entravam pela porta da frente, subiam as escadas e entravam no quarto de dona Carlotinha.

Então ela chamou o Antonio e os dois foram atrás da criançada.

Atravessaram o quarto e entraram pela porta secreta.

Uma porção de crianças estavam sentadas às mesas, deitadas nos tapetes, recostadas nas poltronas, com suas pequenas velas acesas, lendo!

- Ora essa! - o Antonio exclamou.

- Que ótima surpresa, essa criançada toda lendo!

Mas Joana não estava entendendo:

- Ué! Por que é que vocês não vêm ler de dia? Carlinhos respondeu por todos:

- A gente pode?

- Claro que pode - Joana respondeu.

- Para isso são as bibliotecas. Ainda mais as bibliotecas das escolas!

- Mas aqui não é a biblioteca da escola! - o João falou.

- É sim - disse Joana. - Ninguém sabia desta passagem, mas aqui é a biblioteca da escola. Vocês não conheciam?

- Nós nunca entramos aqui! - disse a Tuca. - A biblioteca está sempre fechada!

O pai e a mãe de Carlinhos se olharam!

- Ora essa! - disse Antonio. - Pra que serve uma biblioteca fechada?

No dia seguinte, Joana e Antonio foram falar com a diretora da Escola, dona Babete Ventura.

Não sei o que foi que eles conversaram. Mas na semana seguinte apareceu na frente da escola uma faixa que dizia:
..............................
Festa da biblioteca,
não percam!
Última semana de outubro!
..............................

A festa na Biblioteca foi ótima!

Vieram crianças de todas as escolas da redondeza.

Teve uma surpresa muito grande para o Carlinhos.

Com essa história toda, Antonio descobriu que os livrões de que Carlinhos tanto gostava tinham sido escritos a mão por dona Carlotinha.

Ele então mandou para a Editora Salamandra, e dona Regina, que é a editora lá deles, gostou muito e resolveu editar as histórias todas.

Então ela fez uma coleção bárbara, ilustrada pelo Walter Ono, pela Eva Furnari, pelo Ziraldo, pelo Carlos de Brito, pela Helena Alexandrino, pelo Ivan Zigg e por mais uma porção de ilustradores incríveis e eles todos vieram para a festa.

Teve o lançamento dos livros e a Ana Maria Machado e a Sylvia Ortoff e o João Marinho e a Anna Flora e a Edy Lima vieram e assinaram muitos autógrafos nos livros deles.

Eu fui também e ganhei das crianças o Prêmio Jacaré, que era um prêmio que elas inventaram.

E as crianças podiam andar pela biblioteca toda e ver todos os livros, e sentar às mesinhas para ler o que elas quisessem.

E, daí em diante, a biblioteca passou a ficar aberta, não só o dia inteiro, mas nos sábados e domingos e, em alguns dias, até à noite.

E a cidade inteira podia ser sócia e levar livros para casa e teve uma porção de pessoas que deram mais livros para a biblioteca, todos ótimos, que ninguém ia dar livros-porcaria para uma biblioteca tão boa.

E até tiveram que ocupar outra sala da escola, para os livros todos caberem.

E agora, quando o Carlinhos fica com muita saudade da vovó, ele vai até a biblioteca e fica lendo os livros dela: do Trenzinho que Tinha o Nariz Frio, do Marinheiro Tatuado, dos Patos que Cantavam o Hino Nacional...

Fonte:
Historinhas pescadas. Vol.2. Editora Moderna.

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