domingo, 30 de dezembro de 2012

Izabel Santa Cruz Fontes (Perdão)

Hoje sonhei que te perdoava. Estamos sentados frente a frente, desconfortáveis, com olhares perdidos. Eu podia sentir o teu desespero mudo no ar, tocar nele, moldá-lo à minha maneira, fazer dele capricho meu. Você fingia tomar seu café e olhar pela janela. O café estava tão quente que era quase uma presença humana. Éramos, então, quatro: eu, você, o café e seu desespero, percebi nisso metáfora indizível. Mesmo no fim, mesmo em sonhos, nunca sozinhos.

Sádica, eu folheava o jornal displicentemente e jogava os cadernos pelo chão, bagunçando tudo de propósito, como que para te irritar pela última vez. Você, numa coragem súbita, quebra o silêncio. Apenas ergo os olhos, fitando-te friamente e volto a uma notícia tediosa, no caderno de política. Falava alguma coisa sobre um tratado político no Sul da África... você fala, fala, fala. Fala coisas que eu não entendo, ou não lembro. Diz que se arrepende, pede desculpas, promete o céu e felicidade eterna. Continuo a ler, termino mais uma página e a jogo no chão, quase com desprezo. Sentindo o corpo inteiro estremecer, numa raiva contida, você se limita a olhar com o canto do olho a mais uma provocação e ignora, permitindo-se um resto de orgulho.

Ao perceber que ainda somos nós — você, puro orgulho, eu, pura implicância — dou um meio sorriso, sabendo que não tenho o direito de me sentir feliz. Você, de repente, percebe tudo e dá um sorriso largo, criança em dia de natal. Surpresa, apenas arregalo os olhos, você ri do meu espanto. Mais alto. Gargalha. Contagiada, vou sentindo minha boca se abrir, tímida, até se escancarar. Sentimos o corpo tremer e rimos, em uma crise guardada, sem explicação, sem motivo.

Passamos tempo incontável assim, a rir sem motivos e, de repente, paramos. Pela primeira vez, nos olhamos de verdade, com olhos de quem ri, inocentes e carinhosos. Finalmente, nós dois entendemos e, calados, aceitamos nosso destino: orgulho e implicância. Nos perdoamos.
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Izabel Santa Cruz Fontes (1987) é estudante de jornalismo na Universidade Federal de Pernambuco - UFPE. Diz fazer da escrita uma forma de "existir um pouco mais no mundo.”

Fonte:
http://www.releituras.com/ne_izabel_perdao.asp

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